So what?

Duas grandes obras do barroco francês, uma de igreja e de pungente canto das "trevas", outro de teatro, e em que as luzes acabavam por triunfar da obscuridade - e que os "iluministas" aplaudiram. Mas há ainda outro espaço, o da intimidade do salão e do diálogo entre a voz recitante e a teorba.

A geografia serve antes do mais para fazer a guerra - a ideia deu nome, nos anos setenta, a um livro que poucos leram para além do título. Sempre achei que um olhar que pousa na paisagem e só vê e conta fronteiras, reais e imaginárias, tem dentro de si qualquer coisa de militar e latifundiário. Embora correndo o risco de oportunistas e mal intencionadas especulações, apetece-me sublinhar que o mesmo vale para a música: reconhecer-lhe diferenças não implica isolá-las com muros. Nem apagá-las com éditos.De um pouco disto, desta matemática das geografias do mundo e da arte, que não se confundindo se cruzam, se alimentaram - ontem quase exclusivamente, hoje apenas enraízadas nalgumas bolsas localizadas - as estórias em torno da história da Ecm e das suas relações com o jazz. O primeiro equívoco, talvez um caso de concorrência de culpas, foi não se ter acreditado na sinceridade das palavras de Manfred Eicher: interessava-lhe a música, não o nome que lhe era posto pelos que tinham o poder de sobre ela escrever; interessavam-lhe os músicos, mais do que aquilo que eles próprios pudessem dizer da sua música, depois de feita. Mas foi também Eicher quem somou as letras da sua editora - "E" de "european", "C" de "contemporary" e "M" de "music". Trinta anos passados sobre o nascimento do catálogo Ecm, é curioso olhar-lhe a matriz, detendo a memória nos seus primeiros títulos. Lá estavam os pianos de Mal Waldron, Paul Bley, Chick Corea e Keith Jarrett, os sopros de Jan Garbarek, as cordas de Terje Rypdal, as peles dos tambores de Jack DeJohnette. Sons que dificilmente se (con)fundi(ri)am, longe de quase tudo aquilo que hoje é tido como a alma do chamado "som Ecm". Mas foi por aí que a história caminhou, arrimada à tentação comodista, que é sempre a mais redutora. Fazendo de uma cor a única cor. Não está em causa negar a existência - invisível mas palpável - de uma identidade Ecm. Apenas (me) importa interrogar a dúvida: saber se não se confundiu uma identidade, construída na coabitação de várias sonoridades, com um som. Se não se fez de uma parcela o todo. Se a diversidade não foi ouvida simetricamente dos dois lados do espelho. Como bíblia de certezas inabaláveis: "aquele e só aquele era o rosto do jazz do futuro" versus "aquele nunca seria o rosto do jazz, eternamente já desenhado no passado". Acontece que os trinta anos Ecm são um mapa de estradas sem fim. E uma cidade de gente de Babel: eremitas e cosmopolitas, ascetas e libertinos, reclusos e aventureiros, alquimistas e traficantes. Uma feira de sons, aonde acabam de chegar dois homens de muitos e outros saberes. Viajeiros de tantas estórias que não cabem no coração. E que por isso lhes saltam do peito para as mãos de quem as ouve. Viajam juntos, carregados diferentes: Gianluigi Trovesi abraçado aos sopros dos seus clarinetes, Gianni Coscia dentro do seu acordeão. Estranha associação, começam logo a contabilizar os ouvidos que vêem mais do que ouvem, prontos para perder o milagre de uma rara anunciação musical.Há músicas que só se deixam tocar por corpos humildes, capazes de aceitar-se como uma folha em branco. Porque só assim estarão livres para receber as tensões de espaço e volume do diálogo instrumental que atravessa "Minor dance", entre aragens de tango e folhas trazidas no improviso de outros ventos.Porque só assim estarão disponíveis para deixar-se escrever pela beleza lancinante, nesse fio de desejo onde se fundem o insustentável e o indispensável, de um "Django" que John Lewis nunca ouviu. Porque só assim se manterão abertos ao deslizar do sopro de Trovesi sobre os versos porteños de "El choclo" - memória, que não é, de um Ben Webster que foi, sem o ser, um tanguero do jazz - antes da ascensão final, em estilhaços de luz e carne, para o derradeiro clímax.Porque só assim poderão andar os claustros tímbricos que habitam e se deixam habitar por "In Cerca Di Cibo"."In Cerca Di Cibo" é um dos discos mais belos, perturbante e acariciador, em que este ano me descobri. Fora do mundo das regras que identificam o jazz? Sem dúvida. À margem dos sinais que unem a sua tribo universal? Talvez. Incapaz de emocionar um corpo que só se acende no swing suspenso de Basie? Provavelmente. So what?Gianluigi Trovesi/Gianni CosciaIn Cerca Di CiboEcm 1703; 52' 57"; 1999; dist. DargilInterrompendo o seu mais recente ciclo discográfico, intimamente associado ao trabalho para cinema, o trompetista Terence Blanchard voltou aos estúdios para acertar em cheio na "mouche" com o álbum "Wandering Moon" (Sony Classical 89111; 1999; 75' 15"; imp. Sony). Aqui está uma sessão homogénea, apesar das variações dos colectivos instrumentais (entre o quarteto e o sexteto) construídos a partir dos companheiros regulares do líder mas reforçados por dois hóspedes de luxo: Dave Holland (rei e senhor da disciplina do contrabaixo e o único nome com direito a um solo absoluto) e Branford Marsalis (que substitui, em três dos nove temas, os saxofonistas da casa, Aaron Fletcher, alto, e Brice Winston, tenor).Blanchard respira confiança, qualquer que seja o tempo e o modo das suas arquitecturas musicais. Do enamoramento à melancolia nas baladas ("Luna viajera", "My only thought of you", "I thought about you"), da exaltação e convulsão à serenidade e conforto rítmicos ("If I could, I would" e "Joe & O", "Simplemente Simon" ou "Sidney"), a sua estatura de autor e actor (a maioria dos temas gravados traz a sua assinatura) recebe neste disco um novo impulso. Apesar da solidez do colectivo, injusto seria omitir a merecida nota alta para a mobilidade emocional do piano de Edward Simon, sempre atento à condução e/ou deflagração da acção musical, e calar a necessidade de não perder de vista o "drumming" de Eric Harland. Numa época em que os saxofonistas têm assumido um crescente protagonismo, Terence Blanchard vem corrigir a memória e lembrar que não só os trompetistas continuam a ter uma importante palavra a dizer no jazz de hoje, mas também que não é só em Dave Douglas e outros exploradores de territórios mais afastados do tronco central das suas tradições que o jazz se interroga e (re)encontra. Reunidos em 1988 (e recentemente divorciados), o norte-americano Michael Moore (alto, clarinete) e os holandeses Ernst Reijseger (contrabaixo) e Han Bennink (bateria) fizeram de Clusone 3 um trio referencial do jazz contemporâneo. Aberto à tradição com o olhar do seu próprio tempo e muitas vezes guiado pela voz percussiva de um Bennink sempre sedento de sons e insaciável de humor, o trio atravessa músicas - do jazz à Broadway de Irving Berlin, do free à contemporânea improvisada - em vez de nelas acampar. Uma gravação de Dezembro de 1997 agora editada tornou-se(-me) um dos seus títulos honoríficos. "Rara Avis" (Hatology 523; 55' 53"; 1997; dist. Andante) é o registo de um concerto suiço sujeito a mote (aves) e todo ele construído em torno de temas originais ("Avocet", "Secretary bird", ambos de Moore), standards do cancioneiro americano (entre Gershwin e Berlin, "The buzzard song" e "My bird of paradise, passando por Carmichael e Mercer, "Baltimore oriole" e "Skylark"), ícones da música popular brasileira (de "Tico-tico no fubá" ao "pato" de Jobim), memórias free (via Steve Lacy) e folclores do mundo ("El condor pasa", "Yellow bird"). A cor da música num disco de uma inteligente frescura criativa, num contínuo e cintilante achamento de subtilezas tímbricas.Longa, como sempre, a lista de espera das reedições, esta semana com novas estórias antigas de americanos em Paris. As preferências vão para as reedições de "Just Friends" do trompetista Harry "Sweets" Edison (Black &Blue 918; 47' 28"; 1977; dist. Strauss) e de "Ya! Ya!" do saxofonista Budd Johnson (Black & Blue 924; 42' 30", 1970, dist. Strauss). Edison assina swing do bom, "sweet", como muito praticou em casa de um dos seus reis, Basie, ao lado de outro companheiro desses tempos, o tenor peso-pesado Eddie "Lockjaw" Davis. A rítmica sabia muito: Gerry Wiggins, Major Holley e Oliver Jackson. O parceiro de Budd Johnson vale menos que o líder de "Lockjaw": Charlie Shavers fazia demais algumas coisas que só valem muito quando se usam pouco. O seu jogo musical, de mão forte, tinha muletas excessivas, para facilitar o ouvido às grandes plateias. Mas Johnson é um daqueles tenores maltratados pelas histórias do jazz, que dele muito se esquecem ou pouco se lembram. Quem conhece parte das benfeitorias que espalhou ao lado de Earl Hines pode medir a injustiça criada em torno de um homem que merece, sem benesses, o título de "clássico".O jazz "mainstream" que governou muitos anos os palcos franceses teve nas sessões da Black & Blue um baluarte, a que muitas vezes se volta com gosto e simpatia. Como acontece em "Just Friends" e "Ya! Ya!", dois exemplos do que Philippe Baudoin chama, corajosamente, de "swing sem problemas". Diferente é o caso de "'77 Vintage", soma de gravações de pequenas bandas de um Lionel Hampton (Black & Blue 870; 56' 35"; 1977; dist. Strauss), muitas vezes traído pela sua imensa generosidade musical que o leva a esticar demais a corda, cansando em vez de rejuvenescer. O melhor desta colheita é a garrafa de "Limehouse blues" e alguns tragos da trompete de Cat Anderson.Obscuro para as novas gerações será o nome de John Hardee, que fez fama e furor no tempo em que os tenores gritavam alto o "rhythm & blues", sendo que os texanos, como Hardee, gritavam ainda mais alto. Por essas América e Europa fora, muito casal se conheceu melhor suando apertado nas notas de Hardee, que em "A Little Blue" (Black & Blue 925; 66' 48"; 1975; dist. Strauss) lidera uma excitante sessão, inédita e onde não faltam os blues, com alguns compatriotas de largo currículo em palcos franceses: Gerry Wiggins, Bill Pemberton e Oliver jackson. O segundo sopro é o trombonista Gene "Mighty Flea" Conners, boa companhia para o discurso encorpado de John Hardee, um aluno, de poucas falhas, da escola de Chu Berry, Coleman Hawkins, Ben Webster e outros tenores sapadores.

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