A vida por um fio

Na ficha técnica, o nome deles aparece depois do nome dos motoristas. E é quando aparece. No entanto, são eles que dão o corpo ao manifesto nas cenas mais violentas e perigosas. Fazem tudo o que os actores habitualmente têm medo ou se recusam a fazer: cenas de pancadaria, desastres, saltos, atropelamentos. São os duplos.

Hoje, o duplo de cinema Atílio Silva vai saltar do topo do edifício da Marconi, perto da gare do Oriente, em Lisboa, numa cena produzida para um anúncio de uma marca de cerveja belga. São 73 metros até ao chão (embora seguro por um cabo dinâmico invisível), sendo, no final, projectado de novo para cima. Por esta cena Atílio Silva, de 50 anos, tenciona cobrar cerca de 1500 contos. É um trabalho banal na sua carreira de duplo, ao longo da qual já fez dezenas de "números" semelhantes. Em 10 anos (desde que se estabeleceu em Portugal vindo da Austrália) fez precisamente 3.016 cenas arriscadas como duplo para o cinema e para anúncios publicitários. Só uma delas acabou mal, quando o carro que conduzia, e que fez saltar de uma ponte com 15 metros de altura, errou o alvo e, em vez de cair sobre um monte de caixas como estava previsto, embateu violentamente no chão. Atílio Silva, duplo, partiu as costelas, os dentes da frente e levou 38 pontos na boca. Este foi o único "azar" da sua vida artística. Que começou um dia, há 32 anos, na Austrália, onde se fixara como intérprete turístico. "Estava a brincar ao volante de um carro, a dar saltos e a fazer peões, um realizador viu-me e achou que eu tinha jeito. Foi assim que entrei no cinema" - diz. Fez então o curso de duplos da "New Generation of Stunts Academy", uma produtora australiana e começou a ser solicitado para fazer todo o tipo de cenas arriscadas que os actores se recusam habitualmente a fazer: cenas de guerra e de pancadaria, perseguições e quedas com carros e com motas, saltos de dezenas de metros de altura. Nessa altura "ainda não sabia que este era um mundo cão, cheio de intrigas e de invejas e em que toda a gente percebe da profissão dos outros."Começou a sentir isso sobretudo depois de se fixar em Portugal há cerca de dez anos. Aqui criou a única empresa de duplos que existe no país. Tem uma família de quatro pessoas a trabalhar para ele (família Chança), uma mulher de 32 anos que também é florista e é capaz de se atirar de um eléctrico em andamento (Xana), um jovem que espanta pela ousadia com que conduz a sua mota (Billy), um técnico de efeitos especiais (Ricardo Cabral) e um trapezista do Chapitô (Ricardo). De todos, apenas Atílio conseguiu fazer um seguro contra acidentes de trabalho no valor de 10 mil contos no caso de morte ou invalidez. "Quase nenhuma companhia aceita fazer seguros dessa natureza". A maioria dos duplos actua, por isso, com a sua segurança "coberta" num pacote que inclui câmaras e vários outros tipos de equipamentos. Na sala de sua casa, em Lisboa, Atílio Silva guarda uma colecção de cassetes com algumas das cenas mais difíceis que fez para o cinema. Muitas das produções em que participou já foram premiadas, como se observou relativamente ao anúncio classificado em primeiro lugar no Festival de Berlim e a três dos 15 filmes que foram apresentados este ano num festival de publicidade. Na série "Jornalistas", ele "mete-se na pele" de um dos actores vestindo um colete em chamas. Precisou de o cobrir com um gel especial que garante um isolamento do resto da roupa durante cerca de um minuto. No filme "Monsanto" ele guia um carro (no lugar do actor) que dá 11 cambalhotas seguidas. "No final, o nosso nome (dos duplos) nem aparece no ecrã", diz com alguma nostalgia. Um dos maiores desafios que aceitou foi saltar de uma ponte de 92 metros de altura, em Ponte D'el Pino, em Espanha. "Apesar de ter sido rodeado de toda a segurança e de estar bem preso por um cabo, sempre foi um grande salto", diz Atílio Silva. Além dos dois filhos, um dos quais se tornou actor de teatro, quem sempre tem acompanhado Atílio Silva ao longo da sua carreira, com o coração aos saltos, é a mulher, Jó Silva. "Peço sempre às assistentes de produção para me ligarem, assim que ele termina uma cena mais arriscada", conta. O tempo e a prática do marido não chegam para a descansar. Ela tem sempre medo que alguma coisa corra mal. "Já nem quero saber pormenores..."Tony Lima, actor português repartido entre Los Angeles e Lisboa, acumula habitualmente os seus papéis de actor com o de duplo. Lutas, perseguições ou fugas, prefere ele fazer e receber por esse trabalho, em vez de o delegar em mais alguém. Possui a agilidade e a destreza necessárias. Aos 16 anos, antes de partir para os EUA (onde viveu durante 20 anos), já era campeão nacional de judo. E foi precisamente durante um torneio que chamou a atenção de um responsável dos estúdios da Paramount que quis saber se ele estaria interessado em fazer papel de duplo no cinema. E foi assim que tudo começou. Tirou um curso destinado a duplos, sobretudo ao nível da perícia automóvel. "Aprendi a fazer peões, as várias formas de parar, deslizar e tocar em perseguições filmadas para o cinema", conta. "Faço as cenas a cavalo, de carro e de mota dos filmes em que participo." Só que Tony Lima não se limitou a desempenhar os papéis que podiam pôr em risco a segurança dos actores. Quis ir mais longe e tornou-se actor. Foi Trinitá no filme "Y le llamaran Siempre Trinidad", de Enzo Barboni, foi operacional em "Le Grand Cirque", de Alain-Michel Blanc e um dos personagens da série televisiva "Polícias". Participou em muitos outros filmes de acção e foi, por diversas vezes, premiado. "Ganhei o prémio de melhor actor americano na Califórnia", afirma, satisfeito. Em 1997 foi distinguido com o prémio da RTC, também por um anúncio que realizou. Os "cachets" que recebe pelo seu trabalho são habitualmente generosos. "Para os filmes publicitários feitos em Portugal cobro entre 100 e 350 contos por dia. Nos EUA é diferente. Posso levar entre mil e 20 mil dólares por cada papel no cinema". Habitualmente desempenha com eficácia as cenas "perigosas" dos filmes em que participa mas já lhe aconteceram alguns azares. O mais grave passou-se durante as filmagens de uma série francesa nas Minas de S. Domingos quando manejava uma arma. "Estávamos a usar fogo real, eu disparei na direcção que me indicaram. De repente houve um grande burburinho, nunca mais ninguém dizia 'corta', toda a gente correu numa direcção e eu fui atrás e foi quando vi que o meu disparo tinha atingido o realizador. Depois tudo ficou bem mas foi a coisa mais estúpida que me aconteceu."

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