O cine-olho de Dziga Vertov

Com o primeiro módulo do festival "Odisseia nas Imagens", o pelouro do audiovisual do Porto 2001 antecipa o figurino da sua programação para a Capital Europeia da Cultura. Sob o signo do documentarismo e do filme de Dziga Vertov "O Homem da Câmara de Filmar", o programa "O Olhar de Ulisses" vai dar a ver algumas obras marcantes da história do cinema.

Um grande espectáculo audiovisual, esta noite, no Coliseu do Porto, assinala a abertura do 1º módulo do festival "Odisseia nas Imagens", um prelúdio daquilo que vai ser a programação de cinema, audiovisual e multimédia da Capital Europeia da Cultura. O grande ecrã da maior sala de espectáculos portuense volta assim a abrir-se à arte do cinema, para a servir numa das suas obras mais emblemáticas e cujo título é já todo um programa: "O Homem da Câmara de Filmar", realizada por Dziga Vertov (1896-1954), numa sessão com música ao vivo expressamente concebida para o efeito pelo grupo britânico Cinematic Orchestra (ver suplemento Artes do PÚBLICO do passado dia 28).Com este filme paradigmático do que foi, na década de 20, o envolvimento do cinema soviético - e de alguns dos seus maiores expoentes, de Vertov a Eisenstein, de Dovjenko e Pudovkine - na construção do "homem novo" e com o processo revolucionário liderado por Lenine, a equipa do audiovisual do Porto 2001 propõe-se, diz o seu principal responsável, Jorge Campos, "convocar as pessoas para a aventura do olhar". E convocam, para tal, também os nomes de Ulisses e da sua Odisseia - "O Olhar de Ulisses" é o título deste primeiro módulo do festival - para uma viagem de regresso às origens e a momentos fulcrais da história do cinema, na sua vertente documental.O documentário é, aliás - ao lado da animação e das curtas-metragens -, uma aposta calculada da equipa de Jorge Campos, que assim quer lançar, ao longo destes dois anos e através de uma rede de protocolos já assinados com escolas e cursos de cinema e audiovisual, os fundamentos duma escola de documentarismo do Porto, cidade cuja imagem quase só tem sido projectada através da obra de Manoel de Oliveira.Ao longo duma dezena de dias e com a exibição de meia centena de filmes - em sessões comentadas por cineastas, críticos e ensaístas -, este primeiro módulo de "Odisseia nas Imagens" vai permitir ver desde as imagens fundadoras dos irmãos Lumière e do nosso Aurélio da Paz dos Reis até ao trabalho de autores contemporâneos como o holandês Johan van der Keuken ou o alemão Rudolf Thome (que se deslocará ao Porto), passando por obras de mestres como Robert J. Flaherty e Joris Ivens, Buster Keaton e Jean Renoir, Satyajit Ray e Manoel de Oliveira (ver programa ao lado).A selecção de filmes a apresentar propõe-se fazer incidir a atenção do espectador portuense na questão central do olhar cinematográfico e nos diferentes sentidos que o documentarismo assumiu ao longo deste primeiro século do cinema. E, de facto, a obra de Vertov é a melhor iniciação para este entusiasmante desafio. Realizado em 1929, "O Homem da Câmara de Filmar" é um trabalho de metacinema, um discurso sobre o própria linguagem desta arte que Lenine, uma década antes, tinha defendido como a mais importante para a construção da nova Rússia. E Dziva Vertov foi talvez o cineasta que mais longe foi na teorização, experimentação e realização desta arte que por essa altura já vinha conquistando a sua independência estética, fruto do "raccord" de experiências tão díspares mas complementares como o expressionismo alemão e a obra de David W. Griffith, na América, por exemplo.Dziga Vertov, nascido a 2 de Janeiro de 1896 na cidade polaca de Bialysto (então sob a dominação da Rússia czarista), rumou para Moscovo nos anos da I Guerra Mundial, na sequência da invasão do seu país. A capital russa fervilhava, então, de ânsias de revolução e experiências de todo género, entre as quais a do futurismo, movimento que atravessava todas as grandes capitais da Europa, da Roma de Marinetti até à Moscovo de Maiakovski. E porque era de movimento que se tratava, este jovem que se chamava Denis Arkadievitch Kaufman decidiu trocar este seu nome algo provinciano por um mais condizente com o tempo que se viva: "dziga" = toupeira + "vertov" = girar é a equação apropriada para quem queria estar em comunhão plena com o frenesim e o incessante movimento do quotidiano. O novo Dziga Vertov substituiu facilmente as suas primeiras vocações pela poesia e medicina pela da arte das imagens em movimento. Em 1918, inicia-se no cinema como redactor e editor do primeiro jornal de actualidades "Kino-Nedelia" ("Cine-Semanal"). Daí salta naturalmente para o Comboio de Propaganda Lenine e para o Navio Estrela Vermelha, novos e eficazes instrumentos de agitação e propaganda (agit-prop) dos ideais comunistas.Vertov vive, assim, uma marcante experiência de montagem das actualidades que eram registadas pelos homens das câmaras de filmar que eram enviados para todo o lado, principalmente para situações de conflito (a guerra civil entre os "russos brancos" e os "vermelhos") e onde houvesse movimentações das massas mobilizadas pelos bolcheviques - recorde-se que, como lembra o crítico e ensaísta francês Jean-Louis Comolli (um dos autores que vai estar no Porto), cabe ao cinema a criação de uma nova noção visual: "a plasticidade das massas, que só se tornam visíveis, só ganham forma, a partir da sua dimensão fílmica". É a partir dessa experiência que o jovem cineasta inicia, com "O Aniversário da Revolução" (1919), uma evocação da Revolução de Outubro, a realização duma série de filmes feitos com a montagem do material recolhido para os referidos jornais. Entretanto, Vertov associa-se à sua companheira, a montadora Elisabeta Svilova, e ao seu irmão, o operador Mikhail Kaufman, na criação do grupo Soviet Troikh. Era uma espécie de grupo-manifesto ("Nós"), que defendia a teoria de que o cine-olho = cine-verdade ("kino-glaz = kino-pravda"); ou seja, a câmara de filmar era mais perfeita do que o olho humano - o que estava perfeitamente de acordo com o ideário futurista de celebração da máquina.Depois de uma série de obras destinadas a pôr em prática os ideais da Revolução, Vertov realiza "O Homem da Câmara de Filmar". Uma obra que leva ao extremo das suas possibilidades o exercício da montagem, a partir de imagens da vida quotidiana das cidades (Moscovo e Odessa), tornando-se num discurso polissémico sobre a própria natureza do cinema. "O olho filmado, motivo vertoviano por excelência, é ao mesmo tempo o da personagem, do espectador no filme e, obviamente, a objectiva da câmara (...) O homem-da-câmara é baptizado neste filme como o novo ser quimérico (homem+máquina) duma nova era mística", escreve Jean-Louis Comolli, num texto incluído no belo catálogo que a Porto 2001 editou a acompanhar o programa "O Olhar de Ulisses".Com "O Homem da Câmara de Filmar" e com o pai da Revolução de Outubro (que o realizador viria ainda a celebrar, em 1934, em "Três Contos sobre Lenine") já morto, Vertov afasta-se progressivamente do discurso oficial soviético. A acusação de "formalismo" - que mais tarde haveria também de atingir Eisenstein - empurra-o cada vez mais para a sombra. Mas o seu trabalho prolonga-se ainda, com filmes menores, até meados da década de 40. Vertov morre em 1954, vítima de cancro. Por essa década, o documentarista-etnógrafo francês Jean Rouch inicia uma obra que vai beber nos seus princípios do cinema-verdade. E, mais tarde, Jean-Luc Godard evoca e valoriza também o seu legado.

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