Conhece Hirschman?

É um economista com pouca notoriedade e um percurso intelectual que não se ateve às fronteiras disciplinares. Albert Hirschman suspeita de modelos teóricos padrão e tem tendência para a auto-subversão.

Quem conhece Hirschman razoavelmente associa-lo-á apenas à economia do desenvolvimento. Quem o conhecer melhor, tendo lido por exemplo "A Paixão e os Interesses", já editado em português, tê-lo-á como referência também no domínio da história das ideias económicas. Quem o conhecer muito bem saberá das suas múltiplas contribuições em terrenos transdisciplinares que interessam a todas as ciências sociais. Nunca ouviu falar dele? Tem uma atenuante. Hirschman não é, de facto, um economista afamado.As "Passagens de Fronteira" são o resultado de uma longa entrevista com Albert Hirschman realizada em 1993. Nessa conversa, decorrida ao longo de dois dias, três entrevistadores procuraram obter simultaneamente uma história de vida e um balanço intelectual. O resultado foi impecavelmente resumido na escolha do título. A vida e a obra de Hirschman são, de facto, uma história de passagens de fronteiras.As primeiras fronteiras são territoriais. Nascido em Berlim em 1915, numa família judaica, foi obrigado a partir para Paris em 1933, onde estudou até 1935. Seguiu-se Londres, onde continuou a sua formação como economista numa London School of Economics dominada por Robbins e Hayek. Nova travessia leva-o a doutorar-se entre 1936 e 1938 na Universidade de Trieste, Itália.As segundas fronteiras são políticas e sobrepõem-se às primeiras. Militante da Juventude Social-Democrata no período berlinense, adere à resistência antifascista italiana e participa na guerra civil espanhola ao lado da República. Com o início da guerra, alista-se no exército francês e após a derrota desenvolve intensa actividade na resistência, apoiando a saída de refugiados políticos para o exterior. Em 1940 torna-se ele próprio um refugiado, partindo para os Estados Unidos. Regressa à Europa como soldado do exército norte-americano e no final da guerra encontramo-lo de novo nos EUA, agora como funcionário do Federal Reserve Board, que veio a representar no conselho do Plano Marshall. Em 1952 está já na Colômbia, onde, por indicação do Banco Mundial, permaneceu como consultor até 1956.Mas há também fronteiras académicas. A carreira universitária começa para Hirschman em 1956, já com credenciais sólidas nos domínios das relações económicas internacionais e da economia do desenvolvimento. A primeira etapa é em Yale, onde escreveu e editou a obra que reflecte sobre a experiência colombiana - "The Strategy of Economic Development". Em 1958 está na Universidade de Columbia, seguindo-se Harvard, e depois Princeton, onde actualmente se mantém activo no Institute for Advanced Studies (ver http://www.admin.ias.edu/ss/home/about.html).Resta, por último, o mais importante - o percurso intelectual. As fronteiras aí são disciplinares. É difícil encerrar Hirschman num domínio temático ou numa concepção estreita de Economia. "Trespassing" (violar a delimitação) é uma das suas palavras preferidas. As delimitações dizem aqui respeito à separação entre áreas especializadas da economia e entre as ciências sociais. Outra destas palavras, ou frases, é "contra a parcimónia". A oposição agora é relativa aos axiomas a partir dos quais muitos economistas pretendem deduzir implicações e generalizá-las. Quer uma quer outra palavra-chave reflecte uma profunda suspeita relativamente a modelos teóricos padrão que abstraem, por princípio, dos "detalhes". Afirma Hirschman na entrevista: "O meu principal inimigo é mesmo a ortodoxia: prescrever incansavelmente a mesma receita, a mesma terapia, para resolver vários tipos de males; não admitir a complexidade, querer simplificá-la a todo o custo. A realidade, porém, é sempre um pouco mais complexa..."Haverá quem confunda esta atitude antiortodoxa com uma oposição à teoria. Mas o mal-entendido radica numa diferença de concepções relativamente ao estatuto científico da Economia. É certo que em Hirschman é impossível encontrar qualquer sistema ou qualquer conjunto de leis que permitam fazer previsões quanto a acontecimentos sociais futuros. Isso, no entanto, não é uma debilidade. Ele pensa simplesmente que, "se possuíssemos a capacidade de prever o futuro, ou se deparássemos com uma lei sociológica totalmente aplicável, seríamos os primeiros a revelar descontentamento". Portanto, se não existem enunciados teóricos sob a forma de leis na obra deste autor é simplesmente porque ele não acredita que estas leis possam existir. Em oposição, insiste sempre no elemento criativo da acção humana.Para Hirschman não há teoria sem limitações e ele é o primeiro a revela-las no que diz respeito às suas. No que designa de "auto-subversão", não mostra qualquer relutância em expor os limites ou em reexaminar ideias que anteriormente defendeu. Esta tendência para a auto-subversão, que na entrevista é exercida com candura, relativamente às teses de uma das suas principais obras ("Exit, Voice and Loyalty"), constitui mesmo o tema do um livro seu, publicado em 1994 ("A Propensity to Self-Subversion").Hirschman não será um economista afamado. No entanto, se não o sabíamos já, a sua obra mostra que fama e valor intrínseco nem sempre estão relacionados. Alguém na Bizâncio parece também pensar assim. Com "As Paixões e os Interesses" revelou-nos um estudioso brilhante, com as "Passagens" dá-nos a conhecer uma personalidade apaixonante, uma vida vivida.

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