A ditadura da felicidade

Pascal Bruckner critica o actual culto da felicidade, essa espécie de mandamento hedonista "que acumula o êxito profissional, amoroso, moral, familiar".

É bem conhecida a anedota segundo a qual teria sido necessário conjugar a força de três jovens escuteiros (certamente animados pelo desejo de praticar uma boa acção) para ajudar uma velhinha a atravessar a rua. O facto de a dita senhora não querer de todo em todo atravessar pareceu-lhes coisa sem importância, em face da sua vontade de fazer o bem, para ficarem os três cheios de boa consciência e convencidos de que a teriam tornado mais feliz...Serve esta história para ilustrar o tipo de dilemas postos em jogo no ensaio mais recente de Pascal Bruckner (n.1948). Escrito num estilo vivo, intelectualmente ágil e por vezes apaixonante, este livro mergulha-nos em algumas das grandes questões das sociedades contemporâneas no Ocidente: se repararmos no subtítulo - "Ensaio sobre o dever de felicidade" -, perceberemos que o alvo essencial das suas críticas consiste no actual culto da felicidade modelada por padrões colectivos e imitáveis, essa espécie de mandamento hedonista ("Sejam felizes!") ao qual todos somos forçados a obedecer, vivendo para obter a todo o custo "a síntese admirável, a que acumula o êxito profissional, amoroso, moral, familiar" (p.14) e remetendo para o limbo quaisquer realidades associadas ao sofrimento, ao fracasso ou à morte.Recuando aos princípios doutrinários da moral cristã, Pascal Bruckner estabelece um rápido percurso histórico ao longo do qual nos vai explicando a evolução de alguns conceitos relacionados com a ideia de felicidade: reencontramos assim a visão tradicional que predominava até ao século XVII, para a qual deveríamos amar o sofrimento, já que, mantendo-se o paraíso inatingível (projectado no Reino dos Céus), as dores e os padecimentos terrestres serviam como privilegiado meio de purificação dos pecados e de acesso à salvação da alma após a morte.A partir do iluminismo inaugura-se uma outra fase radicalmente diferente, que abandona a ideia de uma esperança apenas virada para o além, a transcendência, e se reconcilia com a terra, com as "nourritures terrestres" de que falava André Gide (cf.p.61), embora tal esperança tenda a voltar-se para um futuro relativamente distante. De acordo com esse optimismo racionalista (vigente no século XIX e ainda numa grande parte do séc. XX), "o Éden é sempre mais tarde" (p.48), permanecendo a felicidade no horizonte de uma longa caminhada humana rumo à emancipação e à liberdade, valorizando-se o papel do progresso: "A ideia de progresso suplanta a da eternidade, o futuro torna-se o refúgio da esperança, o lugar da reconciliação do homem consigo mesmo" (p. 47).Na nossa época, todavia, as coisas apresentam-se de outra maneira, e Bruckner identifica diversos factores (p. ex. a revolução sexual, a sociedade de consumo, a falência das utopias colectivas, etc.) que terão contribuído para que os seres humanos desistissem de esperar e passassem não só a exigir o paraíso aqui e agora, mas também a desconfiar de quem assim não proceda. Deste modo se foi criando aquilo a que o autor chama uma "nova ordem moral" (p. 69), uma ideologia dominante que, proclamando a urgência da felicidade acima de tudo, acaba por nos tornar culpados por não nos sentirmos suficientemente felizes, gerando novas formas de angústia: "Outrora inimigos inconciliáveis, a moral e a felicidade fundiram-se; o que hoje é imoral é não ser feliz, o Superego instalou-se na cidadela da Felicidade e controla-a com punho de ferro" (p. 67).Dois dos campos em que se torna mais flagrante essa tirania do bem-estar obrigatório são os do sexo e da saúde: enquanto no primeiro caso o prazer corre o risco de se transformar numa "performance" (passando a implicar um dever ou uma regra de boa higiene), a preocupação com a saúde e com a boa forma física torna-se de tal maneira obsessiva que tende a dominar cada um dos nossos mais pequenos gestos, dentro de uma rígida moral voltada para a perfeição, estimulada pelas omnipresentes imagens da moda ou da comunicação social e pronta a punir severamente cada erro na sua vigilância atroz: "Já não usamos cilícios para refrear os ímpetos da carne, mas sim para castigar um corpo imperfeito, que não corresponde ao modelo ideal (...). Daí a frequente comparação entre os aparelhos das nossas salas de musculação e os instrumentos de tortura da Idade Média: a diferença é que agora somos todos supliciados voluntários" (pp. 73/75).Talvez como antídoto para estas novas ansiedades (mas inscrevendo-se no mesmo cenário social), aparecem hoje em força os arautos não de uma espiritualidade profunda (que implicaria difíceis exigências), mas sim de um "esperanto espiritual mundial acessível a todos" (p. 80), vozes como as do famoso brasileiro Paulo Coelho ou do Dalai-Lama, que para Bruckner representam várias versões de uma espécie de budismo "light", inofensivo e tanto mais confortável quanto nos propõe a fuga ao sofrimento, eventualmente eficaz como auto-ajuda ou terapêutica anti-stress...Para lá destes diagnósticos certeiros, o último livro de Pascal Bruckner espraia-se ainda em reflexões a respeito de múltiplos temas que aqui apenas me limito a enumerar - por exemplo sobre a banalidade, o tédio e o vazio com que preenchemos ou iludimos a passagem do tempo; sobre a vulgaridade triunfante do Kitsch como ideal burguês e a sua simétrica atitude vanguardista; sobre o papel-motor da inveja individual ou do dinheiro nas nossas sociedades democráticas; sobre o "crime de sofrer", novo tabu que em certas circunstâncias se torna, no entanto, um espectáculo mediático; ou ainda sobre a permanente obrigação de nos divertirmos, a miragem do "fun", que parece perseguir cada atitude humana, como sucede nas discotecas, definidas como "espaços histéricos onde o riso e a alegria são sempre um tanto forçados" (p. 151).Graças à leitura deste ensaio partilhamos, assim, um olhar estimulante a propósito de tudo o que nos rodeia e, mesmo que nem sempre estejamos de acordo, as suas páginas conseguem transmitir-nos, sem moralismos excessivos nem receitas pré-fabricadas para o bem-estar, uma lição de lucidez e de bom senso perante algumas vacas sagradas ou mitos contemporâneos. Não se trata, aliás, de negar o valor da felicidade ou de defender qualquer género de triste negativismo - pelo contrário, o que importa é reconhecer que a felicidade mais compensadora nunca depende muito de esforços voluntaristas ou da imitação de modelos colectivos, nascendo sobretudo da simples aceitação de alguns momentos de maior intensidade com que a vida nos sabe surpreender e podem, apesar de tudo, justificar a nossa passagem pelo mundo.

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