O estado do "Lied"

Muitos são os que consideram que a retirada de Dietrich Fischer-Dieskau supôs o fim de uma "idade clássica" de interpretação do "Lied", mas não tem havido falta de importantes intérpretes a revelar-se. A oportunidade de voltar a ouvir vários surge no mesmo momento em que os 75 anos de Dieskau são celebrados com uma monumental edição.

Fischer-Dieskau Edition20 CD + 1 CD bónus DG, dist. UniversalObviamente, seria necessário pelo menos todo um Sons para falar da arte de Dietrich Fischer-Dieskau e desta edição. Não sendo necessário reiterar quanto o barítono foi um incomparável intérprete de "Lied", o mais prolixo e importante que o disco registou, limitemo-nos a alguns pontos: 1) É assinalável o número de "Lieder" e árias que surgem pela primeira vez em CD; 2) Estando os discos disponíveis separadamente, só na caixa se encontra o bónus, de canções populares "arranjadas" por Haydn, Beethoven e Weber ; 2) Dê-se prioridade ao disco Brahms, com umas já conhecidas "Vier Ernst Gesänge" e uma impressionante colecção de 21 outros "Lieder", quatro dos quais inéditos em CD, e ao dos "Dichterliebe" de Schumann, na gravação com Dëmus, mas com, inéditos, todos os "12 Geditche" com textos de Kerner, mais sete outros "Lieder"; 3) Chame-se a atenção para alguns dos discos menos conhecidos, o de Liszt, o de Reger e Pzifner, o de Schoek e sobretudo o dos "Krämmersiegel" de Strauss e o dedicado a Debussy, Ravel e Ives; 4) Pela primeira vez surge disponível separadamente a colectânea dedicada a compositores que foram grande intérpretes, Mahler, Busoni, Reznieck, Wilhelm Kempf, Bruno Walter e Adolf Busch, cheia de curiosidades e de duas coisas que são algo mais, quatro "Knabenwunderhorn" de Mahler e outros tantos "Goethe-Lieder" de Busoni; 5) Atenção que, em relação aos três ciclos de Schubert, "Die Schöne Müllerin", "Winterreise" e "Schwangesänge", há outras gravações e melhores; 6) Sendo já arquiconhecidos, são sempre de referir os "Lieder" com orquestra de Mahler, um dos pináculos do intérprete; 7) Atenção finalmente, fora do campo do "Lied", ao disco Bach (uma clássica "Ich habe genuge") e Buxtehuede (duas cantatas inéditas em CD) e à primeira das duas colectâneas de árias de ópera (Haendel, Gluck, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Wagner).Brahms, Liszt"Lieder"Thomas Quasthoff, Justus ZeyenDG 463 183-2, 80'12'', dist. UniversalComo Olaf Bär ou Andreas Schmidt, Quasthoff é dos barítonos que mais atentamente colheram as lições do "mestre Dieskau". Contudo, se houve quem se lhe colassse em demasia (Schmidt), Quasthoff nada tem dos preciosismos às vezes amaneirados do mestre. O que nos surge neste disco, sobretudo em Brahms, é a imperiosa necessidade do "Lied" como expressão de um sentimento, digamos que como superfície de uma "alma" cujo fundo surge mais insinuado no piano (belo trabalho de Zeyen). Já em Liszt sobressai a grandiosa tentativa de síntese entre o clássico e o romântico dos "Três Sonetos de Pretarca", que é de algum modo a obra que se tornou no mais reiterado veículo de distinção de Quasthoff - mais que justificado (apesar de um italiano muito germânico), como se comprova neste disco."An die ferne Geliebte""Lieder" de Beethoven, Haydn e MozartWolfgang Holzmair, Imogen CooperPhilips 454 475-2, 79'30'', dist. UniversalNum variadíssimo reportório de ópera, opereta e "Lied", Holzmair anda a tentar afirmar-se e sucede que a raridade ou menor existência de registos discográficos de determinadas obras contribui mais para essa "afirmação" que um instrumento vocal que não é de particular beleza e um estilo algo prosaico. É no programa (e no trabalho de Cooper) que reside o interesse deste disco, que acolhe os primórdios do "Lied" germânico, com os inevitáveis "Adelaide" e o ciclo "An die ferne Geliebte" de Beethoven, mas também canções de Mozart e Haydn - e, deste, não apenas oito bem conhecidas canções inglesas, que muitos interpretaram, mas também quatro outras, germânicas. Nessa junção estará o maior interesse do disco, mas também a sua quase inutilidade - é que as canções inglesas são de facto composições bem mais interessantes e, se são óptimo veículo para o piano de Cooper, outros interpretaram essas canções bem mais idiomaticamente que Holzmair, mesmo que seja de registar uma certa contenção, sem abusos "folclóricos".Schumann"Liederkreis" op. 39, Romances e BaladasBryn Terfel, Malcolm MartineauDG 447 042-2, 77'30'', dist. UniversalO barítono galês foi uma das máximas revelações do canto na década de 90. Mas aquele vozeirão nas confidencialidades do "Lied"? Pois, foi uma surpresa, e de vulto, o seu recital Schubert, "An die Musik". Assim sendo, e conhecendo a voz, não surpreende que Terfel faça da veemência dos "Vier Husarlieder" op. 117 (note-se em particular o sombreado no último) e da "Trägodie" op. 64 (um delicioso "piano" na segunda dessas baladas; a terceira, note-se, é cantada em uníssono pela soprano Lorna Anderson e o tenor Timothy Robinson, para o registo da "opus" ficar completo) e de outros romances e baladas um seu campo de eleição. Mas os "Liederkreis", que são do mais "íntimo" que Schumann escreveu? Pois bem, são de uma inteligência (por certo com um grande contributo de Martineau), plasticidade e expressividade absolutamente notáveis, e Terfel junta-se a Bär, Goerne e Prègardien no restrito círculo dos maiores schumannianos actuais - não, decididamente não acabou "tudo" com Fischer-Dieskau. Um grande disco!"Diamonds in the Snow"Canções Nórdicas de Grieg, Sibelius, Stenhammar, Alfvén e SjöbergBarbara Bonney, Antonio PappanoDecca 466 762-2, 71', 37'', dist. UniversalSejamos taxativos: entre as sopranos, Bonney é a máxima interprete de "Lied" da actualidade. Acrescente-se agora um pormenor que só em parte é de ordem privada: a cantora americana é quase meia sueca, pelo casamento com o barítono Hakan Hagegard e por estadias que, nomeadamente, se concretizaram na sua participação nas representações e gravações de óperas de Mozart com "instrumentos de época" no Teatro Real de Drothingolm, com direcção de Arnold Östman. Eis assim que ela se "intromete" num reportório em tempos divulgado pelas duas enormes sopranos que foram Flagstad e Nilsson (o oposto da voz "frágil" de Bonney) e onde hoje se reconhece uma Van Otter, num recital de título recolhido em "Diamant pä Marssnön" ("neve de Março") de Sibelius. Pois bem, é um recital de grande beleza, em que Bonney beneficia, aliás, da companhia de um dos melhores acompanhadores vocais do presente, Antonio Pappano, aqui numa faceta muito menos conhecida que a de maestro operático. Se no norueguês Grieg se fundamenta a canção "erudita" nórdica e no finlandês Sibelius ela teve o mais requintado cultor, Bonney inclui também oito outras canções dos suecos Stenhammar, Alfvén e Sjöberg. A soprano é soberanamente "natural" (uma "naturalidade" que é requintado "artifício", como próprio do "Lied" - e o modelo germânico está bem patentes nestas obras) nas canções de Grieg, de inspiração claramente popular, sobretudo na "Solveigs sang", composta para o famoso quase "leitmotiv" do "Peer Gynt" de Ibsen. Mas ela aventura-se também (é o outro pólo de destaque do disco), com um óptimo suporte de Pappano, ao épico "Flickan kom ifran sin alskings mote" de Sibelius. Notável!"Mélodies"Christine Schäffer, Irwin GageDG 459 682-2, 75'76'', dist. UniversalOh, "heure exquise!" (pois, "c'est dommage", mas não existe propriamente tradução portuguesa). Que requinte, que elegância! Em rigor, nas "Fêtes Galantes" de Debussy talvez fosse necessária mais alguma elaboração, mas "Nocturne", "Printemps triste", "La Nuit" e "Réveil" (nestas duas últimas com a meio-soprano Stella Doufexis - e muito bem) de Chausson são admiráveis momentos de encantamento e "rêverie", não isentos de um murmúrio ferido (o segundo), mas igualmente de enebriamento (os dois últimos, sobretudo "La Nuit"). E para mais há Gage, um veterano nesta andanças, que além do seu pianismo foi por certo decisivo na meticulosa organização do programa. "Charmant"! "The English Songbook"Ian Bostridge, Julius DrakeEMI 5 56830 2, 69'13''Este disco já circula há alguns meses, mas vem a calhar "repescá-lo" neste quadro da actualidade discográfica, e até na perspectiva do regresso do tenor à Gulbenkian, no próximo dia 2. Sinteticamente, reitere-se a beleza da voz e a inteligência, mas até agora continuo a preferir Bostridge na oratória em vez de no "Lied", no qual as suas interpretações de Schubert e Schumann (mormente dos "Dichterliebe" do último) me parecem insuficientemente maturadas - opinião minoritária, esclareça-se. Mas, assim sendo, e na expectativa do desafio de alguns dos "Morike Lieder" de Wolf na Gulbenkian, esta colectânea de canções inglesas de inspiração popular confirma-me (depois de algumas de Britten já anteriormente gravadas) ser este um campo de eleição do tenor. No campo do canto com piano (e é Drake que aqui está!) este é sem dúvida o disco de Bostridge que prefiro - é "sweet music", como se diz no emblemático "Orpheus with his music" de Edward German, com texto de Shakespeare.

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