A saga dos protestantes da Madeira

O realizador de cinema Sam Mendes, cujo filme "Beleza Americana" ganhou este ano cinco óscares, é de origem portuguesa. Mas o que levou a família dos Mendes a fugir da Madeira, rumo às Antilhas, em meados do século passado? Tudo começou quando o médico escocês protestante Robert Kalley decidiu, em 1838, fixar-se no Funchal. Uma história pouco conhecida de perseguição religiosa em Portugal.

No turbulento Portugal do século XIX, 1846 é o ano da Maria da Fonte e da Patuleia, duas revoltas populares que puseram o país a ferro a fogo. Toda esta agitação faz passar relativamente despercebidos os acontecimentos registados na Madeira, nesse mesmo ano. O essencial dos factos conta-se em três pinceladas. Em Agosto de 1846 e nos meses seguintes, cerca de 2000 madeirenses de religião protestante são obrigados a abandonar a ilha, devido a perseguições religiosas. Os fugitivos acolhem-se primeiramente nas Antilhas. Dois anos depois, muitos deles rumam aos EUA, fixando-se no estado de Illinois. A questão, que dividiu a sociedade madeirense e quase originou um conflito diplomático com a Inglaterra, constitui o único caso de perseguições religiosas em massa de que há notícia no nosso país, depois da expulsão dos judeus por D. Manuel I, nos finais do século XV. Entre os descendentes dos fugitivos conta-se o conhecido cineasta Sam Mendes, realizador do filme "Beleza Americana", tetraneto de madeirenses que se radicaram nas Antilhas.Robert Reid Kalley, médico e pastor protestante escocês, é o protagonista desta história. Nascido em 1809, nos subúrbios de Glasgow, Kalley licenciou-se em Medicina aos 20 anos, tendo começado como cirurgião em navios que faziam a rota da Índia. Em matéria de religião, o jovem Kalley era agnóstico e as desigualdades sociais que observa na Índia mais aprofundam o seu cepticismo. Todavia, sensibilizado pelos casos dramáticos de alguns doentes, converte-se ao cristianismo, por volta de 1834. Adere à Igreja da Escócia, do ramo presbiteriano, estuda Teologia e oferece-se como missionário para a China. Mas os responsáveis eclesiásticos negam-lhe a pretensão, temendo que o débil estado de saúde da mulher de Kalley, Margaret Crawford, se agravasse. Em troca, autorizam o casal a estabelecer-se na Madeira, ilha que Kalley conhecia das suas viagens marítimas.Desembarcados no Funchal em 12 de Outubro de 1838, os Kalley vão engrossar a numerosa colónia britânica na Madeira, dona e senhora da economia insular. Os ingleses dedicavam-se sobretudo ao comércio dos vinhos, mas o seu dedo fazia-se sentir em quase todos os ramos de negócio, das agências de navegação aos câmbios, da indústria à importação de bens essenciais. Gozavam, além disso, de importantes privilégios, como o direito à escolha de juiz nos conflitos com cidadãos portugueses. "A Madeira está em grande parte anglicizada, na raça, nos costumes, na propriedade, no comércio, na moeda; e a língua inglesa é aqui a mais falada depois da nacional. Só o brio português nos mantém portugueses", lamentava, em 1873, o jurista Álvaro Rodrigues de Azevedo. O jornal inglês "The Empire" chega mesmo a sugerir, em 1897, a cedência da Madeira à Inglaterra, ou a sua compra pela coroa britânica.Mas Kalley não é mais um súbdito de Sua Majestade que vem sacudir a árvore das patacas madeirense. A sua principal missão na ilha começa por ser a prática da medicina. Depois de aprender português, matricula-se na Faculdade de Medicina de Lisboa, que em Junho de 1839 o autoriza a exercer a sua profissão em Portugal. O novo médico destaca-se desde logo pela atenção que presta aos mais desfavorecidos. Em 1840 abre no Funchal um hospital com 12 camas, consultório e farmácia, no qual trata gratuitamente os doentes pobres. Os ricos também o procuram, mas a esses Kalley cobra bom dinheiro. Consegue assim financiar o seu hospital e, segundo diz, "afastar" os mais abastados, para se dedicar inteiramente aos pobres. Em pouco tempo, a fama do "santo inglês" estende-se por toda a ilha e obtém até reconhecimento oficial. Num acto inédito, a Câmara Municipal do Funchal aprova um voto de louvor ao "bom doutor inglês", em Maio de 1841.Contudo, os interesses de Kalley eram também religiosos. Ordenado pastor presbiteriano em Julho de 1839, pela Sociedade Missionária de Londres, Kalley tentou, desde o início, catequizar os madeirenses, ainda que discretamente. Antes das consultas, costumava rezar com os doentes e nas receitas que prescrevia podiam ler-se passagens da Bíblia. Esta actividade doutrinária torna-se evidente quando as preocupações de Kalley se estendem à educação. Numa época em que o sistema de ensino público era mais que insuficiente e a instrução um privilégio dos mais endinheirados, o médico escocês reúne alguns professores e cria pequenas escolas primárias, em freguesias como Santa Cruz Ribeira de Machico, Porto da Cruz e Santo António. Estima-se que Kalley tenha fundado 17 escolas, entre 1839 e 1845, que deram a conhecer as primeiras letras a mais de 2000 crianças e adultos.Os textos escolares eram extraídos da cartilha oficial, mas também da Bíblia. E aqui começaram os atritos. Kalley interpreta os textos bíblicos à luz da doutrina presbiteriana, diferente do catolicismo por rejeitar a autoridade do Papa, o culto dos santos e da Virgem Maria e minimizar a importância dos sacramentos. Com o tempo, as escolas transformam-se em núcleos de propaganda religiosa e centros de reunião dominical, onde se lê e estuda a Bíblia. "Em 1842, especialmente no Verão e no Outono, o povo acorreu em grande número para ouvir as Escrituras lidas e explicadas", escreve João Gomes da Rocha, um português que Kalley adoptou como filho, no seu livro de memórias "Lembranças do Passado". "Muitos deles caminhavam durante dez ou doze horas e escalavam montanhas de mil metros de altitude à ida e à volta para suas casas; durante muitos meses, creio, não havia menos que um milhar de presenças, cada domingo, geralmente excediam os dois milhares; ocasionalmente três milhares e uma vez foram cerca de cinco mil", garante.De acordo com a lei fundamental da época, a Carta Constitucional de 1826, os portugueses podiam apenas professar a religião católica romana, credo oficial do reino. Todavia, admitia-se que os estrangeiros praticassem outras religiões, "em casas para isso destinadas sem forma alguma exterior de templo". No caso dos ingleses, esse direito era reforçado por um tratado de 1842, que garantia expressamente aos súbditos britânicos o livre exercício das suas crenças. A Carta Constitucional assegurava ainda que ninguém seria "perseguido por motivos de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública". Mas esta fórmula era tão vaga que dificilmente os não católicos se sentiriam protegidos.Em 1841, chega aos ouvidos do governo central que um médico e pastor escocês faz proselitismo protestante na Madeira. Como resposta, o governo dirige uma portaria ao bispo do Funchal, D. Januário Vicente Camacho, ordenando-lhe que ponha termo à evangelização de Kalley. O bispo, amigo e cliente de Kalley, pede-lhe que renuncie à propaganda religiosa. Mas este não cede e continua as suas pregações. Por essa altura, a maioria dos madeirenses estava do lado de Kalley. Como reconhece a "Revista Histórica do Proselitismo Anti-católico exercido na llha da Madeira pelo Dr. Roberto Reid Kalley", um panfleto de 1845, a atitude do governo central indignou os ilhéus. Num gesto de solidariedade, circularam pelo Funchal petições e abaixo-assinados, "a favor da inocência" das práticas religiosas de Kalley e "dos serviços por ele prestados à Humanidade".Este sentimento de tolerância teve curta duração. Depois de uma viagem à Escócia, em finais de 1842, Kalley expressa, mais abertamente que nunca, o seu pensamento religioso. Ou, como pretende a "Revista Histórica", "despe por uma vez as cândidas roupas da caridade e da filantropia, para vestir a negra toga do proselitismo". Alguns católicos acusam-no de abusar da sua posição de médico e de só tratar doentes que aceitem as suas doutrinas. "Bem poucas ou nenhumas são por ele agora atendidas em suas moléstias, a não prestarem atenção às suas longas práticas protestantes", sustenta a "Revista Histórica". Versão diferente apontam os investigadores protestantes que estudaram a acção de Kalley em Portugal. Segundo o pastor americano Michael Testa, autor de "O Apóstolo da Madeira", uma biografia de Kalley publicada em 1963, o despertar da animosidade contra o médico escocês deveu-se ao clero católico. "Instigações contra os hereges calvinistas, nome dado aos cristãos reformados, eram lançadas dos púlpitos", afiança Testa. "Dichotes ridículos eram ensinados às crianças. Ouviam-se discussões azedas nas lojas ou nas esquinas e artigos e panfletos de polémica inflamada eram distribuídos abundantemente", acrescenta.A partir de 1843, a reacção das autoridades madeirenses contra Kalley e os seus seguidores é nítida. Em Janeiro desse ano, o administrador do concelho do Funchal, João Crisóstomo Uzel, aconselha-o a não falar de assuntos religiosos aos portugueses, sob pena de ser processado. Na mesma linha, o governador civil do Funchal adverte a população sobre a ilegalidade das práticas protestantes. A hierarquia católica, por sua vez, instaura um processo por heresia contra dois madeirenses convertidos ao protestantismo, Francisco Pires Soares e Nicolau Tolentino Vieira. Estes, "abandonando a Religião Católica Romana, apostataram", lê-se numa carta de Janeiro de 1843, dirigida pelo governador do bispado, Clemente Salgado, ao vigário-geral da diocese, Sebastião Vasconcelos. Condenados pela câmara eclesiástica do Funchal, Pires Soares e Tolentino Vieira são formalmente excomungados, em Abril de 1843. "Que ninguém lhes dê fogo, água, pão ou qualquer outra coisa que venham a precisar para a sua subsistência. Que ninguém lhes pague qualquer dívida; que ninguém os socorra ou auxilie em qualquer coisa que porventura tragam a juízo", lê-se na sentença de excomunhão, assinada por Sebastião Vasconcelos.O próprio Kalley começa a ser hostilizado pela população que antes quase o venerava. Recebe ameaças de morte e a sua residência é apedrejada. As autoridades concedem-lhe protecção policial, mas publicam no jornal madeirense "O Defensor", em Fevereiro de 1843, um ofício em que acusam o médico de ser o responsável pela situação. Para não correr riscos, "bastava-lhe não se obstinar contra tantas advertências, desistir de suas catequeses, deixar de ostentar em terra de cristãos o espírito dos antigos mártires em terras de infiéis". Em Março, o administrador do concelho intima Kalley a não "admitir em sua casa reuniões de súbditos portugueses, nem a dirigir-lhes práticas, palestras ou discursos sobre matérias religiosas". Dias depois, o mesmo administrador ordena aos regedores das paróquias que impeçam os professores das escolas de Kalley de continuar a ensinar.O médico defende-se destes ataques publicando um panfleto intitulado "Uma Exposição de Factos", que constitui uma súmula dos seus pontos de vista. Mas o cerco aos "hereges calvinistas" aperta-se cada vez mais. Em Abril de 1843, as autoridades religiosas processam Kalley pelo crime de apostasia, acusando-o de explicar a Bíblia em português, "segundo a doutrina da sua seita", e de ter "conduzido à comunhão de sua igreja alguns iludidos". Pelas mesmos motivos, é aberto no tribunal do Funchal um processo-crime, que leva à prisão preventiva de Kalley e de 26 "calvinistas", em Julho de 1843. A ofensiva prossegue com uma pastoral do bispo do Funchal, que considera que as Bíblias utilizadas por Kalley estavam adulteradas. Além de serem editadas em Inglaterra - um bastião do protestantismo -, não tinham a totalidade dos livros exigidos pelos cânones católicos e apresentavam diferenças de tradução. Deviam, portanto, ser apreendidas, bem como todas as obras de propaganda "calvinista".Kalley é libertado passados seis meses, pois o procurador régio, em Lisboa, entende que o crime de apostasia se tinha extinguido com a Carta Constitucional. Alguns juízes madeirenses, contudo, não foram da mesma opinião e tiveram mão pesada com os "calvinistas" detidos. Um deles, José Ferreira Lomelino, abastado proprietário, foi deportado para África. Mas o caso mais sério foi o de Maria Joaquina Alves, mãe de sete filhos, condenada à morte por blasfémia, em Maio de 1844. Valeu-lhe um erro técnico no processo, que levou à comutação da pena pelo Tribunal da Relação de Lisboa.A prisão não esmoreceu Kalley, que prosseguiu a sua propaganda religiosa, centrada agora na zona de Santo António da Serra, a 24 quilómetros do Funchal. A Igreja da Escócia é que receava que a ousadia do médico deitasse a perder o trabalho já realizado. Embora a confiança em Kalley se mantivesse, a Igreja nomeia outro pastor para a Madeira, William Hewitson, que chega à ilha em Fevereiro de 1845. Este levava como missão continuar o trabalho de Kalley e, dentro dos estreitos limites impostos pelas autoridades, organizar a igreja presbiteriana madeirense. Para não despertar suspeitas, Hewitson instala-se em casa do pastor da comunidade britânica no Funchal. Com a ajuda de Kalley, baptiza clandestinamente alguns madeirenses, promove encontros e cerimónias de culto. Por fim, em 8 de Maio de 1845, é fundada secretamente a Igreja Presbiteriana do Funchal, a primeira a ser criada em solo português.Por muito discretas que fossem, estas movimentações não podiam deixar de atrair a atenção das autoridades. Sabe-se que em Dezembro de 1845 estavam presos 28 "hereges", pessoas que se tinham declarado abertamente protestantes, que tinham sido surpreendidas em reuniões religiosas ou simplesmente na posse da Bíblia presbiteriana. Nas colunas da imprensa madeirense, nos jornais "O Imparcial" e "O Defensor", duros artigos contra Kalley competiam com escritos a seu favor. Os mais radicais incitavam a população contra os "leitores da Bíblia". Como resultado destes apelos, entre Junho e Julho de 1846 assinalaram-se diversos casos de espancamento de "hereges" e cinco casas foram incendiadas. Os "calvinistas" vêem também as autoridades negar-lhes o direito a enterrar os seus mortos nos cemitérios católicos, vendo-se forçados a sepultá-los em terrenos baldios ou nos caminhos públicos. Mas o mais grave estava ainda para acontecer.Na noite de 2 de Agosto de 1846, um grupo de populares, chefiado por um padre católico, o cónego Teles de Meneses, arromba a residência de uma cidadã britânica, Miss Rutherford, onde estavam reunidos 40 "calvinistas". A intervenção da polícia evitou o pior, mas adivinhava-se que novos ataques estavam em preparação. A 8 e 9 de Agosto, uma explosão de violência tem lugar nas localidades de maior penetração protestante. A altas horas da noite, em Santo António da Serra e no Lombo das Faias, populares e soldados atacam casas de "hereges", expulsam os seus locatários, matam-lhes os animais e saqueiam as provisões. De nada valem os protestos da comunidade britânica e de muitos madeirenses contra este serôdio espírito de cruzada. Na sequência dos tumultos, 22 protestantes são presos, enquanto centenas de outros fogem para os campos.Como seria de esperar, Kalley é o alvo preferido dos antiprotestantes. Mas o médico troca as voltas aos seus perseguidores. Disfarçado de mulher, deitado numa rede usada para transportar doentes, consegue refúgio numa quinta próxima da sua residência. Ao raiar do dia 9 de Agosto, embarca no navio britânico "Forth", ancorado na baía do Funchal, que o leva são e salvo à ilha de Trindade, nas Antilhas. Entretanto, os anti-protestantes destruíam tudo quanto lhes cheirasse a "calvinismo". A casa de Kalley e algumas das suas escolas foram incendiadas. O seu hospital foi saqueado e parcialmente destruído. Na praça principal do Funchal, numa espécie de auto-de-fé, foram queimadas Bíblias e outras publicações "herejes".Os protestantes que tinham conseguido escapar erravam pelos matos e montanhas da ilha. Quem fosse apanhado, arriscava-se a uma dupla condenação: ser encarcerado pelo poder civil e excomungado pelas autoridades religiosas, com as graves consequências que daí resultavam. Os poucos que permaneciam em liberdade não tinham melhor sorte, pois sentiam na pele a discriminação de muitos dos seus conterrâneos.Por essa altura, a Inglaterra tinha em curso um plano de recrutamento de trabalhadores para as suas colónias nas Antilhas Menores. Navios britânicos eram enviados a países estrangeiros, para angariar mão-de-obra e conduzir os emigrantes ao seu destino. O "Forth", que deu abrigo a Kalley, era um desses navios. Outro era o "William", que também estava ancorado no Funchal nesse final de Agosto de 1846. 0 "William" será a primeira tábua de salvação dos protestantes madeirenses. A 23 de Agosto, o navio larga do Funchal, levando a bordo mais de 200 refugiados, embarcados pela calada da noite, nas praias mais desertas. Quase todos iam sem bagagem e vestiam roupas oferecidas pela tripulação. Dias depois, embarcam no "Lord Seaton" mais 500 pessoas, a que se somam centenas de outras, nos meses seguintes. Calcula-se que cerca de dois mil madeirenses tenham sido forçados a exilar-se, para escapar à vaga de intolerância religiosa.Os refugiados distribuem-se pelas ilhas de Trindade e Tobago, Antigua, St. Kitts, Demerara e Jamaica. Uns empregam-se nas plantações de açúcar, cacau e café, outros trabalham como barbeiros, alfaiates, carpinteiros e sapateiros. Mas quase todos se davam mal com o clima dos trópicos, muito diferente das amenas temperaturas da Madeira. Para agravar a situação, em 1847 a economia das Antilhas é fortemente abalada pela baixa de preço do açúcar, que leva à falência das principais empresas da Trindade e ao abandono pelo governo britânico de empreendimentos que davam trabalho a muitos emigrantes.Lançam então um apelo à Sociedade Protestante Americana e à União Cristã Americana, em Março de 1848, solicitando a cedência de terra para se instalarem nos EUA. A resposta é favorável. Os primeiros madeirenses - mais de uma centena - chegam em Novembro de 1848 a Baltimore, onde são calorosamente acolhidos pela comunidade protestante local. Meses depois, em Maio e Junho de 1849, mais 500 refugiados trocam as Antilhas pelos EUA, em barcos fretados pelas organizações protestantes americanas.A terra prometida dos madeirenses situava-se no estado de Illinois, entre as cidades de Jacksonville e Springfield. Tinha sido cedida por uma empresa, a American Hemp Company, que se comprometera igualmente a dar emprego aos emigrantes. Porém, à última hora a empresa dá o dito por não dito, e os cerca de 700 madeirenses que já tinham viajado para Illinois têm que regressar a Nova Iorque. Ao saberem disto, os membros das igrejas protestantes de Jacksonville, Springfield e Waverly mobilizam-se. Chamam os emigrantes de volta e põem-nos a viver em suas casas, enquanto não lhes arranjam melhor acomodação e empregos dignos.O "responsável" por este êxodo, Robert Kalley, não se alheou da sorte dos seus seguidores madeirenses. Embora prosseguisse a sua doutrinação em terras distantes - em Malta e na Palestina -, mantinha contactos com os exilados e passou mesmo o Inverno de 1853 em Illinois. Apoiado pelo governo britânico, Kalley pediu ao governo português uma indemnização pelos danos sofridos com a destruição da sua casa na Madeira. Portugal não quis pagar à primeira e o assunto arrastou-se durante sete anos. Houve artigos nos jornais, troca de notas diplomáticas e alguns incidentes que azedaram as relações luso-britânicas. A questão acabou por compor-se em 1853, com o pagamento por Portugal de uma indemnização de sete contos de reis. Depois de alguns anos de acção pastoral no Brasil, Kalley faleceu em Edimburgo, em 1888.Os madeirenses adaptaram-se facilmente à vida no Illinois. Americanizaram os apelidos - os Rodrigues tornaram-se Roderick, os Oliveiras converteram-se em Oliver e os Ferreiras passaram a Smith - e dedicaram-se à agricultura e ao comércio. Alguns prosperaram, como o agricultor Emanuel Gouveia e o comerciante Frank Meline, que depois de ter começado por vender sapatos em Jacksonville, se tornou um grande proprietário, chegando a comprar a mansão da actriz Mary Pickford, em Beverly Hills. Entre os que optaram por ficar nas Antilhas, destacam-se os Mendes, figuras de relevo na vida política e cultural de Trindade e Tobago. É deles que descende Sam Mendes, encenador e cineasta britânico de ascendência portuguesa, realizador de "Beleza Americana", filme sensação do ano transacto.Apesar de esquecida em Portugal, a saga dos protestantes madeirenses mantém-se viva nas terras que os acolheram. Na Internet, há "sites" americanos que focam o assunto, incluindo as listas de passageiros dos barcos que transportaram os refugiados para os EUA (http://www.halcyon.corn/www3kleber/genealogy/shipov.htm). Ali, mais de um cidadão americano tem localizado os nomes dos seus bisavós e, com eles, uma remota costela portuguesa.

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