Fata Morgana contra a Pléiade

"O Retiro Pelo Risco" é um lugar para descobrir Henri Michaux. Ele, que disse: "Escrevo para que aquilo que era verdade deixe de o ser." Antologia poética com excelente tradução de Júlio Henriques, sem papel bíblia e sem solenidade.

No último Salão do Livro de Paris, Henri Michaux estava a ser traficado com toda a pompa. Por pouco mais de 12 contos, dezenas de milhares de pessoas podiam levar para casa o seu Michaux de capa dura em papel bíblia, volume I. Ah!, a "prestigiada" colecção Pléiade, esse Olimpo de prateleira em que se comprimem os grandes touros sentados da literatura: lá estava ele, o que viveu contra, o que era contra, o que é contra, levado à solenidade na banca central da Gallimard, entre "best sellers" de ocasião.Mas não se lembram? Não se lembram do que Michaux disse sobre a Pléiade? Em "O Retiro pelo Risco", antologia poética editada no fim do ano passado pela Fenda, cita-se a recusa do poeta: "Eles fariam de mim definitivamente um profissional, em vez do amador que prefiro ser e continuar a ser. Trata-se de um verdadeiro dossiê onde uma pessoa se vê encerrada, uma das mais odiosas impressões que podemos ter e contra a qual lutei toda a vida. Cercear, reduzir, em vez de amontoar, esse é que seria o meu ideal."Mais próximo desse ideal de solidão e austeridade para o que é um livro (cada livro) estão as edições da Fata Morgana, casa a que Henri Michaux aliás se acolheu para publicar, nos últimos anos de vida - para citar alguns, "Bras cassé", "Par la voie des rythmes", "Ideogramas na China" (que a Cotovia editou o ano passado), "Jours de silence", "Affrontements", "La jardin exalté" ou o derradeiro "Par des traits".Há um justíssimo texto de J. M. G. Le Clézio (também publicado na Fata Morgana, a partir dos poemas "Iniji" e "Icebergs", de Michaux) sobre a contenção única perseguida pelo poeta: "O que espanta, na poesia de Henri Michaux, é esta força, unida a este silêncio. Não existe, seguramente, outro poeta deste mundo ocidental (visto que nele encontramos naturalmente muito mais afinidades com o Oriente, e essa ciência da economia que são os haikai) que saiba dizer tanto em tão poucas palavras."Adianta Le Clézio que "o poder desta palavra é o da acção" e a sua natureza "a criação imediata, à maneira de um gesto ou de uma dança"; que somos "tomados pela urgência do que é dito, do que é mostrado: coisas secretas, coisas sagradas, por vezes, que não pudemos saber ver e que ficaram num plano anterior da consciência", coisas "à beira do infinito", no limite do som, da cor, do gosto, do calor", coisas que o poeta captou e depois devolveu "pela vibração de algumas sílabas". Será um trabalho de "notações mágicas". "No País da Magia" é precisamente o título de um dos seus livros (tradução portuguesa de Aníbal Fernandes, na Hiena) e "As Magias" chamou Herberto Helder ao livro de poemas mudados para português em que Henri Michaux é a voz primeira (com "Iniji"). Anos depois, em 1997, Herberto regressaria a Michaux, dedicando-lhe mais de 100 páginas do seu "Doze Nós Numa Corda - poemas mudados para português".O ano passado, na celebração do centenário do poeta, várias edições acrescentaram (um pouco mais) Michaux em português: "Equador" e "Um Bárbaro na Ásia", traduzidos por Ernesto Sampaio para a Fenda, "Antologia", traduzida por Margarida Vale de Gato para a Relógio d'Água, "As Minhas Propriedades", traduzidas por José Carlos González para a Fenda, o muito breve "Ideogramas na China", na Cotovia, e finalmente esta antologia poética, pretexto para voltarmos ainda a Michaux, "O Retiro pelo Risco", organização, posfácio e notas de Jöelle Ghazarian, introdução de Pierre Bettencourt e (excelente) tradução de Júlio Henriques.Todas as antologias e colectâneas contêm parte da estranheza que sentimos perante a compacta Pléiade: a concentração (neste caso, fragmentária) do que era uno e estava disperso. Neste volume, ora estamos no mar de "Épreuves, exorcismes" (1940), ora entre os Córdobos ("homens e mulheres à beira do abismo do amor e que jamais se encontram") de "Viagem na Grande Garabanha" (1936). Estamos em Podema (1948) - "Tinha acabado de chegar. Era a primeira vez. Havia lá muitas mulheres, belas, com magnetismo. Amei-as logo. Amei-as em massa, e a cidade recuava, como uma cidade que não nos conhece." - e mais à frente, em 1957, quando Michaux parte um braço e descobre "o homem esquerdo", e mais à frente ainda quando cruza a mescalina e a música (1961), e quase no fim, em 1983, quando escreve que "há-de pintar o Sol, o próprio Sol, o grande e ofuscante Sol" - foi um ano antes da sua morte, já pintava muito mais do que escrevia.A edição está organizada em quatro partes: a primeira ocupa mais de metade do volume e reúne textos e poemas sob o título genérico Da Escrita, a segunda inclui cinco textos sobre a Escrita e o Desenho, a terceira, recupera alguns escritos sobre drogas, nomeadamente mescalina, e a quarta, evocações de amigos: por exemplo, Alfredo Gangotena (o seu companheiro de viagem pelo Equador, a quem via como "poeta habitado pelo génio e pela desgraça"), ou Paul Celan: "Era nele excessivamente grave aquilo que era grave".No posfácio ("Um Vivo desertor") Jöelle Ghazarian escreve: "Henri Michaux é contra e só mede forças consigo mesmo, nunca dando por concluída a aventura de ser homem, escapando assim a qualquer outra tirania sem sucumbir à loucura ou ao suicídio; isso há-de compensá-lo de ter sido condenado a viver, a viver tal e qual como ele era e sem ceder a este mundo que não escolheu nem criou, nem pode contar com a sua adesão. Podemos pois existir sem o desejo de posse. Podemos pois percorrer-nos durante toda a vida sem nos empobrecermos. Podemos pois viver sem nos resignarmos."Ele, o que viveu contra as aparências como uma aparição, anunciou: "Eu escrevo para que aquilo que era verdade deixe de o ser. Prisão mostrada já não é prisão."

Sugerir correcção