Torne-se perito

Quem buzina sempre alcança

O Governo estava com medo, mas no fim sentiu-se com boas razões para respirar de alívio. "Desta safámo-nos!", terá Jorge Coelho transmitido telefonicamente a António Guterres. Directamente do Terreiro do Paço para a cidade do Cairo. É que o "buzinão" de protesto contra os aumentos dos combustíveis não foi tão grande como o Governo receava e hoje as empresas de transporte de mercadorias deverão cancelar a marcha lenta marcada para amanhã. Jorge Coelho e Pina Moura negociaram vantagens fiscais e descontos nas portagens para os camionistas. Mas no Governo percebeu-se que o protesto dos automobilistas portugueses, que se generalizou pelo país, é um sério aviso a um Governo que já não deverá contar com mais um dia sequer de "estado de graça". Porque, como ontem se dizia na Ponte 25 de Abril: "Quem buzina sempre alcança."

O entusiasmo de algumas apitadelas na Ponte 25 de Abril, em Lisboa, chegou a fazer lembrar o célebre "buzinão" que deitou o cavaquismo abaixo. Milhares de automobilistas buzinaram contra os aumentos dos combustíveis e o activismo político e cívico logo se instalou ao fim da tarde de ontem na zona da portagem. O mote era dado por um panfleto que o presidente da Associação de Utentes da Ponte e candidato à Presidência da República, Aristides Teixeira, indiferente à intempérie, distribuía aos automobilistas: "Quem buzina sempre alcança." Os directos televisivos sucediam-se, a chuva impiedosa não perdoava, os políticos de oposição, sobretudo do PCP, do Bloco de Esquerda e Paulo Portas - que optou por um discreto protesto acompanhado pelas câmaras de televisão - multiplicavam-se em declarações contra o Governo a partir da calçada em frente à residência oficial do primeiro-ministro, António Guterres, ou de outros pontos de Lisboa. O Governo, porém, recolhido em S. Bento - onde só estava o ministro-adjunto Armando Vara -, nos salões do Ministério do Equipamento, onde Jorge Coelho, que substitui Guterres, e o ministro da Economia, Pina Moura, negociavam com a associação representativa das empresas de transporte de mercadorias (Antram), ou tão-só a olhar lá de longe, do Egipto, onde António Guterres e o ministro dos Estrangeiros, Jaime Gama, dirigiam a cimeira União Europeia-África, respirou de alívio, quando a noite caiu sobre o país. As buzinas foram-se calando aos poucos e Jorge Coelho pôde suspirar: "Desta safámo-nos!"Na verdade, o Governo exibia ontem dois motivos para mostrar um contentamento moderado. O "buzinão" de protesto contra o aumento dos combustíveis foi grande, mas não teve a dimensão gigantesca que alguns governantes temiam em privado. Por outro lado, a negociação conduzida pelos ministros Jorge Coelho e Pina Moura com a direcção da Antram terminou com sinais evidentes de que o protesto dos camionistas marcado para amanhã deverá ser desconvocado. Jorge Coelho e Pina Moura terão conseguido desmobilizar uma das acções de protesto que mais complicações provocaria ao Governo - a das empresas de transportes de mercadorias. António Guterres foi acompanhando telefonicamente o evoluir da situação em Lisboa e falou pelo menos duas vezes com o seu ministro do Equipamento antes de as buzinas começarem a soar pelo país e antes de receber a boa nova sobre o "acordo de princípio" a que os seus dois ministros haviam chegado com os representantes dos camionistas.Na verdade, tudo leva a crer que a marcha lenta de camiões marcada para amanhã não se realizará. Uma nova reunião está prevista para hoje, sendo quase certo que a Antram e o Governo vão celebrar um acordo já delineado, no essencial. Com o aumento de combustíveis, dois aspectos pesavam na contestação da Antram: o alargamento da dedução completa do IVA sobre o gasóleo aos transportes particulares, com o que isso implicava de desvalorização das transportadoras profissionais representadas pela Antram; e a reclamação de maiores descontos nas portagens. Osvaldo Costa, presidente da Antram, disse ao PÚBLICO que ontem se deram "passos importantes" para a resolução do conflito: o Governo comprometeu-se a "esclarecer" a nova modalidade das deduções do IVA e a questão das portagens está encaminhada para um acordo. Mesmo assim, Osvaldo Costa fez questão de frisar que a marcha lenta se mantém de pé, "até às três da tarde" de hoje. Depois, logo se verá. Mas é pouco provável que Jorge Coelho, com mais ou menos cedências, não consiga desmobilizar o ímpeto contestatário da associação.Na frente dos transportes de passageiros e dos táxis, representados, respectivamente, pela Antrop e pela Antral - associações igualmente muito críticas do aumento de 15 escudos no gasóleo -, continua a decorrer o processo de revisão tarifária, a cargo do secretário de Estado da Indústria e Energia, Vítor Santos. Fernando Rosa, presidente da Antrop, não está "satisfeito, nem nada que se pareça", com o desenrolar dos acontecimentos, mas, para já, não há quaisquer perspectivas de acções de protesto. Mas, se os camiões saírem das fileiras dos protestos, isso pode representar um significativo esvaziamento da contestação e, em certa medida, é nisso que o Governo parece apostar.Negociação e diálogo são, de resto, as palavras de ordem dentro do Governo dirigido até quarta-feira por Jorge Coelho, que ontem se articulou, na gestão daquele que terá sido porventura o dia mais difícil que os socialistas tiveram de enfrentar desde que estão no poder, com outros ministros para lidar com o "buzinão". O contacto de Coelho com Fernando Gomes, ministro da Administração Interna, foi quase permanente. E de Gomes surgiram algumas das palavras que mais romperam, ainda que muito ao de leve, com a atitude "pacifista" ou de "não arrogância", definida por António Guterres antes de partir para o Cairo, a ser tomada pelo Governo na gestão deste conflito.Não colocando em causa o direito à indignação dos cidadãos, Fernando Gomes criticou Carlos Carvalhas e Paulo Portas por terem apoiado o "buzinão". "Não é correcto que líderes partidários apelem à insubordinação. É uma situação que não me parece que seja normal", afirmou o ministro da Administração Interna, ontem de manhã, em Braga. Deixou de fora Durão Barroso, que optou por uma declaração às televisões: "Aquilo a que assistimos hoje foi uma adesão espantosa das pessoas a um protesto em cuja organização não participámos, mas com o qual estamos solidários. Portugal tem razão para estar indignado."Mostrando-se convencido que o país continuaria "a funcionar normalmente", Fernando Gomes revelou que as forças policiais não receberam qualquer instrução especial para lidar com esta situação, dado não prever qualquer alteração da ordem pública: "[O 'buzinão'] como motivo de indignação não me parece muito preocupante. Apenas o será, se houver bloqueamentos no trânsito, porque há quem não queira participar e é obrigado a fazê-lo." Daí o apelo a que o protesto seja feito "dentro das regras democráticas". A crise do "buzinão" demonstra, de certo modo, o que no Governo se espera da concentração de poderes e funções em Jorge Coelho. Na prática, António Guterres e os seus pares entregam ao ministro do Equipamento a dificílima tarefa de levar a bom porto a gestão política do mais que evidente fim do "estado de graça". No Governo percebeu-se que os portugueses deram um cartão amarelo aos socialistas com o "buzinão" de ontem e, a partir de agora, a palavra de ordem mais apropriada será mesmo "não abusar da sorte". Daqui para a frente "não há margem para erros, para tiros no pé e coisas dessas", admitiu ontem ao PÚBLICO um destacado militante do PS, lembrando que é daqui em diante que o executivo terá de governar a partir de uma plataforma de medidas que "necessariamente afrontarão interesses". Resta saber agora como se poderá conciliar a negociação com a inevitável impopularidade de algumas medidas.Por isso esperam de Jorge Coelho mais capacidade negocial, mais capacidade de reagir, mais concertação de esforços para responder ao desgaste a que os socialistas sabem que vão estar submetidos até final da legislatura. A tarefa imediata passa por poupar Guterres à erosão que se prevê, para que este possa concentrar-se na preparação de um contra-ataque que devolva ao Governo a iniciativa política. Por isso, Coelho apareceu de imediato ao lado de Pina Moura, assim que o ministro da Economia começou a ser contestado dentro do PS pela gestão do dossier dos combustíveis. Por isso, tem sido o rosto no ataque ao conflito, ao lado de um Pina Moura visivelmente desgastado com esta "crise da gasolina". Mas passará também por Coelho a preparação de um conjunto de medidas que visam retomar a já referida iniciativa política, logo que Guterres fique mais aliviado da obrigação de presidir à União Europeia. *com Alexandre Praça

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