Unicidade sindical combate o "ventre mole da Revolução"

Leiria poderá resolver o seu problema ferroviário ligando-se à linha do Norte em Caxarias. O projecto está a ser estudado pela Ferbritas (uma afiliada da Refer) e propõe 25 quilómetros de via única entre a Linha do Oeste e a do Norte, com uma estação em Caranguejeira e um desvio activo em Barrocaria. A ligação, que configura o chamado "arco do Oeste", está estimada em 15 milhões de contos.

Depois do primeiro Congresso do Partido Socialista realizado em liberdade, onde Mário Soares viu reforçada a sua liderança, o ano de 1975 estava agora à porta. Perspectivam-se duas grandes batalhas que vão dividir o país. O Plano Económico Social, coordenado por Melo Antunes, e a questão da unicidade sindical, duas frentes que vão separar definitivamente comunistas e socialistas. A partir de Janeiro, o país vai sofrer uma aceleração política brutal, que culminará no 11 de Março. António Maria Pereira, António Serra Lopes, Artur Santos Silva, Carlos Câmara Pestana, Daniel Proença de Carvalho, Diogo Freitas do Amaral, Filipe Pinhal, Francisco Balsemão, Henrique Medina Carreira, Jacinto Nunes, João Botequilha, João Salgueiro, José Silva Lopes, Manuel Alfredo de Mello, Mário Murteira, Miguel Judas, Rui Vilar, Sousa e Castro, Vasco Vieira de Almeida e Vasco Lourenço prestam aqui, ao longo das próximas semanas, os seus depoimentos sobre as razões e os equívocos que marcaram o período entre o 25 de Abril de 1974 e Março do ano seguinte. 13 de Dezembro de 1974. Logo pela manhã, Mário Soares toma conhecimento das prisões dos proprietários e administradores do Banco Intercontinental Português (BIP), da Sociedade Financeira Portuguesa (SFP) e da Torralta. Fica perplexo. Estando em causa direitos fundamentais, projecta para o Conselho de Ministros seguinte comentários violentos à decisão de Vasco Gonçalves. Bom, a seu tempo actuará. Nesse dia tem ainda pela frente o primeiro Congresso Nacional do PS em liberdade. Mário Soares vai confrontar-se com a linha radical do partido, liderada por Manuel Serra. Este aparece-lhe ao lado de militares do MFA. Prevenido dias antes por Magalhães Mota, Soares leva consigo 30 capitães de Abril, encabeçados pelo oficial spinolista Manuel Monge. O grupo traja todo à paisana. Entre outros, estão com ele Salgueiro Maia, Jaime Neves e Garcia dos Santos. A situação é delicada, quase de coacção. Ao PS confluem então movimentos esquerdistas não controlados pelo PCP e pela extrema esquerda. À sua volta gravitam também sensibilidades moderadas.Pois bem, as portas da Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa estão abertas. A atmosfera é de grande crispação. De certa forma, daquela reunião dependia muito o rumo da nação. Ora, porventura quis o destino que aderissem ao congresso sociais-democratas não marxistas. Vítor Cunha Rêgo, Vasco Pulido Valente, Fernando Abecassis e Francisco Sousa Tavares estão presentes. Até parecia não ser obra do acaso, pois o grupo instala-se do lado oposto a Manuel Serra. E Mário Soares? Cheio de finura, é agora o homem do equilíbrio entre as várias tendências, surgindo estrategicamente ao centro. Mas não evita o confronto. No final, o futuro secretário-geral do PS vê clarificados os contornos de uma estratégia. Dias depois, forçada a ruptura dentro do PS, Manuel Serra passar-se-á para o outro lado, criando a Frente Socialista Popular. Mas o PS não estava ainda pacificado. Nos próximos tempos, Mário Soares vai provar se tem ou não coragem.Daí em diante, os socialistas unificarão aos poucos um discurso. Do ponto de vista programático, continuam na moda: querem uma política económica "ao serviço do trabalhador". Como é da praxe, são antimonopolistas, defendem o "reforço da acção do Estado". No programa, admitem nacionalizações progressivas. E para romper com o elo entre capitalistas financeiros e capitalistas industriais pugnam pela estatização da banca e dos seguros. Em resumo: por enquanto, o PS não se identificava completamente com a economia de mercado. Muito bem, doravante Soares bater-se-á por restabelecer a paz no seu partido.Estamos ainda em Dezembro. O Governo decide: o jornal "Época" não será vendido, será declarada falência. Por volta da terceira semana, são libertados alguns dos civis acusados de sabotagem económica. Outros, como Jorge de Brito, Paiva Correia, Agostinho da Silva e José da Silva, os dois últimos da Torralta, serão mantidos vários meses na prisão."A pretexto de um crime que não existia e não estava na lei, que era o da sabotagem económica, prenderam-se imensas pessoas", nota Daniel Proença de Carvalho, advogado de Fernando Cruz, do BIP, e mais tarde dos irmãos Agostinho da Silva. Proença percebe logo a mensagem: "Com as prisões, o Governo veio dizer que a revolução era a favor das classes trabalhadoras e que havia capitalistas que não se adaptavam à nova ordem, fazendo a contra-revolução através da sabotagem económica - quem oferecesse resistência ao caminho da revolução colectivista era apelidado de sabotador económico." E acrescenta: "A sabotagem económica era um chavão, não correspondia a nenhum facto previsto na lei penal."Com o 28 de Setembro, continua o advogado, o poder caiu na rua, "passando a ser controlado pelo PCP através dos seus aliados no MFA". "Quando ocorre o Congresso do PS, o PCP já tinha posto a andar uma estratégia organizada e selectiva: primeiro, tinha visado os fascistas, depois os capitalistas. E com estas prisões era o sistema económico de iniciativa privada que estava a ser abalado."Correm agora rumores de boca em boca, constando que Vasco Gonçalves e os seus ministros militares projectam demitir-se. São tais as proporções do sururu que o chefe do Executivo chama a imprensa a São Bento. Começa logo a contestar o que diz serem boatos. "Pura invencionice!" O Expresso relata que Vasco Gonçalves considerou os rumores "uma sucessão de ataques políticos eivados de reaccionarismo, considerando urgente o seu desmascaramento". Para pôr cobro ao que diz ser a má língua nacional, decide criar um organismo especializado destinado a suprir as deficiências de funcionamento (limitado por horários) do Serviço de Informação Pública das Forças Armadas. Até aí ninguém percebeu. A seu modo, logo esclareceu: o novo organismo é um "Copcon da informação". A declaração, excessiva, era perturbadora. O capitão de Abril Vasco Lourenço lembra que, "a partir de certa altura, quem manifestasse opiniões contrárias ao gonçalvismo era logo apelidado de divisionista".A 17 de Dezembro, a UDP ganha o estatuto de partido. Tornava-se agora impossível aos patrões ignorar que o período era pré-revolucionário, de transição de uma sociedade tradicional para outra qualquer. António Champalimaud andava de um lado para o outro a observar os equilíbrios precários existente no país, quando é confrontado com um forte abanão. Em plenário, os operários decidem passar a controlar a administração da Siderurgia, de que era proprietário, inaugurando em Portugal a primeira experiência daquele tipo. Correm com os privados, dando entrada a outra casta de gestores. Adivinha-se a guerra. Por aqueles dias, o Governo legaliza a Intersindical. Decorre ainda Dezembro quando os empregados de escritório e os caixeiros algarvios se declaram em greve. O Ministério da Educação põe cá fora legislação prevendo a participação dos alunos na gestão das escolas. A autarquia lisboeta coloca em tribunal mais de mil senhorios, proprietários de casas devolutas que desrespeitaram o regime do arrendamento, anuncia o "Expresso".Últimos dias do mês. Por esta ocasião, Melo Antunes recolhe-se em Sesimbra, para redigir o Plano de Acção Económica e Social encomendado em Outubro pelo Governo. No Hotel do Mar, o major reúne o então chamado (pelos sectores à esquerda do PS) "ventre mole da revolução": José Silva Lopes (ministro das Finanças), Rui Vilar (ministro da Economia), Vítor Constâncio (secretário de Estado da Economia) e Maria Lurdes Pintassilgo (ministra dos Assuntos Sociais). Ao cabo de dias o grupo dá por terminada a tarefa. Para o momento, o Plano Económico de Emergência, como será designado, parecia até bastante moderado. De modo a manter a confiança dos agentes económicos e para fazer face ao descontrolo da nação, contempla um conjunto de medidas. Sublinha o papel do Estado como fiscalizador da actividade das instituições de crédito e parabancárias e admite que possa tomar pelo menos 51 por cento do capital social de empresas em sectores básicos. 28 de Dezembro. Os jovens capitães de Abril parecem agora insuflados de um gás glorioso. É provável que nem lhes sobre tempo para pensar. No Instituto de Sociologia Militar, reunidos em Assembleia Geral, os 200 oficiais do MFA analisam à lupa o Plano Melo Antunes. É grande a agitação. Os sectores mais radicais vislumbram ali a mãozinha da reacção, espiolhando no documento sinais da contra-revolução. A estatização sistemática de áreas vitais da Economia não estava entre os objectivos. Daí até procurarem travar a sua aplicação foi um instante. Os moderados, mais terceiro-mundistas, presumem o conflito. E bramam: "Vamos escolher uma via para o socialismo sem violar a vontade dos portugueses." Estava escrito: antes de 1974 terminar o país mergulhou num turbilhão de contradições que, daí em diante, alimentam a aceleração revolucionária. Para evitar o encerramento, o Estado intervém na Valongo, os trabalhadores do "Jornal do Comércio" fazem um ultimato para que seja designado um director, decorre a primeira conferência camponesa no Norte, desenvolvem-se iniciativas tendentes a coordenar a actuação dos trabalhadores rurais. Último dia do ano. Com tudo isto a acontecer, a rebelião começava a fazer zumbir os ouvidos da Igreja. O cardeal patriarca e o bispo do Porto saltam a criticar o caos social e económico. Mau sinal para a Revolução! É neste enquadramento nebuloso que a Comissão Coordenadora do MFA realiza a primeira conferência de imprensa. Perante os jornalistas, reafirma a decisão de "servir os trabalhadores em geral e os operários e camponeses em particular". E considera o seu programa impregnado de "humanismo revolucionário". No final, o porta-voz do MFA, Vasco Lourenço, tenta esclarecer os portugueses: "Os militares definiram uma via socializante para o país." Indaga o jornalista: "E se o capital não colaborar?" Lançada a questão, chegava a resposta: "Bom, nesse caso, provavelmente seremos empurrados para uma via socialista." Ainda durante as derradeiras horas de 1974, o Presidente da República recebe o Governo, no seu último encontro do ano. Em discussão vai estar o Orçamento Geral do Estado, no momento muito influenciado pelas questões "ultramarinas" e pelo processo de descolonização em curso.Como se depreende da acta da reunião, a conversa surge um pouco ao sabor da época. O ministro das Finanças, Silva Lopes, começa logo por avisar que "no presente orçamento a previsão da receita pode vir a afastar-se da realidade". "A receita será orçamentada em 59,6 milhões de contos, o que significa um aumento moderado [em relação a 1973]". A despesa ordinária cresce significativamente, fixando-se em mais dez milhões de contos". Silva Lopes justifica o acréscimo pelos "aumentos das Forças Armadas e, sobretudo, dos vencimentos, introduzidos em Agosto". Também se prevê um aumento da dívida pública. "O Ministério da Economia vai ter dificuldade com o orçamento e o dos Negócios Estrangeiros também. O Ministério do Equipamento Social e do Ambiente têm despesas relacionadas com investimentos - que, por isso, pareceu difícil reduzir - e desdobramentos de serviços". O défice previsto "é bastante alto" e virá "a ser ainda mais elevado." Dada a impossibilidade de o financiar à custa da poupança particular, terá "consequências inflacionistas bastante grandes". Reconhece "que as finanças públicas vão ser uma das fontes de dificuldades políticas" bem como o "agravamento da inflação".Reza ainda a acta que Costa Gomes quer saber porque não aumentam as receitas, Silva Lopes explica que "temos uma estrutura deficiente e uma grande evasão fiscal. Quem paga impostos são os consumidores e os empregados por conta de outrem." Esclarece: "E isto vai continuar." Presume bem.Numa fase seguinte do Conselho, o ministro das Finanças indica que "os depósitos não têm diminuído no BNU como nos outros bancos." O primeiro-ministro observa logo que é "preciso analisar o que isso significa e daí tirar as necessárias consequências".Como a atmosfera era convidativa a derrapar, Maria de Lurdes Pintassilgo avança: O importante é "que se procure evitar slogans meramente destrutivos, fáceis, mas que não são adequados à situação concreta em que nos encontramos." A engenheira diz que acredita ser "possível construir qualquer coisa". Vasco Gonçalves reflecte um pouco, e afirma: "Os homens com 80 por cento do investimento mostram não estar à altura dessa posição." A situação é complicada. E como não vê maneira "de relançar a economia sem corresponder ao empenho dos trabalhadores, das duas uma: ou se caminha para o fim, ou se vai outra vez entregar o País a quem assim o deixou." Conclui: "Ultrapassado o problema da descolonização, as condições alteram-se para melhor". O ministro do Trabalho, Costa Martins, chama agora a atenção para "a saída de fundos das empresas, em grande parte atirados para fora do país". Magalhães Mota põe a tónica na necessidade de relançar a economia, de resolver os problemas, designadamente os provocados pelo défice, "com certeza o maior da história portuguesa, com consequências inflacionistas sérias." À excepção dos últimos anos da Monarquia e dos primeiros tempos da República, em regra os orçamentos eram bastante equilibrados. A proposta para 1975 romperia a tendência anterior. "É insustentável que se continue a recorrer ao Orçamento Geral do Estado para suportar todos os erros económicos e suportar consumos." Magalhães Mota chama também a atenção para a necessidade de envolver na Revolução todos os sectores da economia. Alerta "para a necessidade de conseguir a confiança geral para a evolução do País."O ministro Álvaro Cunhal parecia mesmo talhado para o debate, passa por cima desta questão. Para levar a água ao seu moinho tem agora a palavra: "Um défice de 15 milhões é muito grande. Mas embora o ministro das Finanças tenha mostrado inquietação pelo facto de não se dever a investimento mas sobretudo a consumo, a verdade é que esses consumos foram necessários e representam um investimento em termos de melhoria de condições da população, que tem alcance político importante." Cheio de ortodoxia, continua: "Responsabilizar as camadas populares pelo défice seria apressado. É necessário manter a preocupação de procurar melhorar as condições de vida dos trabalhadores pensando nas melhores formas de o conseguir." A partir de certo ponto a reunião seguia o perfil da Revolução, já era uma abstracção. Cunhal fazia ali desvios na argumentação, com uma evidente e propositada baralhação de argumentos políticos e económicos.Grosso modo, o diálogo entre os ministros traduz duas linhas de orientação distintas. Os moderados, preocupados com o equilíbrio orçamental e em envolver toda os sectores na Revolução. Outros, mais organizados, apostados em falar em nome das classes trabalhadoras. Muito embora o assunto nunca fosse ali nomeado, por todos estes motivos projectavam-se no horizonte as nacionalizações. Decerto, é de prever, o ano que se aproxima não será de paz para o MFA, iniciando-se uma nova fase de contradições e de clivagem entre oficiais. Na sociedade civil o clima é de insurreição. Para alguns, o 25 de Abril diluía-se no horizonte. Começou 1975. Portugal navega à vista, sem consensos, afogado nos vários interesses em jogo. No meio da incerteza e da conspiração, espreita agora o caos. A palavra desemprego entra no vocabulário dos cidadãos. Desconfiado, o povo reforça o entesouramento, as classes abastadas aceleram a fuga de capitais para o estrangeiro, os emigrantes conservam as poupanças no exterior. Abrandam as relações comerciais com o Ocidente, agravando as dificuldades dos exportadores. Milhares de pequenas empresas asfixiam. O Produto Interno Bruto Nacional cai 4,3 por cento. Por força de uma política de preços controlados a inflação desce alguns dígitos, situando-se nos 20 por cento. É tudo fogo de vista, pois a força da inflação continua lá.1 de Janeiro. O Presidente da República está aos microfones da RTP para desejar bom ano aos portugueses. O discurso corre ao jeito da época: "Tem sido a própria dinâmica da Revolução, o jogo das forças políticas, a formação acelerada de uma opinião pública politizada, a pressão de classes e grupos à procura da sua dimensão válida que vem clarificando a situação política transitória." Num mês acontecem turbilhões de "coisas" contraditórias. Os trabalhadores da banca reúnem para aprovar uma moção, onde sugerem ao Governo a estatização do sector bancário, para "defender o povo português" e derrotar "o imperialismo dos monopólios e os latifundiários". "A banca presta-se às mil maravilhas para a actividade sabotadora dos monopólios da reacção", lê-se na primeira página do Diário de Noticias (3 de Janeiro de 1975). No dia seguinte, a banca exigia ao Governo a nacionalização dos sectores bancário e segurador. O Banco Nacional Ultramarino, já nas mãos do Estado, publicitava-se: "Banco nacionalizado é banco seguro para o seu dinheiro". O slogan institucionalizava-se: "O nacionalizado é nosso!" As opiniões não surgem ao acaso. Na altura, o major Melo Antunes mexe-se junto dos seus pares para fazer aprovar a sua proposta de acção económica e social, cujo sentido a dar ao país é contrário à proposta dos bancários - em momento algum se refere a nacionalização de sectores da economia.Mas será António Spínola a quebrar a unanimidade que atravessa o país. Ao fim de três meses de silêncio, já na reserva, o general concede uma entrevista ao Expresso (4/1/74) onde defende soluções contrárias à evolução do país. Entre vários assuntos refere Portugal "como um país politicamente à esquerda e economicamente à direita". A ambiguidade, afirma, "gera incerteza sobre o futuro com reflexos negativos nos investidores". Não fica por aqui: "Vamos passar de uma ditadura para outra." Ao cabo de horas, "ex-pides", exilados no estrangeiro, criam o Exército de Libertação de Portugal, acusam Spínola de traidor. Um dia depois, os três movimentos de libertação de Angola aceitavam negociar com Portugal a auto-determinação das ex-colónias. Aquele tempo tinha outra particularidade. As organizações de unidade popular, civis e militares, inspiradas na democracia representativa e de base, estão agora mais activas do que nunca. Ainda na primeira semana do ano, e num só dia, dezoito comissões de moradores de Lisboa encontram-se para debater os seus problemas, 200 oficiais dos vários ramos das Forças Armadas juntam-se para discutir as opções político-sociais do movimento. Pela primeira vez, um grupo de cristãos pelo socialismo reúne-se em congresso para se posicionar sobre todas estas questões. E os estudantes liderados pela UEC organizam-se para pôr a andar o Serviço Cívico Estudantil, iniciativa que será contestada pela extrema esquerda. Pode-se até imaginar: abrem-se hostilidades entre os sindicatos, apoiados pela CGTP e pelo PCP, e as organizações de cariz popular, arregimentadas pelo comandante do Copcon, Otelo Saraiva de Carvalho. Arrebatado, o major começava a sustentar os movimentos basistas da sociedade civil e militar. Por vezes, entrava em contradição. Cumpria ordens, enviava tropas no encalço dos trabalhadores em luta.6 de Janeiro. Portugal envia o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, à Índia, à URSS, à Jugoslávia e a França. E reconhece a República Popular da China. Aos poucos, regressavam tropas de Angola, contingentes de africanos portugueses das ex-colónias. Há quem sinta no ar o espectro da guerra civil. O governo português tem pela frente uma tarefa árdua. No Alvor, Algarve, inicia conversações conjuntas com as três movimentos de libertação de Angola para dar andamento à descolonização. Estão presentes, Agostinho Neto, MPLA, Jonas Savimbi, UNITA, Holden Roberto, FNLA.Enquanto Soares partia para o Algarve, em Lisboa delineava-se uma grande batalha, envolvendo o movimento sindical. PCP e PS estão em confronto. O primeiro defende a unicidade sindical, o segundo o pluralismo sindical. Aos microfones da rádio, os socialistas Manuel Alegre e Jaime Gama declaram: "Resistiremos, como resistimos ao fascismo." Estava dito. Estão dispostos a opôr-se ao projecto de unicidade sindical.Daí a dois dias, o Movimento de Dinamização da Empresa/Sociedade (MDE/S) reunia a direcção. A liderança empresarial portuguesa debate a situação. Vislumbrando fracturas no seio da Revolução, metem-se a dar conselhos. Consideram que as nacionalizações só se justificam se: a gestão privada "não satisfazer os objectivos económicos e sociais"; se houver possibilidade "da Administração Pública satisfazer os critérios de gestão em melhores condições"; se a melhor utilização "dos recursos da Administração Pública consistir na gestão desse sector económico ou empresa"; se houver "condições legais e uma política económica e coerente que permitam e justifique tal medida". Discorrem: "a Administração Pública tem tarefas muito mais urgentes do que passar a gerir empresas que satisfazem os objectivos económicos e sociais que as próprias autoridades definem". Tudo aquilo era quase uma ficção, já que "O MDE/S considera que há formas mais rápidas, eficazes e baratas de a Administração Pública controlar empresas privadas do que a nacionalização." A atmosfera é convidativa ao delírio. O MDE/S admite tomar "posição pública irónica recuperando o projecto apresentado." A palavra irónica é sublinhada. Estamos ainda em Janeiro quando se multiplicam os conflitos laborais um pouco por todo o lado. Os operários da fábrica de Matosinhos da Sacor entram em greve. Dois dias mais tarde, no Porto, dezenas de pedreiros faziam-se ouvir, ocupando as instalações do Grémio, reclamando o 13º mês, as 45 horas semanais de trabalho, subsídio de férias e a revisão do seu contrato colectivo. Na firma Xavier de Lima, os trezentos trabalhadores (tinham sido 800) exigem a intervenção do Estado na empresa. Na banca, falta o descanso. Decorrem diariamente plenários gerais, reuniões parcelares de trabalhadores. A propósito de tudo e de nada circulam comunicados e contracomunicados. Os bancários discutem a carreira profissional, o mapa de remunerações, reivindicam o 14º mês. Os sindicatos do sector entram em guerra com o Grémio Bancário e não poupam o Ministério das Finanças. Os saneamentos continuam na ordem do dia. Muito em resumo: a nação regressara à "adolescência", desaustinara.Por esta ocasião, Álvaro Cunhal esforça-se também por consolidar as forças de unidade popular lideradas pelo PCP. Segue o lema: "Socialismo só há um, o do povo e mais nenhum!". Doravante, a Revolução vai sofrer uma grande aceleração, que culminará daí a dois meses, na decisão de estatizar os sectores estratégicos da economia. 13 de Janeiro. O debate sindical despertava então grande atenção. Pela primeira vez desde o 25 de Abril o país vai dividir-se. O socialista Salgado Zenha esgrime argumentos contra a unicidade sindical, opondo-se publicamente contra o PCP. Os ministros Zenha e Carlos Carvalhas enfrentam-se nas páginas dos jornais. A partir daqui comunistas e socialistas propõem-se comparar espingardas.Nesse meio tempo, a assembleia-geral do MFA mostra unanimidade ao votar favoravelmente a unicidade sindical. Na sequência, o Conselho dos Vinte divulga um comunicado. O porta-voz Vasco Lourenço desloca-se à televisão para se pronunciar Que defendiam os capitães de Abril? Apresentavam um discurso táctico, não de princípio. Como sempre, havia uma ressalva estratégica nas posições dos oficiais. Vasco Lourenço explica: "A nossa posição foi favorável à unicidade sindical, mas exigíamos que as instituições sindicais tivessem origem democrática." Por sua vez, o oficial do MFA Miguel Judas sublinha: "Todos nós tínhamos consciência de que a unicidade sindical não era uma medida perfeita, do ponto de vista da liberdade de associação." "A própria realidade provou que o pluralismo era o mais correcto." Porque defenderam então a primeira tese? "Dada a relação de forças do momento, achámos que não devíamos provocar a divisão do movimento sindical, de forma a que este se mantivesse como força organizada ao lado do MFA". No dia seguinte, a 14 de Janeiro, a Intersindical levava a Esquerda Unida (PCP, MDP, MES e FSP) a sair às ruas de Lisboa para defender a unidade dos sindicatos. É grande o burburinho, a manifestação é enorme. A quilómetros dali, no Alvor, Mário Soares recebe um telefonema de Manuel Alegre. O poeta socialista comunica: O PS quer bater-se pelo pluralismo sindical, quer pedir aos simpatizantes que se pronunciem publicamente. Soares não se opõe, mas teme que a iniciativa não resulte. Puro engano! Por esta ocasião, Portugal e os movimentos de libertação de Angola assinam um acordo, fixando para 12 de Novembro de 1975 a independência da ex-colónia. Costa Gomes denuncia: A data chegou com uma geração de atraso. "Compete-nos agora ser generosos quanto ao passado, diligentes quanto ao presente e esclarecidos quanto ao futuro."Estamos ainda em meados de Janeiro. Estão em curso grandes duelos. A luta a favor e contra a unicidade sindical, a aprovação do Plano Melo Antunes. Os dois diferendos acabam por contagiar a Revolução, minando-a na sua essência. O ponto é de viragem. O país vai mudar de rumo, abrindo caminho às transformações económicas.Disputa-se agora no Governo o sentido a dar à evolução económica da nação. O primeiro-ministro e Melo Antunes entram em rota de colisão. O plano do major está sob o fogo dos militares. Concluído há muito, não há forma de se lograr a sua aprovação. É grossa a discussão. Estendem-se as zangas, projectam-se grandes confrontos. Vasco Gonçalves aparece cada vez mais ao lado da linha comunista."Existiam enormes debates à volta do assunto. Vasco Gonçalves dizia que o plano era vincadamente social-democrata, outros militares mais moderados defendiam-no", conta Rui Vilar. A polémica alimentar-se-ia durante semanas, acabando o diferendo nas páginas do Boletim do MFA.Num clima pautado pela irracionalidade económica, o Plano visava, entre outros pontos, impedir o descontrolo completo da despesa pública. O Plano de Emergência Económica surgia como uma última tentativa de bom senso, mas acabaria ultrapassado pelas várias dinâmicas do MFA. Pode-se até dizer que as forças à direita do PCP vão jogar em Melo Antunes o seu futuro. Para o social-democrata Francisco Balsemão, "a aceleração do pêndulo para a esquerda era tão forte que o Plano Melo Antunes chegaria tarde de mais. Mas lamento que não tenha sido aplicado". Freitas do Amaral considera que " fazia todo o sentido, embora não correspondesse ao que eu faria, mas ia na linha de uma corrente democrática europeia". Sublinha: "Não hostilizando ninguém, o plano previa que o Estado tomasse posições em empresas. E assemelhava-se ao que antes Salazar tinha defendido, pois ele era também bastante estatizante. O Estado deveria, em certas empresas, manter 51 por cento do capital". Segundo João Salgueiro, Melo Antunes concebeu "uma carta orientadora da economia moderada, que só previa a nacionalização de um banco, o Crédito Predial Português (CPP)". Na época prevaleciam dois regimes de banca: a banca comercial e as instituições especiais de crédito. Neste último grupo, Portugal tinha três instituições - a Caixa, o Fomento e o Crédito Predial - vocacionadas para o crédito à habitação e a médio prazo, pelo que contavam com uma política de apoio especial. Se na CGD o Estado detinha a totalidade do capital, no BFE dominava mais de 50 por cento. Apenas o CPP era privado. Razão pela qual, explica Salgueiro, "a proposta de nacionalização do CPP, a última das instituições especiais de crédito, surgia como natural. Não era o mesmo que nacionalizar um banco comercial, com restrições a fazer crédito a longo prazo."O espectro das nacionalizações surgia como "uma hipótese cada vez menos provável." Por seu turno, Mário Murteira realça o carácter "ambíguo do Plano Melo Antunes". O académico considera que a velocidade do processo revolucionário "nada tinha a ver com tempos de planeamento geradores de consensos."16 de Janeiro. Anuncia-se o saneamento de todos os professores catedráticos do Conselho Escolar da Faculdade de Direito de Lisboa. Dois conselheiros de Estado, os professores Freitas do Amaral e Isabel Magalhães Collaço, são atingidos nesta leva. Ao cair da tarde, os socialistas começam a concentrar-se no Pavilhão dos Desportos (hoje Carlos Lopes). O recinto enche-se tão completamente que, no pós-debate da luta contra a Lei da Unicidade Sindical, o PS arrebata outro protagonismo. "O recinto estava repleto de pessoas que iam para lutar, não tanto contra a unicidade sindical, mas contra a tendência comunista."Lembro-me dessa grande manifestação. Foi o primeiro acto em que o PS começou a liderar todo o campo democrático", diz Proença de Carvalho. Recorda que se tratavam de manifestações unitárias em que participavam "todos os que eram contra o sentido comunista da revolução". Naquela noite, Salgado Zenha e Manuel Alegre encontram-se no seu melhor. Agora vão dispor da palavra. Munido do seu vozeirão, o poeta lança-se em cruzada contra a unicidade sindical, na defesa da liberdade de opinião. Emociona-se a assistência, mas Zenha revelava-se já um orador fogoso. Os discursos deixam marcas, constituindo uma nota discordante no relacionamento habitualmente cordato com o MFA. Os dois dirigentes fazem um ataque cerrado a Vasco Lourenço, a quem acusam de ter personificado junto da comunicação social a defesa da unicidade sindical.Francisco Balsemão, do PPD, manifesta esta opinião: "Até Janeiro de 1975, o PS e o PCP são companheiros de "routte", e será só com a unicidade sindical que se vão separar". Como procediam então os sociais-democratas? Era óbvio, na matéria estavam ao lado dos socialistas. Fazem sair um comunicado contestando a unicidade sindical. Porventura, dizem, o texto revela pouca força, é corrigido. A nova concepção é entregue a Mário Pinto e a Magalhães Mota. A iniciativa dá azo à publicação de um número especial do Povo Livre. Desta vez, não sobram dúvidas, o PPD opõe-se à estratégia de Cunhal. Balsemão explica que a actuação dos sociais-democratas tinha por "principal objectivo que se garantissem as eleições. E muito do que fazíamos era com esse fim, pois esse era o último desejo do PCP." A 17 de Janeiro aterrava em Lisboa uma voz da América. Com Frank Carlucci abre-se o caminho para que os americanos possam ter também uma palavra a dizer no futuro de Portugal. Daí em diante, o novo embaixador dos EUA desempenhará o seu lugar nesta Revolução. "Carlucci falava muito bem português", conta Rui Vilar, e rapidamente se "meteu no espírito da Revolução"."Frank Carlucci tinha a ideia clara de que só Mário Soares e o PS poderiam barrar o caminho à revolução comunista", considera Proença de Carvalho, ao tempo também ele ligado aos socialistas, liderados por Soares. "Os partidos à direita eram de algum modo conotados com o regime anterior, não tendo tido uma posição de resistência ao fascismo, razão pela qual se tornavam mais vulneráveis." Por aqueles dias o advogado cruza-se com o embaixador. Como via Carlucci Mário Soares? "Considerava-o insuspeito de ter sido colaborante com o regime deposto, pois simbolizava a resistência ao passado." Portanto, o diplomata "convenceu o Governo americano a ajudar Mário Soares, pois era ele que tinha condições para travar o comunismo. E era verdade!" Proença de Carvalho nota que o dirigente socialista teve não só o apoio da esquerda democrática, mas de toda a direita. Como é bom de ver, o Ocidente tomava também, aos poucos, o pulso à insurreição. Por isso, enquanto ganha os EUA para o seu lado, Soares procura também congregar à sua volta o aplauso europeu.A sua fama espalhava-se como um vírus. "Os países democráticos viram todos em Mário Soares um símbolo da resistência ao comunismo e da luta pela democracia", recorda Proença de Carvalho. Se ainda houvesse dúvidas, o andamento da revolução as tiraria, o 11 de Março estava a caminho. A partir daí, a aposta do Ocidente no PS revelar-se-ia fundamental para os seus objectivos. Bom, naquele mesmo dia, a 5ª Divisão (serviço de informações dos militares) dá por terminada a Operação Nortada. Traduzindo por miúdos: o projecto liderado pelos militares é basista, visa a dinamização cultural do povo português. Hoje, até parece impossível: mais de oitocentos oficiais da Armada decidem exigir ao MFA que conceba legislação que consolide o processo revolucionário. Neste meio tempo, o Conselho de Ministro decide, com os votos contra dos ministros socialistas e do social-democrata Magalhães Mota, expropriar as terras de regadio dos latifúndios, desbravando caminho para que, no mês seguinte, a Herdade do Picote, em Montemor-o-Novo, fosse ocupada. Em paralelo, mais de mil trabalhadores agrícolas de Santarém estão juntos para fazer avançar a reforma agrária. Discutem os contratos colectivos e os despedimentos em curso no sector.22 de Janeiro. Os trabalhadores da Fábrica Metalúrgica Duarte Ferreira enfrentam o patrão, impedindo a sua entrada nas instalações fabris. Manifestam-se dispostos a tomar conta da produção, dando-lhe um destino. Este era outro caso especial. Com o arranque da descolonização, Portugal mudara de rumo, deixando certas indústrias de fazer sentido. A metalúrgica construía então veículos militares Unimog - mais tarde os UMM.Com o fim da guerra, entrou em declínio, sendo objecto de intervenção estatal. Conta o administrador do Banco da Agricultura, Filipe Pinhal: "Um dia, Costa Martins [ministro do Trabalho] telefonou-me: Se o banco não desbloquear crédito para pagar salários aos trabalhadores da Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF) - cuja comissão de trabalhadores era muito activa -, não se admire se, ao fim do dia, não puder sair, porque eles vão estar aí à sua porta." O Banco de Agricultura era um dos três bancos que apresentava créditos mais elevados sobre a MDF. Para além de Filipe Pinhal, integravam a Comissão Interbancária, criada para recuperar financeiramente a indústria, Isaura Simões, do BFB, e Antunes da Silva, do BESCL. Por aqui o Episcopado vai procurar que as coisas andem de uma certa maneira. Compreendendo o que todos estes acontecimentos significavam, os religiosos vêm a público dizer de sua justiça. Apresentam um documento que contraria a unicidade sindical. A Igreja lamenta ainda as manifestações públicas anticlericais. Nesse preciso instante, Vasco Gonçalves estremeceu. Previsível: o primeiro-ministro evita confrontar-se com a Igreja. E quando o Conselho dos Vinte (órgão que reunia os militares que ocupavam cargos de chefia política) sugeriu a designação de uma comissão administrativa para a Rádio Renascença, Vasco Gonçalves reagiu mal, ameaça mesmo demitir-se do Governo.O domínio era sensível. Álvaro Cunhal estava consciente e, globalmente, a sua atitude era sempre de grande cautela. Sem nunca nomear a palavra Igreja, o dirigente comunista falava frequentemente nas "tradições do nosso povo". 25 de Janeiro. No Porto, no Palácio de Cristal, o CDS reunia o seu primeiro Congresso Nacional - "Pelo Progresso Económico numa Sociedade mais Próspera". No seu programa, defende "um sistema de economia de mercado de tipo europeu ocidental" , baseado no direito à propriedade privada. Mas, não restam dúvidas, parecia existir uma moda. Depois do PCP, do PPD e do PS defenderem as nacionalizações, surgia agora o CDS com "avarias", prevendo a "nacionalização ou rigoroso controlo pelo Estado dos sectores da economia não sujeitos à lei da concorrência nacional e internacional". O sector financeiro ficava entregue a privados, embora se admitisse que a banca emissora continuasse pública. Os democratas-cristãos querem ainda ver assegurada a "orientação do crédito para objectivos socialmente mais desejáveis". Se no Congresso o ambiente é de alguma contenção, à volta do Palácio de Cristal há muito que rebentara a contestação. "Comecei por sentir grande inquietação, porque nos estavam a estragar a festa." Com o avanço da noite, aumenta o perigo de invasão do recinto pelos contestários. Sobe a temperatura, o clima não convém. "A dada altura receei por mim e por toda a gente". O ex-dirigente democrata-cristão evoca o episódio: "Eu estava a subir do rés-do-chão para os anéis superiores do Palácio de Cristal, quando me cruzei com um congressista rural." O militante encara-o, não deixa passar a ocasião. Exclama: "Ó sr. Freitas do Amaral! agora é que se vai ver o que o senhor vale!"A reunião acaba suspensa pelo MFA. Mas o momento constitui o primeiro alerta de uma futura radicalização. "O país percebeu, e a Europa também, que as coisas se iriam complicar". Argumenta Freiras do Amaral: "Um partido legal que tem o seu congresso boicotado por cenas de violência, vive numa revolução anti-democrática." Os protestos eram liderados pela extrema esquerda. Há fotografias, o cerco é coordenado por alguns notáveis de hoje. Lembra-se? "Não, não sabia", responde a rir Freitas do Amaral. Está certo, eram outros tempos, conspurcados pela agitação. 26 de Janeiro. Os trabalhadores de lanifícios, reunidos em plenário, exigem um novo contrato colectivo. Reclamam ainda o 13º mês, a semana de 40 horas, férias pagas, um salário mínimo de 4500 escudos. E exigem o fim dos despedimentos sem justa causa. Na época, o grande ausente parecia ser o bom senso, estava-se na eminência do caos. Nas grandes empresas industriais constituem-se Comissões Unitárias dos Trabalhadores (CUT), estruturas distintas das comissões de trabalhadores, muito inspiradas na atmosfera leninista. Na CUF rebenta nova atrapalhação. Projectam-se grandes quezílias. À semelhança do que acontecia noutros grupos, na CUF do Barreiro os elementos da CUT movimentam-se nas empresas usando como distintivo uma braçadeira vermelha. Desta vez, os membros da CUT deslocam-se à sede, na Av. Infante Santo, onde continua a funcionar a administração liderada pelos Mello.A cena que aqui se relata era uma consequência do clima crispado que então se vivia. O advogado Serra Lopes, director de contencioso da CUF, está de regresso do estrangeiro. "Quando cheguei à sede da empresa, na Infante Santo, reparei que a minha correspondência estava aberta em cima da secretária." Enfurece-se. Anda tudo de nervos em franja. Grita: "Quem é que abriu o correio?" Da sala ao lado, a secretária responde: "A correspondência foi trazida pelo chefe da secretaria-geral." De novo a mesma voz alterada: "Ele que venha até cá. E quero aqui a máquina de escrever." O ex-director da CUF continua a contar: "Estava para comprar um frigorífico e tinha pedido catálogos com preços, alguns dos envelopes eram a resposta ao pedido." Chega, entretanto, o chefe da secretaria. Serra Lopes logo questiona, o outro esclarece. É verdade tinha sido ele. O advogado começa a escrever à máquina. O empregado cala-se um instante, a seguir interpela: "Para que é que quer a máquina de escrever?" "Para lhe fazer um auto", explica. Aí, o funcionário explode: "Os tipos da CUT mandam abrir, o sr. proíbe." Sai da sala. 27 de Janeiro. Por estas e por outras, não é difícil de imaginar o Grupo de Sesimbra a trabalhar em cima do calor da Revolução. O primeiro-ministro, a Coordenadora do MFA e Otelo Saraiva de Carvalho encaminham-se para a margem sul do Tejo. No Hotel do Mar, em Sesimbra, vão debater a proposta do Major, com os seus seis redactores. Logo ali surgem divergências de fundo. Se na imprensa os militares revelavam alguma contenção, fora dela reinava a confusão. "Percebemos logo que iríamos ter dificuldade em fazer passar a mensagem junto dos oficiais, em especial na Assembleia do MFA", onde pontuavam elementos mais radicais, recorda Rui Vilar. A discussão é acalorada, fervia o disparate. Para resolver o impasse, e contornar a moderação de Melo Antunes, os militares avançam com várias soluções económicas. "Falaram em nacionalizar o vinho do Porto e em criar "stocks" de energia", lembra, rindo, Rui Vilar. Como avaliava o Presidente da República o Plano Melo Antunes? "Costa Gomes apoiava-o mas não o verbalizava", reflecte Rui Vilar. Recorda o episódio: um dia demitiu-se, estava em causa uma polémica traduzida no Boletim do MFA. Assim que soube, Costa Gomes intromete-se. Enigmático, chama o ministro da Economia e o Chefe do Governo. Estão os três frente a frente, quando impõe: "Este sr. tem que participar no Governo, pois temos que continuar a ir a Bruxelas, de forma a não perder a ligação à Europa Comunitária [Rui Vilar era o responsável pelos contactos com a CEE]". O ex-ministro da Economia mantem-se em funções: "Costa Gomes geralmente nunca dizia nada, mas intervinha sempre pontualmente e mandava recados por pessoas da sua confiança". Sobre os assuntos da Economia a ambiguidade era mais que muita. A Revolução tinha os seus quês. Dominado por diferentes sensibilidades, o Conselho dos Vinte guardava as suas dúvidas. "A nossa preocupação era saber se o Plano era suficiente para permitir o controlo da Economia pela política. A situação ficou por esclarecer dentro de nós, como também no resto do MFA. Se tivesse ocorrido em Setembro, Melo Antunes teria tido sucesso, mas na altura era insuficiente face à luta no terreno", diz o oficial Miguel Judas.Com vista a tornar o programa de emergência consensual, Vasco Lourenço lembra que propôs a Melo Antunes a introdução, no seu plano, de "afirmações revolucionárias, mas que na substância pouco representavam". Com que finalidade? "Isso garantia a sua aprovação na Assembleia do MFA." O major cede, embora torça o nariz à sugestão. Rui Vilar lembra que no prefácio do Programa de Política Económica e Social, à cautela, Melo Antunes escreveu: "A impaciência é contra-revolucionária". Daí a dias a discussão desceria aos quartéis, perspectivando-se um evidente imbróglio. Daí a dias Melo Antunes declarava ao Diário de Noticias: "O programa económico-social é a convergência possível do MFA com os partidos da coligação." O debate inflamava outros corações. Os actores José Viana e Rogério Paulo, de um lado, e a então actriz Maria Barroso, do outro, enfrentam-se nas páginas dos jornais. Os primeiros defendem a estatização das companhias de Teatro, a segunda opõe-se-lhes.Oito dias depois do Conselho de Ministros ter votado favoravelmente (com votos contra) a lei da Unicidade Sindical, chegava a vez da assembleia do MFA aprovar, por maioria simples, a central única. Por essa altura, o Conselho dos Vinte proibiu as manifestações contra e a favor das duas propostas. A nação está prestes a perder o norte. Assiste-se ao crescente controlo do aparelho de Estado pelo PCP e das estruturas militares pelos oficiais da Comissão Coordenadora da MFA. Pese embora a vontade das forças moderadas, daqui em diante distinguir-se-ão dois nomes: o de Otelo Saraiva de Carvalho, influenciados pelas ideias basistas, e o do académico Mário Murteira, professor da Universidade de Lisboa.A associação de Mário Murteira a franjas do PCP continua ainda hoje a ser objecto de controvérsia. Em vésperas do 25 de Abril o académico defendeu, através de um livro, a aproximação à social-democracia. Esta seria uma das razões - e ainda por pertencer à Sedes - pela qual António Spínola o convidaria para exercer as funções de ministro dos Assuntos Sociais do Primeiro Governo Provisório. Porventura ficando refém do momento, extremou posições. Estamos a chegar ao fim de Janeiro. Vasco Gonçalves pensa já nas nacionalizações, sem que o assunto seja afirmado. Por aquela altura encarrega Mário Murteira, já ex-ministro, de criar uma comissão interministerial para proceder ao levantamento das participações do Estado em empresas."Fez-se um relatório onde se propunha a criação de um Instituto de Participações do Estado", explica. Já se planeavam as nacionalizações? Mário Murteira responde: "Já estavam no ar, mas não se sabia qual iria ser a extensão do processo." A defesa das nacionalizações "tinha como fundamento o argumento da fuga de capitais para o estrangeiro." O perigo era real? "Era. Os grandes grupos privados estavam a ter um comportamento que não era compatível com a evolução que se verificava no país. E existiam indicações e provas de fuga de capitais", sublinha o académico.No auge da revolução, e na sequência da sua intervenção na Economia [após o 11 de Março será o ministro da Economia do IV Governo Provisório], Mário Murteira fica conhecido pelo "czar vermelho". Sabia? "Não, fiquei agora a saber." Revelando talvez excesso de zelo revolucionário, constava então à boca cheia que o economista era o "homem de confiança" de Vasco Gonçalves para os assuntos económicos. É verdade? "É. O meu entendimento com o general era um entendimento humano, entre duas pessoas que, numa fase crítica da vida portuguesa, encontram um terreno de convivência." Não eram rivais, tornam-se companheiros. "Passávamos horas a discutir os acontecimentos, por vezes concordando, outras não. Era bom para ambos". A dada altura, numa conversa a dois, Mário Murteira tece o comentário: "o sr. General é considerado um materialista histórico e eu um crente. Mas, afinal, o sr. general parece ter mais fé do que eu, e eu, pelo contrário, ter uma visão mais objectiva da história." O primeiro ministro da Economia no pós-Revolução, Vasco Vieira de Almeida, saía de cena, lançando a âncora em Luanda, onde vai integrar o Governo de Transição. "Quando cheguei apercebi-me logo da existência de divisões profundas entre os militares membros da Comissão Coordenadora do MFA em Angola", lembra Vieira de Almeida. "Continuava a existir o mesmo fenómeno: os que se batiam sinceramente pela transformação da sociedade, preocupados em saber como descolonizar; os cobardes; os idealistas; os elementos mais reaccionários". A missão em Angola era de certa forma suicida, o clima continuava a ser revolucionário. Numa palavra, tal como no Continente também ali havia falta de realismo. "Bom dia meus senhores! Pastas debaixo da mesa, mãos em cima da mesa!". As armas ficavam nas pastas. Era assim que Vieira de Almeida dava início aos conselhos de ministros do Governo, que integrava ministros do MPLA, da UNITA e da FNLA. Cada ministro levava para a sala três guarda-costas, com metralhadoras na mão. Em Luanda assassinavam-se pessoas dentro de barris de ácido sulfúrico, Agostinho Neto anunciava a nacionalização do Comércio Externo, um ministro do FNLA queria o "bago", que é o mesmo que pedir o dinheiro do Orçamento Geral de Estado, em mão. Não obstante, nas ruas não se viam agitação ou conflitos laborais.O mês chega ao fim. Portugal está em chamas, vive em crise de sanidade. O desemprego atinge já 200 mil cidadãos. Os trabalhadores continuam activos, espalhando-se os conflitos por todo o país. Há paralisações na Messa, na IBM e na Applied Magnetics. Os saneamentos, as promoções, as senhas de almoço e o horário de trabalho são as reivindicações do momento em muitas empresas. Nas escolas, os estudantes mexem-se. Em Coimbra, os alunos reivindicam o fim dos exames de aptidão à universidade. Está-se já a ver: uma forte corrente, da esquerda à direita, recusa alinhar ao lado da UEC, opondo-se ao serviço cívico obrigatório. Daqui para a frente o país mudará de rumo. A revolução está agora em ponto de rebuçado.Nota: O PÚBLICO agradece as imagens e o apoio cronológico do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra.Na próxima semana: O Governo aprova finalmente o Plano Melo Antunes, uma tentativa moderada de realinhar a economia em contradição com uma Reforma Agrária já em curso. Vasco Gonçalves não se manifesta em Conselho de Ministros. O golpe do 11 de Março estava na calha, e com ele as nacionalizações.

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