Em busca da águia de Bonelli

A introdução de espécies exóticas é a segunda maior ameaça à biodiversidade do planeta, só ultrapassado pela destruição de habitats. Num seminário que está a decorrer em Lisboa, vários foram os exemplos de invasões em Portugal de plantas e animais que destruíram os seus primos lusitanos. A falta de conhecimento sobre a ecologia destes seres e o nível de ameaça que constituem é o grande desafio que agora se impõe.

A chuva deu uma trégua e o nevoeiro vai criando imagens esparsas ao longo do vale e nas suas encostas cobertas de amendoeiras e oliveiras, redesenhando a paisagem a cada segundo. O rio Sabor pressente-se ao fundo, mas não se vêem nem se ouvem as suas águas. O que se ouve são perdizes, toutinegras, tentilhões, chapins e muitas outras aves a cantar. Parece uma sinfonia.O chilreio é constante e ganha mais força à medida que se vai apurando o ouvido. Os sons vêm de todo o lado, alguns são indecifráveis, mas há um que se destaca de todos os outros. "Estás a ouvir?", alerta Bárbara Fráguas, chamando a atenção para o "kau, kau" que vinha do alto do penhasco e que ecoava pelo vale. "É uma águia real".O dia começou bem. A bióloga partira em busca da majestosa ave de rapina e lá estava ela no seu território, dominadora, sempre vigilante, apesar do afloramento rochoso que escolheu para nidificar ser inacessível. À chegada dos estranhos, voou para a crista do penhasco, onde o nevoeiro não chegava, e ali permaneceu, imóvel. A sua silhueta é bem visível à vista desarmada. Mas Bárbara e José, namorado e seu colaborador no estudo das águias, querem ver mais, querem saber se o ninho estava ocupado e se a postura já começou. Mas nem o telescópio, nem os binóculos conseguem furar o nevoeiro que vai enleando num anel o lugar da arriba onde está o ninho.José vai entretendo o tempo a descodificar o murmúrio da natureza. "Olha, este som é de uma perdiz a voar", afirma, com a segurança que lhe advém do facto de, desde miúdo, passar a vida a observar e escutar as aves. Bárbara parece encantada com a beleza do vale do Sabor. "Até com chuva isto é bonito", diz. O tempo vai passando e o nevoeiro persiste em ocultar o ninho da águia. Não vale a pena esperar. A manhã já vai longa e há outros ninhos para observar. A etapa seguinte leva o grupo até outra arriba, onde nidifica um casal de águia de Bonelli. Bárbara estaciona o jipe uma ladeira distante para fazer a observação, de modo a evitar perturbações. Com a ajuda do telescópio e dos binóculos, confirma as suspeitas. "Está no ninho", murmura. Apesar da chuva prejudicar a visibilidade, é bem perceptível o dorso acastanhado da águia de Bonelli. Com toda a certeza, a fêmea está a incubar e, quando é assim, raramente sai do ninho. Bárbara vai alargando o ângulo de observação em busca de sinais do macho. José vai apurando o ouvido. Mas não há qualquer sinal. "Deve andar a caçar", suspeita a bióloga. Paciência. Outras águias de Bonelli se haveriam de ver até ao fim da viagem pelos trilhos do Sabor, julgavam todos. Puro engano. Até ao fim do dia viram-se muitos ninhos, mas nem mais uma águia.Ossos do ofício. Bárbara voltará noutro dia. Nos próximos meses vai andar numa roda viva entre o Parque Natural do Douro Internacional e o vale do Sabor. Depois de se ter tornado mestre em águia de Bonelli, a bióloga obteve uma bolsa do programa Praxis para, no âmbito do seu doutoramento, fazer um estudo comparativo entre a águia de Bonelli e a águia real, desde Bragança a Figueira de Castelo Rodrigo. "A ideia é saber se existe algum tipo de competição entre estas duas grandes águias", explica.No Douro e no Sabor, as duas espécies, fortemente territoriais, ocupam o território de forma intercalada e é este pormenor que faz do Nordeste transmontano "um lugar de estudo único na Península Ibérica". O trabalho está apenas no começo e Bárbara ainda não chegou a qualquer conclusão. Sabe apenas que no Douro internacional os casais de águia real e de Bonelli estão mais próximos uns dos outros do que no Sabor. E que a percentagem de reprodução entre casais de águia de Bonelli é maior no vale do Sabor do que no Douro internacional.No Sabor não há tanta disponibilidade de fragas como no Douro, as que existem estão quase todas ocupadas. "Daí a sua importância", sublinha José. Mas, tal como o Douro, possui magníficas zonas de refúgio e de reprodução das principais presas daquelas duas águias. Tipicamente predadoras, alimentam-se ambas das mesmas espécies - coelhos, lebres, raposas, perdizes, pombos, lagartos, roedores -, embora a águia de Bonelli, por ter um voo mais rápido, oriente a caça para as aves, enquanto a águia real prefere os mamíferos. Mas a técnica que usam para caçar é idêntica: depois de avistarem a presa, efectuam um voo picado e apanham-na com as garras. Depois levam a presa para um lugar seguro onde a possam comer, ou para o ninho, se houver crias para alimentar.No caso da águia de Bonelli, o período reprodutivo acontece por esta altura do ano. O casal começa a compor os ninhos a partir de Dezembro, primeiro transportando paus secos, depois ramos de árvores com folhas verdes. Depois vem a fase mágica do acasalamento e das paradas nupciais. Durante horas e, por vezes, dias o casal vai riscando o céu com voos acrobáticos, picados e ascendentes, umas vezes lado a lado, outras separadamente, num jogo de sedução e encantamento que termina com a cópula, normalmente numa rocha. "É uma coisa fantástica!", diz Bárbara Fráguas, que compara o fascínio das paradas nupciais apenas ao prazer da descoberta de novos ninhos.No fim de Janeiro, o casal começa a ocupar o ninho - na águia real, a ocupação começa cerca de dois meses mais tarde - e o período de incubação demora cerca de 38 dias. Por ano, uma águia de Bonelli tem apenas uma ou duas crias, que permanecem no ninho entre 65 a 70 dias. Por volta do fim de Maio, início de Junho, começam a voar.Por agora, as crias deste ano vão lutando pela sobrevivência ainda no ninho, debaixo da protecção dos progenitores. Bárbara só mais tarde terá uma ideia aproximada do número de casais que se reproduziram este ano. Actualmente, estão referenciados no Nordeste transmontano, verdadeiro santuário natural para as aves de rapina, 40 casais de águia real (no total do país deverá haver cerca de 60) e 30 de águia de Bonelli, aproximadamente um terço da população nacional. Na bacia do Sabor deverá haver cerca de 14 casais de águia real e oito de águia de Bonelli.Quando as crias tiverem cerca de 45 dias começa o trabalho mais árduo, mas também o mais aliciante, de Bárbara. É a hora de subir aos ninhos (aos que são acessíveis) para medir os juvenis, confirmar as idades (através da plumagem), diagnosticar possíveis doenças, fazer recolhas de sangue para análise genética e colocar anilhas nas patas. A partir de Junho, Bárbara já vai poder seguir as suas águias através do sistema de telemetria. Poderá então saber um pouco mais sobre os seus hábitos, as suas áreas vitais e a forma como ocupam o território ao longo do ano. Até agora, para além das observações directas, a anilhagem tem sido uma peça preciosa de todo o trabalho e por vezes tem proporcionado grandes surpresas. A última aconteceu há pouco tempo. Duas crias que foram anilhadas no Sabor apareceram mortas bem longe do local onde nasceram: uma em Valladolid e outra em Toledo. Bárbara sabe que, na altura da dispersão, as águias podem percorrer longa distâncias, mas não imaginava que aqueles juvenis pudessem ter voado para aquelas zonas de Espanha. "Foi uma grande surpresa", confessa.

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