Nas margens da História

A RTP 2 vai estrear a 2 de Abril a série de quatro episódios, Mar das Índias. Da Ilha de Moçambique até Bombaim, passando pelo Iémen e Etiópia, combina toda a tristeza do mundo com momentos de uma comovente humanidade. A realização é de Camilo Azevedo. Com Mar das Índias poderá, também, ter nascido um divulgador de primeira água: Miguel Portas, o autor dos textos.

Março de 1998, praia de Quelimane, Moçambique. Entre a música de Cabeçon, compositor espanhol do século XVI, criando uma atmosfera onírica, o som das ondas de um mar azul intenso. De camisa vermelha, descalço, descontraído, Miguel Portas abre o primeiro episódio de Mar das Índias. "A Costa dos Três Ouros": "Melinde, Bombaça, Ilha de Moçambique ou Sofala são lugares que conhecemos desde os bancos de escola. São lugares do Índico, do Índico africano, onde a vida obedece às regras das marés e aos ventos das monções."Embora nunca tenha tido qualquer experiência televisiva, a verdade é que o cabeça de lista pelo Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu está como peixe na água. E com esta prova de fogo - ele que nem sequer sabia o que era uma câmara -, Mar das Índias pode ter dado a descobrir um divulgador nato - na actual paisagem televisiva em que reina a figura de José Hermano Saraiva, como, nos anos 70, sobressaía António Victorino d'Almeida que, com os seus programas realizados em Viena de Áustria, formou gerações de melómanos.Encomenda da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), Mar das Índias partiu de um guião original do jornalista do semanário "Expresso", António Cabrita. Miguel Portas, com 41 anos, apanhou a nau a meio do caminho mas respeitou a ideia original.Em termos televisivos não é uma reportagem. É um documentário nota o realizador Camilo Azevedo, 43 anos. Qual é a ideia central? "Captar o olhar de um o português de hoje, razoavelmente informado, que percorre lugares que tivessem a ver com a nossa história exportada" explica Miguel Portas. Mais do que "uma abordagem ideológica, é um olhar subjectivo". Ao longo de 20 a 30 dias de viagem "vêem-se sempre os mesmos gestos, o mesmo ritmo do tempo a passar. Permanente e intensamente. E isso toma conta de nós", notam os dois companheiros de viagem. "Eu ainda fui o que sofri menos porque tinha que ir lendo muito" diz Miguel Portas. "Mas o Camilo, com o Jorge Meireles e o João Martinho, os homens da imagem e do som respectivamente, estavam todo o dia a filmar." Talvez por isso, no primeiro episódio, que irá para o ar no domingo, 2 de Abril, o apresentador, também ele, ande devagar. Fale claro, pausadamente, sem deixar o espectador maçado. Por isso também os ritmos entre Miguel Portas e Helena Torres, que empresta a voz "off" ao programa, sejam diferentes O problema não é técnico. Não. Todo o tempo daquele mundo é vagaroso. Até o sol, de um vermelho-laranja, se põe mais devagar... Miguel reconhece: "Senti isso brutalmente."A série documental, que será apresentada à comunicação social na próxima 3ª feira, no Pequeno Auditório da Culturgest, às 19h, vai da Ilha de Moçambique até Bombaim, passa pela Etiópia e pelo Iémen. No primeiro programa revisita-se "A Costa dos Três Ouros": o primeiro ouro com a viagem do Gama - que esteve na origem na famosa custódia do Mosteiro dos Jerónimos; o segundo "ouro" é o marfim, quando se dá a penetração atrás das manadas (o marfim africano é que dá para trabalhar, ao contrário do da Índia); o terceiro "ouro" é o dos escravos.Entre o passado e o presente, o primeiro episódio, que o PÚBLICO visionou, é um brutal soco no estômago. E nos próximos episódios os espectadores verão coisas, como diriam os cronistas de há 500 anos, dignas de pasmar... Tragédias que são, com certeza, desconhecidas da maioria dos portugueses. Ilha de Moçambique, capital do país muitos anos antes de ela ser instalada em Lourenço Marques, hoje Maputo. Numa plantação de palmeiras trabalham 500 famílias. Nenhuma deles conhece quem é o patrão. Trabalham à jorna. "Se qualquer miúdo não colhe 30 bichos da palmeira por dia não ganha, logo não come. É uma sociedade que não é esclavagista, no sentido técnico do termo; mas que é subordinada a uma enorme violência. E é completamente indiferente que seja a Frelimo ou não. Mais: não vimos nenhuma escola", nota, de cigarro sempre na boca, Miguel Portas. Viram crianças a dançar junto do palácio do governador, viram "tragédias silenciadas", refere Camilo Azevedo.É sempre assim: "Há uma característica comum aos quatro episódios: são terras tristes, tudo aquilo é triste. As pessoas, o ritmo em que vivem, é triste - vivem num estado de inacção. Inacção do qual nós podemos ser culpados ou não" sublinha o realizador. As imagens são de uma beleza de sufocar. É um dos grandes paradoxos da série mas, também, um dos seus trunfos. Do olhar de um negro, um sorriso, um gesto. Sem palavras, as imagens falam por si.A perspectiva de Mar das Índias não é histórica. Está nas margens da História. Mas dá que pensar. Na era da globalização, há países que vivem parados no tempo. Ou pior: "A Etiópia está fora de todo o tempo, é o quarto mundo, Moçambique é o grande cansaço do tempo, o Iémen é o terceiro mundo, é a falta de tempo, o não haver tempo, e Bombaim introduz o futuro. Ou alguma réstea de esperança" sublinha Portas.O trabalho correu bem e os dois estão satisfeitos com o resultado. Claro, passaram por situações inimagináveis. Camilo Azevedo conta uma delas: queria filmar um determinado lugar numa aldeia da Etiópia. "Num dia", conta divertido, agora que já passou pela experiência, "andei oito horas sem parar porque a noção que eles têm do território e das distâncias é um pouco como na anedota dos alentejanos: é já ali. Só que lá são umas centenas de quilómetros. Porque eles fazem 600 quilómetros a pé. Porquê? Para não pagarem o bilhete de autocarro, o que andam a pé é uma paragem do autocarro. É assim a vida na Etiópia."Uma vida que é preciso conhecer. Descobrir. Dá vontade de recordar a epígrafe de "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago: "Se podes olhar, vê. Se podes ver repara."

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