Lisboa desenhada

Na Bedeteca de Lisboa mostram-se várias Lisboas. É a segunda parte de um ciclo iniciado em 1998 por Filipe Abranches, autor de BD, e A. H. Oliveira Marques, historiador. São possíveis rotas para a cidade e suas metamorfoses.

Está lá a cidade de Lisboa durante a época romana e a ocupação árabe, mas também a Lisboa quinhentista ou a Lisboa burguesa - sobretudo, há factos para tornar a cidade protagonista. E são nove essas idades (ou núcleos), que são uma forma de a mostrar ao longo dos tempos."História de Lisboa", projecto em banda desenhada de Filipe Abranches em conjunção com o historiador A. H. Oliveira Marques, editado pela Assírio & Alvim, é uma obra atípica. "Interessava contar a história de Lisboa. Penso que demos uma perspectiva nova, havendo a noção de que não são histórias fechadas, mas sim algo como uma manta de retalhos", diz Filipe Abranches. Próxima da novela gráfica, está longe de um figurino clássico, algures numa leitura pessoal que fractura em várias metamorfoses a visão que se tinha até hoje da cidade. Elas podem ser vistas até fim de Maio nas pranchas originais dos dois volumes (o segundo vai sair brevemente) em "Quantas Lisboas Guarda a História?", exposição na Bedeteca de Lisboa. Reúne a quase totalidade das pranchas dos dois volumes e uma cortina de imagens que incluem elementos iconográficos de diferentes épocas, correspondentes aos vários núcleos em que se divide a exposição: desde a autonomização de personagens do livro que surgem destacadas e "encenadas", até elementos como areia, mapas, ilustrações, documentos de época, numa procura de mais realidade, mas sobretudo de mais ilusão. Esta "História de Lisboa", que poderia ser uma história de uma cidade como outra qualquer, está envolta em cores expressionistas e num formato que também é uma história de contaminações: a estranha associação de um historiador e de um autor de BD. "Foi uma feliz combinação de dois autores", explica Oliveira Marques. Estava lá a História a aproximá-los, pois Filipe Abranches tem formação nessa área."Foi-me endereçado um convite da Bedeteca a partir de um projecto camarário para fazer esta obra. Na altura, já havia um argumentista escolhido, Oliveira Marques. Este mostrou-se disponível e, quando lhe mostraram o meu trabalho, gostou do que viu e tratou de escrever um guião. Tivemos, então, várias reuniões juntos para o livro ser lançado no Salão Lisboa de 98, numa exposição colectiva patente no Museu da Cidade", conta Abranches. E como colabora um historiador numa BD? Talvez improvisando sobre o crescimento do tecido urbanístico da cidade de Lisboa, diz Oliveira Marques - Lisboa já não é matéria nova para ele, pois tem dedicado várias obras à cidade. "Tentei improvisar a partir de 'fait-divers', visto que uma cidade cresce constantemente. O objectivo era: já que não podia ir mais atrás, então começar pela romanização, passando pelo terramoto - no segundo livro -, pela reconstrução de Lisboa, o Rosa Araújo [vereador do pelouro do urbanismo da Câmara de Lisboa que acabou com o Passeio Público e abriu a Avenida da Liberdade], até às grandes transformações urbanísticas de Eduardo Pacheco." Para conseguir estruturar a obra em duas partes distintas, o desenhador Filipe Abranches reinventou a cidade em contornos alucinados, figuração não realista e num trabalho expressionista sobre a cor. O processo foi moroso. "Todo o plano gráfico e planificação foram feitos por mim", salienta Abranches. Tendo sido o primeiro autor a aceder à bolsa de criação atribuída pelo Ministério da Cultura para a BD, Abranches é autor de uma obra dispersa que engloba vários títulos - entre outros, "Alô?" e "16? 1" (para as edições Polvo) ou o trabalho que fez para o álbum colectivo "Porto Luna", para a editora francesa Amok, que se prepara para editar "História de Lisboa" em francês, no Salão do Livro de Paris. O autor, que está agora envolvido num projecto de BD a partir do universo de Raul Brandão, afirma que trabalhou "História de Lisboa" por capítulos, tendo a recolha documental ficado a seu cargo. "O que estava menos correcto era então corrigido por Oliveira Marques", explica. "Tentei não ser propriamente realista - naquele aspecto em que se está preso ao pormenor -, mas conseguir criar certo tipo de ambientes. Daí que tenha tido alguma preocupação com o desenho, que surge estilizado, quase depurado."Mas de que forma os autores contaram esta História? O intuito era mostrar tanto figuras maiores, como a gente anónima. Como afirma ainda Abranches, esta Lisboa é inédita, não querendo contar o que já se sabia. Por isso gosta da contradição. "O facto de se ter escolhido a palavra 'História' no singular e não no plural - pois é disso que se trata: de histórias - não deixa de reflectir esse conceito. A contradição é salutar, é provocatória: gosto da ideia de pormos tudo como numa manta de retalhos."

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