Olá, o meu nome é Andy Kaufman

"Show" de Jim Carrey na pele de Andy Kaufman, um "performance artist" dos anos 70 que estendeu a comédia até aos limites do embaraço. "Homem na Lua", de Milos Forman, é a tentativa de biografia - "tentativa", porque os que conheceram Kaufman dizem que atrás das máscaras que ele levava para cima de um palco não existia ninguém.

Jim Carrey parece surpreendentemente pouco entusiasmado ao falar do Globo de Ouro para melhor actor de comédia que recebeu pela interpretação de Andy Kaufman, o obsessivo "performance artist" dos anos 70, em "Homem na Lua". É como se este papel ultra-exigente lhe tivesse sugado a energia, mas na realidade o actor, que cobra 20 milhões de dólares por filme, já terminou, depois da obra de Milos Forman, outra película, "Me, Myself & Irene", realizado pelos irmãos Farrelly, os mesmos de "Doidos por Mary". Será por a lua de Carrey estar em Gémeos que ele pode interpretar personagens com várias personalidades? "Andou a ler o meu mapa-astral!", brinca Carrey, enquanto lança o seu largo esgar, de dentes firmemente cerrados. E é o mais cómico que o comediante se torna. Sentirá ele, às vezes, que tem diferentes personalidades emboscadas dentro de si mesmo? "Sinto que tenho uma que ainda não consegui perceber e provavelmente nunca perceberei", diz completamente sério. Carrey, 38 anos, é provavelmente o mais complexo de todos os cómicos de Hollywood. Por um lado, é incrivelmente ambicioso e disciplinado, lutando para se desafiar a si próprio e melhorar sempre que pode. Por outro lado, é uma boa-alma que teve uma adolescência complicada e que tropeça no amor com toda a facilidade - e quem o conhece descreve-o como uma pessoa triste.Vestido de forma conservadora, com uma camisola verde-claro com um grande decote em V e calças verdes mais escuras, Jim Carrey admite vir de uma ilha dos inadaptados. Se calhar, ele é o que de mais próximo temos hoje de Andy Kaufman. Como Kaufman, Carrey alargou as fronteiras da comédia desde o início da sua carreira, despindo as roupas e molestando pessoas durante a sua actuação. "Fiz tanto esse tipo de coisas", admite. "Muitas noites irritei completamente a audiência. Houve uma noite em que os produtores vieram ter comigo e eu estava em pé em cima de uma mesa com uma garrafa de cerveja partida na mão e seis tipos à minha volta que me queriam matar. Sei como se estruturam piadas e todas essas coisas, mas o importante é criar qualquer coisa de novo, que não seja a mesma velha história."Vestir a pele de Andy Kaufman abriu novas possibilidades à estrela cómica. "Agora sei o quão catártico pode ser deixarmo-nos perder numa personagem. De repente deixei de reagir, de me preocupar com os meus problemas. A personagem é que vivia e tudo era visto da sua perspectiva. Senti como se tivesse tirado férias. Depois de três meses nesta intensa experiência, estava carregado de energia, não esgotado. Voltei a sentir que tinha estado fora por três meses." Mesmo após o fim dos trabalhos em "Homem na Lua", Andy Kaufman permaneceu latente em Jim Carrey durante as rodagens de "Me, Myself & Irene". "Enquanto estávamos a filmar uma cena, Pete Farrelly dizia-me: 'Acho que o Andy apareceu nesta'."Desde há muito que Carrey era um admirador de Andy Kaufman, um cómico que os americanos começaram a aplaudir quando apareceu como Latka na série televisiva "Taxi", que co-protagonizava com Danny DeVito. No entanto, esse foi o papel que Kaufman acabou por odiar, porque detestava repetir a mesma coisa uma e outra vez. Para além do mais, detestava o formato da "sitcom". Por fim, acabou por, de forma tenaz, dar às audiências exactamente aquilo que elas não queriam - de tal forma, que o público chegou a votar para que ele desaparecesse dos ecrãs de televisão. Quando as audiências conseguiram gostar do novo tipo de humor, Kaufman mudou de novo. Mas, na verdade, ninguém partilhou o seu amor pela luta livre, que era do que ele mais gostava. Kaufman pregava partidas tão negras que quando em 1984 morreu de cancro no pulmão ninguém acreditou que estivesse morto. Bem nascido numa família de ascendência judia, Andy Kaufman revolucionou a comédia ao ponto de um número não mais ter que representar uma gargalhada por minuto. Era uma exasperante sucessão de personagens dentro de personagens, que ele não largava quando saía do palco, e quanto às hipóteses de gargalhada, o culminar da piada, a "punchline", digamos que estava mais interessado em desencadear uma reacção na audiência, qualquer que ela fosse, incorporando o fracasso no seu trabalho - se o público o vaiva, isso para Kaufman já era um sucesso. Uma vez adormeceu e irritou toda uma plateia, que foi vê-lo para se rir, ao ler de ponta a ponta "O Grande Gatsby", de Fitzgerald. E outra vez, quando o próprio Milos Forman o viu ao vivo, no início dos anos 70, o realizador sentiu tanta pena dele, ficou tão embaraçado, que lhe apeteceu pôr-lhe uma mão no ombro e aconselhá-lo a procurar outro trabalho.Há cinco anos, numa festa, Jim Carrey conheceu o "manager" de Kaufman, George Shapiro (no filme, interpretado por Danny DeVito) que sugeriu a Carrey, um dia, interpretar Kaufman. Mesmo assim, quando começaram os "castings" para "Homem na Lua", Carrey teve de fazer uma audição. Milos Forman já tinha em vista vários nomes conhecidos, mas ainda que Edward Norton (que participara no anterior filme de Forman, "Larry Flynt") fosse bastante bom, Carrey impôs-se. Forman deixou que fosse o estúdio, a Universal, a escolher; não queria ficar com a responsabilidade nos ombros.Consideravelmente mais alto e esguio que Kaufman, Carrey mudou pouco na sua aparência, exceptuando ter adoptado a postura curvada de Kaufman. A técnica de Carrey de se manter na personagem poder-se-ia dizer "kaufmaniana". Kaufman era um homem de tantos rostos que ninguém realmente sabia quem era o verdadeiro Andy, nem mesmo a sua namorada - "Tu não existes", dizia-lhe a namorada (no filme, interpretada por Courtney Love). E "Homem na Lua" não nos dá pistas para a biografia. Deixa-nos ficar sozinhos com Andy Kaufman/Jim Carrey em palco, e com os rostos das várias personagens. A mais infame delas era um odioso cantor "lounge", Tony Clifton, um bobo gozão. Na rodagem de "Homem na Lua", Carrey, como Clifton, tornou-se na animação do "plateau", espalhando queijo mal-cheiroso e salami debaixo do colchão da "roullote" de Danny DeVito - e espalhando isso tudo nas mãos das pessoas quando estas o cumprimentavam. Carrey esteve sempre na pele de Andy Kaufman. Milos Forman conta que nunca conheceu o verdadeiro Jim Carrey. A personagem Tony Clifton reapareceu para a conferência de imprensa do filme, no seu lançamento americano, desta vez reincarnada por Bob Zmuda, amigo da vida real e companheiro de trabalho de Kaufman. Carrey andou ao soco com o "impostor" de Clifton em frente à imprensa americana, e nunca se referiu a tal como uma partida - como Kaufman também nunca o teria feito. Quando, no ano passado, Carrey causou agitação ao aparecer na entrega dos prémios VH1 com roupas e corte de cabelo à rocker dos anos 60, proferindo um discurso profanador que parecia querer "ressuscitar" Clifton, a prestação também era "kaufmaniana".É evidente que Carrey se divertiu à grande a fazer de Andy, e se sentiu honrado em ser o escolhido para trazer de volta a memória de um génio relativamente desconhecido do público internacional. "Andy não foi compreendido pelos seus contemporâneos", afirma. Era mais o "comediante dos comediantes" do que o "comediante do público". "Hoje em dia haverá um entendimento melhor. Andy estava à frente do seu tempo." Talvez o mesmo possa ser dito de Jim Carrey?As duas constantes na vida de Carrey ao longo dos últimos anos têm sido a filha, Jane, e o cão. "A minha filha é-me essencial, ela é verdadeira, não há fingimento. É uma pessoa maravilhosa." Como é que ela reagiu quando o actor voltava a casa com a personagem de Kaufman? "Ficou tão feliz! Ela conhece o meu trabalho. Tem vindo às rodagens, tem-me visto de vestido e tó-tós e sabe que é só o pai a fazer coisas."Nascido no Canada (é daí que lhe vêm os modos suaves), Carrey cresceu nos subúrbios de Toronto. Durante a sua adolescência o pai, contabilista, mas também um aspirante a músico de jazz, perdeu o emprego. A família teve de se mudar de Toronto e as quatro crianças começaram a trabalhar. Depressa abandonaram o estilo de vida que tinham para passarem a viver uma vida desprestigiante e a habitar numa caravana. Acabaram por ir parar de novo a Toronto, onde Carrey vingou a sua raiva desenvolvendo um número de comédia com material fornecido pelo pai, que apresentava em bares.A sua primeira grande oportunidade veio com um surpreendente êxito televisivo em "Living Color", um programa totalmente protagonizado por negros, com apenas dois brancos. O actor Damon Wayans ficara impressionado com Carrey durante "Earth Girls Are Easy", e sugeriu-o para "Living Colors". Carrey também aparecera quase invisivelmente em filmes como "Peggy Sue Casou-se", de Coppola, mas pareceu ter vindo do nada em 1994 para arrebatar a coroa americana da comédia com três filmes, "A Máscara", "Ace Ventura: Pet Detective" e "Dumb and Dumber". A cavalgar a onda da fama, fez a inevitável sequela de "Ace Ventura: When Nature Calls", interpretou Riddler em "Batman Forever", aceitou um papel mais dramático no incompreendido "O Melga" e regressou ao formato de êxito de bilheteira com "Liar, Liar", interpretação que lhe valeu uma nomeação para o Globo de Ouro. Ganhou-o com "The Truman Show", e quando recolheu a sua segunda estatueta consecutiva no mês passado com "Homem na Lua", ironizou: "O que é que se passa aqui, pá? Sou a instituição que uma vez rejeitei!... Sou o Tom Hanks dos Globos de Ouro!"

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