A estrada interrompida

As águas estão a baixar em Moçambique, beneficiando da trégua da chuva. O ciclone "Glória" parece que já não entra país dentro. As ajudas parecem começar a chegar com intensidade. Mas há ainda imenso por fazer. Ainda haverá sobreviventes nas zonas de maior cheia? Há quem duvide. O apoio alimentar e o combate aos riscos sanitários são a prioridade que ganha força.A estrada da Beira, a verdadeira coluna vertebral das comunicações e da economia de Moçambique, acaba por estes dias a uns 120 quilómetros ao Norte de Maputo. O aterro de Xinavane, uma zona açucareira da província de Gaza, é um dos pontos onde a violência do temporal está bem à vista.Um par de quilómetros antes começa a perceber-se que a água roeu as bermas da estrada. Mas na zona do Aterro 3 de Fevereiro, ao longo de largas dezenas de metros, desapareceu. Literalmente. É, para quem vem de Sul para Norte, o primeiro grande sinal da recente violência da natureza. A estrada foi, literalmente, tomada pelas águas. Há postes telefónicos caídos.Quem sobe, tem forçosamente que parar. Tem? Nem todos. A água que subiu até aqui, vinda do Incomati, três ou quatro quilómetros para o lado direito, não intimida quem, mesmo no ambiente de tragédia, foi fazer compras ao Sul e regressa às suas aldeias, em zonas mais próximas do epicentro das cheias, no vale do Limpopo: vão para 3 de Fevereiro mas também para terras mais juntas a Chokwe e Xai-Xai, zonas onde a água fez dos maiores desmandos. "Lá para cima foi pior", confirmam.Caixas de cartão, sacos com comida, trouxa de pano, até bicicletas, são içadas com os braços ou levadas à cabeça e às costas de homens e mulheres, estas com as inevitáveis capulanas. Um permanente formigueiro de gente, que se move sob o sol intenso, mete-se à água mal cheirosa que lhes chega à cintura para atravessar algumas centenas de metros. E, um par de quilómetros mais à frente, apanhar outros "chapas" (que podem ser autocarros ou caixas de carrinha aberta) e retomar viagem até onde a água deixe. Não são dos mais atingidos pela fúria da natureza, mas a sua atitude revela o denodo de quem se habituou a lutas contínuas pela sobrevivência. Um punhado de camiões não pára de trazer terra que vai despejando no que foi estrada, procurando refazer a via. Afinal, a via que o PÚBLICO - e outros órgãos de informação portugueses - percorreram por estrada é uma via vital nas comunicações com o Norte. E as comunicações são um bem inestimável para levar ajuda a quem dela precisa. "Dentro de pouco tempo vamos conseguir passar de camião", dissera, mais atrás, um funcionário do Programa Alimentar Mundial (PAM). Dois ou três quilómetros antes do 3 de Fevereiro, logo depois de Palmeira, a Estrada Nacional , que atravessa uma paisagem pontuada aqui e ali por palhotas, têm que fazer um desvio pela terra batida. A via rodoviária foi transformada em pista para levantamento dos helicópteros que levam ajuda para os campos onde têm sido instalados os deslocados das zonas sinistradas, mais a Norte. Serão agora, segundo as informações ontem dadas pelos pilotos no local, uma vintena, metade a transportar mantimentos, metade ainda em operações de resgate de pessoas isoladas. Hoje, com a chegada de meios de diversos países, deverão ser mais. Militares alemães, ingleses, portugueses, franceses, italianos e outros, juntam-se a quem já está no terreno. O helicóptero ocupa a estrada até que fique carregado com os sacos de farinha, milho, óleo, açúcar e outros. São aparelhos sul-africanos, ao serviço do PAM. Depois descola e parte para os campos de Chibuto, ou de Cecalene, ou 7 de Abril, ou, o maior de todos, Chiquelane, nas proximidades de Macia onde, como o PÚBLICO ontem referiu se concentram já mais de 30 mil deslocados, o nome dos refugiados em Moçambique. Números é coisa impossível de apurar com rigor, o próprio Instituto de Gestão de Calamidades não consegue fazê-lo. É assim há uns 25 dias, quando começaram a operar a seguir a Palmeira cinco helicópteros, embora as grandes cheias de há uma semana tenham obrigado a um intensificar da operação de socorro. "Agora já temos bastantes meios. Pela informação que temos já não há pessoas nas árvores", diz António Fernandes, um português há 38 anos residente em Moçambique, funcionário do PAM. Na berma da estrada uma fila de sacas de milho empilhadas às duas ou três, com uns dez metros de extensão, o resto das 40 toneladas que ontem dali partiram. E todos os dias está a ser assim. Mercê da ausência da chuva dos últimos dias, as águas têm baixado um pouco e permitido que se vá um um pouco até mais longe. Será assim por toda a parte. Mas os sinais do invulgar transbordar dos rios estão à vista para quem tenha referências de como era o antes. Nem em 1937 nem em 1966, datas que os mais velhos têm na memória, aconteceu coisa semelhante à de agora. Em Marracuene, a antiga Vila Bela Luísa, na junção dos rios Incomati e Maputo, onde o PÚBLICO ontem esteve, o rio avançou uns bons dez metros para o lado da povoação, alagou alguns casas de pequeno comércio que sirviam as populações da península onde se situa a conhecida praia da Macaneta, no oceano Índico. A subida das águas está a fazer crescer as inevitáveis preocupações sanitárias: os charcos de água que se vêm no interior de alguns bairros de lata da capital - Benfica, Mafalala, Xipamanine, Chamanculo... - fazem crescer o risco de aparecimento de doenças, cólera e epidemia à cabeça. A par de fazer chegar comida e água, é essa a grande preocupação. O ciclone "Glória", que até ontem parecia ameaçar entrar pelo país e criar novos focos de caos, parece que já não constitiu "uma ameaça séria" para Moçambique, a acreditar nas previsões dos serviços meteorológicos. É, ainda, no entanto, uma ameaça...

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