Os poetas de Eugénio

Dos cancioneiros medievais a Ruy Belo, a luminosa (e procuradíssima) "Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa" de Eugénio de Andrade. A fechar a semana em que o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores foi atribuído ao poeta de "As Mãos e os Frutos.

Antologiador de Camões e Pessoa, e ainda autor de uma recolha de poesia erótica ("Eros de Passagem") e de duas excelentes selecções de poesia e prosa relativas ao Porto e a Coimbra - respectivamente "Daqui Houve Nome Portugal" e "Memórias de Alegria" -, Eugénio de Andrade oferece-nos agora um panorama geral da poesia portuguesa, desde os cancioneiros medievais até Ruy Belo. Publicada por alturas do Natal, "Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa" esgotou em poucos dias a sua tiragem inicial e foi imediatamente reimpressa, sem que o poeta tivesse tido tempo, como pretendia, de lhe acrescentar quatro poetas vivos, o que deverá vir a suceder numa futura terceira edição. Sophia de Mello Breyner Andresen, Mário Cesariny, António Ramos Rosa e Herberto Helder são os nomes escolhidos por Eugénio, que fará a si próprio a injustiça de não se incluir. A poesia portuguesa tem falta de boas antologias, que são um instrumento de utilidade óbvia para quem começa a ler. Esse será um dos motivos para o sucesso editorial deste livro. O outro é a natural curiosidade de se saber quais são os autores e poemas preferidos de um grande poeta. E Eugénio de Andrade parece ter querido deixar claro, ao escolher o título "antologia pessoal", que estes são os poetas de que gosta, independentemente de critérios de representatividade ou de importância histórica. Por isso mesmo, limitou-se a indicar as datas de nascimento e morte dos poetas, dispensando o aparato crítico e as habituais indicações biobibliográficas. Mesmo as suas notas finais, aliás notáveis, referem-se mais a si próprio, enquanto leitor de poesia, do que aos poetas referidos. Se a crítica a uma antologia é sempre um exercício duvidoso, já que questionar esta inclusão ou lamentar aquela ausência não é mais do que propor uma antologia alternativa, sê-lo-á tanto mais quando o organizador assume expressamente o seu gosto pessoal como bitola única. Por outro lado, há que ter em conta que uma selecção rigorosamente igual a esta proposta por um autor desconhecido seria, paradoxalmente, um livro diferente. Se Eugénio escolhe um poema que não apreciamos particularmente, sentimo-nos tentados a lê-lo outra vez, procurando compreender o que nele agradou a um poeta de cujo grau de exigência a sua própria obra constitui a melhor garantia. Dito isto, pouco mais nos restaria do que adiantar aqui, sem outros comentários, a lista de poetas e poemas que integram o livro. Todavia, cremos existir um argumento que torna um pouco menos espúria a intenção de propor um juízo crítico desta antologia: a suspeita de que o atributo "pessoal" não se lhe aplica no seu sentido mais radical, como sucede, por exemplo, com "Edoi Lelia Doura", a "antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa" organizada por Herberto Helder. Em algumas escolhas de Eugénio de Andrade, adivinha-se que este quis reconhecer a qualidade de autores que dificilmente poderá considerar da sua "família" poética. Basta recordar que, numa entrevista relativamente recente, o poeta inventariava, em tom assumidamente provocatório, as suas predilecções e os seus ódios de estimação, incluindo, nesta última categoria, a par do fado, de Wagner ou de Elisabeth Taylor, o nome de Almada Negreiros. É provável que estivesse a referir-se mais às atitudes teatralizantes ou às inclinações esotéricas do colaborador de "Orpheu" do que à sua obra poética, mas, seja como for, a verdade é que incluiu dois poemas de Almada nesta antologia, da qual rasurou poetas aparentemente não menos antologiáveis.As cerca de 500 páginas do livro abrem com uma luminosa amostra dos cancioneiros medievais. A própria poesia de Eugénio de Andrade é herdeira da extrema musicalidade dos trovadores galaico-portugueses, da elegância límpida das suas imagens, do seu modo subtil de fundir num só sentimento as inclinações amorosas e as impressões provocadas pelo mundo natural. O poeta chegou mesmo a afirmar expressamente que a sua poesia "mergulha as raízes em Pêro Meogo, Martin Codax e João Zorro". Três autores presentes nesta antologia, com destaque para o primeiro, de quem são seleccionados quatro poemas, uma amostra mais ampla do que a concedida, por exemplo, a Garrett ou João de Deus. Nos poetas anteriores a Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, só D. Dinis está tão bem representado como Meogo. Além de poemas emblemáticos, como "Ai flores, ai flores do verde pino" ou "Levantou-s'a velida", Eugénio incluiu a chamada "pastorela do papagaio", uma composição que, estranhamente, passou despercebida a Alexandre Pinheiro Torres, cuja monumental "Antologia da Poesia Portuguesa" integra nada menos do que 43 poemas de D. Dinis. Ainda antes de entrar no Cancioneiro de Garcia de Resende, o organizador reserva um vasto capítulo aos romances tradicionais, desde a célebre "Nau Catrineta", que muitos se recordarão de ouvir as avós dizer de cor, até cantilenas não menos preciosas, como as da "Bela Infanta", da "Silvaninha" ou de "Santa Iria". Não se sabendo quem escreveu estes poemas, e em que momento preciso foram produzidos, a tendência dos antologiadores tem sido a de os ignorar. Uma injustiça que Eugénio felizmente reparou. Se contemplou 13 poetas dos primeiros cancioneiros, o organizador foi já bastante mais avaro a seleccionar a poesia palaciana do Cancioneiro de Garcia de Resende. Descontados os grandes poetas renascentistas que nele ainda figuram, como Gil Vicente, Bernardim Ribeiro ou Sá de Miranda, Eugénio escolheu apenas um vilancete de Francisco de Sousa, a célebre cantiga "Senhora, partem tam tristes", de João Roiz de Castelo-Branco, e as extensas "Trovas à morte de D. Inês de Castro", do próprio Garcia de Resende. Em compensação, Gil Vicente, Bernardim e Cristóvão Falcão estão abundantemente representados. E Sá de Miranda ocupa 17 páginas, porque se quis dar na íntegra, e ainda bem, a sua extraordinária carta em verso a D. João III. Já dos seus sonetos, Eugénio escolheu apenas dois, entre os quais se conta o que abre com esse verso - "O sol é grande, caem co'a calma as aves," - que atravessará os séculos para ecoar na poesia de Gastão Cruz. Talvez o Sá de Miranda sonetista merecesse mais ampla amostra. Refira-se apenas o soneto que abre com o verso "Desarrezoado amor, dentro em meu peito" e que termina com essa pergunta tão forte e tão estranha para a época: "Que farei quando tudo arde?"Notável é a escolha do Camões lírico e épico, que se estende por (escassas) 40 páginas. Outra coisa não seria de esperar do autor de "Versos e alguma prosa de Luís de Camões" (1972), que continua a ser, sem qualquer dúvida, a melhor antologia camoniana alguma vez organizada. Diogo Bernardes, com cinco poemas, pode considerar-se dos autores mais bem representados. Mas o antologiador já parece apreciar menos o seu irmão Frei Agostinho da Cruz, de quem apenas selecciona um soneto, ignorando as éclogas e as elegias. Dos séculos XVI e XVII, Eugénio apenas inclui, além dos poetas já referidos, António Ferreira e Rodrigues Lobo, deixando sensatamente de fora os autores da "Fénix Renascida" e do "Postilhão de Apolo". Mas já parece um pouco mais surpreendente a ausência de D. Francisco Manuel de Melo. E não se mostra mais piedoso com os autores setecentistas. Dois poemas de Nicolau Tolentino e quatro de Bocage arrumam o século XVIII. É certo que será difícil encontrar hoje alguma coisa legível na vastíssima obra de Filinto Elísio, já para não falar de autores mais obscuros. Todavia, poderá surpreender alguns leitores a exclusão de Correia Garção e da Marquesa de Alorna. A abrir o século XIX, três poesias de Almeida Garrett, incluindo a belíssima "Barca Bela". Segue-se António Feliciano de Castilho, resumido à cantilena "Os treze anos". De facto, por muitos que possam ter sido os méritos pedagógicos de Castilho, bem se pode percorrer toda a sua obra poética que não se encontra nada, além desta cantiga, que mantenha hoje alguma frescura. Também não choca a ausência de Alexandre Herculano, cuja poesia, ao contrário da obra historiográfica, não resistiu ao tempo. Já João de Deus não foi esquecido, ainda que os apreciadores da vertente mais satírica da sua obra possam eventualmente lamentar que não figure neste volume a sua sátira ao dinheiro, um poema que, no seu tom popular e coloquial e no seu recurso a onomatopeias, quase faz pensar em Cesariny. Antero de Quental, Cesário Verde e António Nobre são, para Eugénio - e quem o contestará? - os grandes poetas do século XIX português. Deste último, assinale-se a inclusão do notável poema ao papa Leão XIII, que não costuma aparecer nas antologias, com excepção da "Antologia de Poetas Portugueses Modernos", co-organizada por Fernando Pessoa e António Botto.Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, Ângelo de Lima, Teixeira de Pascoaes e Afonso Duarte são os restantes poetas que o organizador considera, de entre os nascidos antes de Fernando Pessoa. De fora ficam poetas habitualmente antologiados, como o dispensável Soares de Passos e o talvez mais interessante Guilherme de Azevedo, que em alguns poemas prenuncia Cesário. E entre Pascoaes e Afonso Duarte, poderia ser desculpável a tentação de incluir um poema ou dois de António Patrício.Em Gomes Leal e Pascoaes, Eugénio opta por apresentar excertos de alguns poemas, uma estratégia justificável em relação ao longuíssimo "Regresso ao Paraíso" de Pascoaes, mas que poderia ter-se evitado com a "Nevrose Nocturna" de Gomes Leal - o antologiador seguiu aqui o precedente estabelecido por Nemésio -, onde o que se exclui é pouco extenso e não parece enfraquecer o restante. Mesmo que não se partilhe do entusiasmo desmedido de Pinheiro Torres por Guerra Junqueiro - dedica-lhe mais de 120 páginas da sua antologia -, talvez o autor de "A Velhice do Padre Eterno" merecesse mais, ainda assim, do que os dois poemas que o organizador conseguiu salvar. Das obras de Eugénio de Castro, Ângelo de Lima - uma das surpresas desta recolha - e Afonso Duarte, Eugénio de Andrade escolheu respectivamente três poemas. Já Pessanha é, depois de Camões e Pessoa, o poeta mais representado, o que, dada a breve extensão da obra que deixou, é tanto mais significativo. Mas Eugénio já muitas vezes assumiu as suas particulares dívidas a Cesário e Pessanha. Respondendo a um entrevistador que lhe perguntava quais seriam os dez objectos que levaria para a Lua, cita, entre discos de Mozart e Beethoven, a "Clepsidra", acrescentando: "e chega de poesia portuguesa". Mais surpreendente é a vasta selecção de Pascoaes, de quem selecciona nove poemas. Apesar da amizade que os ligou, Eugénio nunca deu mostras de partilhar do entusiasmo que outros poetas seus contemporâneos, como Sena ou Cesariny, manifestaram pela obra do poeta do Marão. Tal como a de Camões, também a escolha de Pessoa - valorizando, por ordem decrescente o Pessoa ortónimo, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro - é excelente, embora, em poetas desta grandeza e popularidade, nunca se consiga evitar a sensação de que faltam alguns poemas indispensáveis. Igualmente bem representado está Mário de Sá-Carneiro (oito poemas), que antecede mais quatro poetas nascidos na década de 90 do século passado: Irene Lisboa, Almada Negreiros, Florbela Espanca (com três belos sonetos que não integram o "cânone" habitual da poetisa) e António Botto. A ausência mais contestável, neste período, talvez seja a de Edmundo de Bettencourt. De José Gomes Ferreira (1900-1985) a Ruy Belo (1933-1978), Eugénio escolhe 13 poemas. Dado que esta última parte trata da poesia contemporânea, para a qual não existe ainda, quer em termos de autores, quer de poemas, um cânone solidamente estabelecido, é natural que o gosto de Eugénio nem sempre coincida com o de todos os leitores desta antologia. Alguns poderão considerar, por exemplo, que Miguel Torga estará um tanto sobrevalorizado. E nas escolhas de Vitorino Nemésio e Ruy Cinatti, as inclinações pessoais do antologiador parecem ter sido particularmente decisivas. Nemésio está, de resto, abundantemente representado, mas haverá quem sinta a falta dos grandes poemas de "Bicho Harmonioso", como "Vaga Verde" ou "Navio de Sal", e de algumas das suas melhores coisas de livros posteriores, desde os poemas de amor tardio de "Andamento Holandês" ao belíssimo "A Virgem dos Sete Véus", de "Limite de Idade". Na selecção de José Régio, talvez não fosse absurdo esperar a inclusão de alguns poemas do livro póstumo "Música Ligeira", cuja musicalidade, por vezes claramente devedora do cancioneiro medieval, deveria poder agradar a um poeta como Eugénio de Andrade. Certeiras, embora breves, são as escolhas de Pedro Homem de Mello e Manuel da Fonseca. Já Carlos Queiroz e Adolfo Casais Monteiro, numa triagem tão rigorosa como esta - e mesmo tendo em conta os dois poemas que Eugénio escolhe de cada um deles -, talvez pudessem ter sido dispensados sem perda de maior. Entre os presencistas, o cronicamente esquecido António de Sousa, não será menos interessante. E, naturalmente, na subjectividade inerente a qualquer antologia, haverá sempre quem lamente uma ou outra exclusão. Entre os autores mais recentes, alguns candidatos possíveis seriam Raul de Carvalho, apesar da sua extrema irregularidade, Natália Correia, ou António Maria Lisboa, que talvez não tenha tido tempo de atingir a altura que os seus admiradores lhe atribuem. Com Jorge de Sena e Carlos de Oliveira, ambos condignamente representados em quantidade e qualidade, atinge-se outro dos pontos altos desta antologia. E também os poemas que representam Alexandre O'Neill e David Mourão-Ferreira são bem escolhidos, embora, em ambos os casos, a amostra pudesse ser um pouco mais ampla. A antologia fecha com cinco textos de Ruy Belo, todos eles notáveis, a começar em "A Mão no Arado" e a terminar nessa obra-prima do poema longo que é "Muriel". O amor sofrido cantado pelos trovadores medievais prolonga-se até este poema de Ruy Belo, que finda luminosamente esta antologia. Talvez este seja um argumento para a ausência um pouco surpreendente de Luiza Neto Jorge (1939-1989).

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