O hip-hop está no ar

O lançamento recente, em edição de autor, dos álbuns de estreia de Sam The Kid, Micro e Filhos D'1 Deus Menor são a prova de que o hip-hop em Portugal ainda tem uma palavra a dizer e está aí, no ar, para quem o quiser apanhar.

O lançamento da compilação "Rapública" em 1994 parecia indiciar que Portugal havia acordado para o fenómeno hip-hop. Afinal, apesar da edição nos últimos anos de discos dos Da Weasel, Mind Da Gap, Black Company, Boss AC, Ithaka ou General D - todos eles com ligações, nem sempre assumidas, ao género - a sensação com que se fica é que a de que a visibilidade que o hip-hop conheceu nesse período foi algo extemporânea. Alguma ingenuidade dos diversos agentes envolvidos, a pouca tradição em Portugal no que toca ao consumo da "música negra", o facto de não existirem pequenas editoras que fomentassem o género e a quase inexistência de um circuito do qual fazem parte disc-jockeys ou lojas de discos são algumas explicações possíveis para que o hip-hop nunca se tenha verdadeiramente imposto em Portugal. No entanto, nos últimos anos a conjuntura mudou.Enquanto as grandes editoras se iam cada vez mais alheando do fenómeno, uma nova geração irrompia na sombra, erguendo um universo de ramificações "underground" onde coabitam MC's, disc-jockeys (o colectivo Raska, DJ Cruz, DJ Assassino, Bomberjack, etc), lojas de discos e de roupa (Godzilla, Big Punch, Subúrbio, etc), "mix-tapes", e um número infindável de novos projectos (Sam The Kid, Filhos D'1 Deus Menor, Micro, Resistência, Dilemma, Sete Pecados Mortais, Matozoo, Projecto Secreto, etc). Paralelamente, assiste-se a um crescimento exponencial do público que se interessa por hip-hop como provou o espectáculo, do ano passado, dos americanos All Naturals.O lançamento recente de três álbuns em edição de autor é apenas a ponta do icebergue. O imaginário não mudou - porque é que haveria de mudar? - mas as palavras e as rimas são cada vez mais elaboradas, a dicção deixou de ser um assunto secundário e nos suportes sonoros nota-se a procura de uma identidade para lá dos modelos estrangeiros mais óbvios, como, pontualmente, Sam The Kid, Micro e Filhos D'1 Deus Menor já revelam. Na sombra trabalha-se e os erros do passado não se querem repetidos. Ainda está quase tudo por fazer mas os alicerces para que o hip-hop tenha uma segunda oportunidade em Portugal estão a ser construídos.O jovem Sam The Kid foi o primeiro a apostar no lançamento de um álbum em edição de autor. Residente em Chelas, Lisboa, Sam The Kid parece ser um nome incontornável desta nova geração hip-hop e uma das figuras que persegue de forma mais óbvia novos desígnios para o género. "Entre(tanto)" é o seu primeiro disco, mas "antes tinha feito cassetes com músicas menos elaboradas, onde empregava apenas caixas de ritmos. Neste formato, com samplers, etc, é este o meu primeiro disco. Uma editora pode dar-me melhor condições de gravação e distribuição mas ao nível da liberdade criativa tenho as minhas dúvidas que existam vantagens. Já estou a fazer um segundo álbum e, ao contrário deste, vou gravá-lo em estúdio e vai ter a participação do DJ Cruz".O interesse pelo hip-hop despertou em 1993 "através de um amigo que me emprestou algumas cassetes vídeo que continham 'videoclips' de uma série de grupos. Depois comprei uma caixa de ritmos e formei um grupo. Nesse grupo senti que não existia rigor e empenho dos outros elementos - raramente ensaiávamos, por exemplo - e decidi fazer as coisas sozinho em casa. Gravei o álbum com um gravador de quatro pistas e uma mesa de mistura e mais nada".O que surpreende na música de Sam The Kid são as referências inesperadas - em "Entretanto" existem samples de Mário Viegas a recitar Almada Negreiros ou de Dulce Pontes a cantar Amália Rodrigues - a procura de momentos musicais harmoniosos e a composição de atmosferas por entre movimentos acústicos da guitarra portuguesa e batidas hip-hop. "Gosto de experimentar coisas diferentes" diz Sam. "No hip-hop a coisa mais simples e normal de samplar é funk ou soul dos anos 70. Cheguei a um ponto de saturação e comecei a pensar que fazia sentido samplar música portuguesa e outras coisas. Gosto de arriscar novas pistas para atribuir uma identidade à minha música".Mas, como revela a capa do seu disco - uma fotografia da família com o próprio incluído -, os interesses de Sam The Kid não se restringem à música propriamente dita: "neste momento estou a tirar um curso de audiovisuais, estou a fazer um filme sobre hip-hop e também faço os meus próprios vídeos, porque as minhas duas maiores paixões são o cinema e a música" diz Sam. De Torres Vedras, os Filhos D'1 Deus Menor, constituem provavelmente a maior surpresa deste lote de discos agora lançados. No álbum "A Longa Caminhada", a dupla de irmãos Black Mater e N.B.C., com a ajuda preciosa de Sam The Kid, G.L. Mix e Nabuconodozor desenvolve um hip-hop "cool" de contornos melódicos e jazzísticos onde existe musicalidade e pormenores de soul e r&b. As letras revelam uma execução elaborada e as vozes nunca se impõem de forma hegemónica deixando a música respirar e fluir como é audível em estimulantes temas como "Mundo Perigoso", "Perguntas sem respostas", "Conto Contigo", "Longa Caminhada" e "Grito do Silêncio". Segundo Sam The Kid, a colaboração com os Filhos D'1 Deus Menor surgiu de forma natural: "Eles são meus amigos e um dos muitos grupos que aparece em minha casa para improvisar e fazer coisas, daí que a minha colaboração com eles tenha surgido de forma expontânea. As bases instrumentais que fiz para eles têm um toque de jazz e são um pouco diferente daquilo que faço normalmente, mas revejo-me completamente no seu trabalho".Constituídos por D-Mars, Sagas e DJ Assasino, os Micro estrearam-se recentemente com o álbum "Microlândia". D-Mars fez parte dos Zona Dread, um dos grupos que despontou em "Rapública", e conta como os Micro se formaram. "Nas últimas presidenciais os outros elementos dos Zona Dread foram cantar uma música na campanha do Cavaco e eu resolvi acabar com o projecto porque aquilo não fazia sentido. Nessa altura o Assassino era DJ convidado dos Zona Dread nos concertos e o MC Sagas era meu conhecido e resolvemos formar os Micro". D-Mars chegou a Portugal em 1992 vindo da Croácia, onde já ouvia e fazia hip-hop: "naturalmente acabei por interessar-me pelo que se passava aqui" diz. "Nessa altura existiam poucos grupos e o programa de rádio do José Marino era uma autêntica 'meca'. Existia um grande sentimento de união e de apoio: toda a gente ia aos concertos uns dos outros. Ao contrário da actual geração, não tínhamos pontos de referência porque nunca ninguém havia feito hip-hop em Portugal. O 'Rapública' é capaz de ter sido um erro. Existiam certamente outras formas de fazer esse disco mas nessa altura éramos todos inexperientes e a proposta foi aceite. Nessa altura existia uma grande concorrência entre as editoras e alguns projectos acabaram por se perder". Uma das razões da vitalidade da actual geração hip-hop deve-se ao aparecimento de uma série de disc-jockeys e D-Mars parece ter consciência desse facto: "Na altura do 'Rapública' não existiam praticamente disc-jockeys. O DJ Toni dos Zona Dread era dos poucos que havia. Depois apareceu o Assassino, o Bomberjack, o colectivo Raska, etc, que deram um grande impulso à cena. Neste momento existem imensos MC's, DJs, b-boys, escritores, etc. Neste disco por exemplo contamos com a ajuda de uma série de amigos. Desde o início que queríamos fazer um disco por nossa conta e risco. Tivemos uma experiência frustada em 1998 porque gravámos um disco que nunca saiu, mas neste disco tivemos a sorte de contar com a ajuda de uma série de amigos e o disco está aí. Temos o controlo sobre tudo, o que equivale a dizer que se fizermos erros seremos nós os prejudicados. Vamos ver como as coisas correm".*Os álbuns "Entre(tanto)" de Sam The Kid, "Microestática" dos Micro e "A Longa Caminhada" dos Filhos D' 1 Deus Menor encontram-se à venda nas lojas Godzilla e Big Punch em Lisboa e Subúrbio no Porto.

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