Let's do the twist...

Uma história de morte, Bruce Willis, um menino prodígio chamado Haley Joel Osment e um "twist" final. Foi assim que "O Sexto Sentido" se fartou de fazer dinheiro nas bilheteiras americanas, tornando-se o 12º título na tabela dos filmes com maiores receitas de sempre no mercado dos EUA.

No ano em que a "space opera" mais badalada do cinema regressava pelas mãos do criador, George Lucas, os patrões dos grandes estúdios em Hollywood sabiam que havia pouco a fazer para tentar ocupar a posição cimeira no topo da tabela dos filmes mais vistos. Contas feitas e o previsível concretizou-se: "Star Wars - A Ameaça Fantasma" terminar 1999 como o filme que mais dinheiro rendeu nas bilheteiras norte-americanas durante esse período. Mas os peritos na matéria, embuídos de "sonho americano", efusivamente fizeram notar que 1999 foi também o ano em que um filme de custos irrisórios multiplicou por milhares os lucros, tornando-se no mais bem empreendido negócio de sempre na história da indústria americana de cinema: "O Projecto Blair Witch". De certa maneira, ambos serviram como novos paradigmas para balizar o negócio dos filmes neste fim de milénio, originando uma bipolarização de estratégias de produção e "marketing" que passaram a fazer parte da cartilha exemplar de qualquer jovem executivo com aspirações no "milieu". Porém, quem olhar mais atentamente para as tabelas de receitas da Variety ou congéneres, irá deparar-se com um caso menos mediático mas, seguramente, mais misterioso. O título é "O Sexto Sentido" e o realizador tem um nome bizarro, M. Night Shyamalan. Ficou em segundo lugar na lista do ano (acima de "Matrix" e dos "blockbusters" do Verão) e em 12º na tabela dos filmes com maiores receitas desde sempre no mercado americano. É um "thriller" fantástico que flirta com o género de terror e conta com uma vedeta, Bruce Willis. Mas isso chegará para explicar o sucesso comercial desta produção mediana em termos de investimento, para mais dirigida por um realizador de origem indiana cujas duas obras precedentes, "Praying With Anger" (92) e "Wide Awake" (97), tinham passado desapercebido nas salas americanas?Bem, não terão passado completamente desapercebidas, já que foi com um desses filmes anteriores que Steven Spielberg reparou em Shyamalan, apressando-se em apadrinhá-lo - foi Frank Marshall, um dos produtores habituais de Spielberg, que produziu "O Sexto Sentido". De qualquer forma, trata-se de um filme atípico, com muitos poucos efeitos especiais e um certo sabor a telefilme, maioritariamente centrado em duas relações distintas mas com um pólo comum: a mais importante, entre um psicólogo (Bruce Willis) e Cole Sear (Haley Joel Osment), uma criança aterrorizada e com sinais exteriores de maus-tratos, que afirma ver fantasmas; a segunda, entre Cole e a mãe (Toni Collete), que se vê impotente para lidar com os problemas do filho. Cinematograficamente plano e pouco inspirado, com as sequências fantásticas a puxar para o "grand-guignol" de fancaria mas ainda assim pouco exuberantes, contando com uma presença discreta de Willis em registo de "underacting", com relações entre as personagens sem grande "pathos" ou idiossincrasias e com uma estrutura aproximável a um episódio intimista dos "X-Files", "O Sexto Sentido" terá jogado como trunfo - o que provavelmente lhe valeu créditos na bilheteira - em dois factores-extra que, se não resgatam o filme à sua menoridade, atribuem-lhe características singulares. A saber: a perturbante presença do menino-prodígio Haley Joel Osment, 11 anos de idade, e uma reviravolta final que obriga a olhar retrospectivamente para o filme todo.Quanto à primeira, é de longe o melhor em "O Sexto Sentido". Num filme que aposta tudo na irrupção de uma perturbação metafísica a partir de um ambiente doméstico e familiar - terá sido isto que agradou a Spielberg se nos lembrarmos de "Poltergeist", o muito mais distinto antecessor de "O Sexto Sentido", "Encontros Imediatos do Terceiro Gráu" ou "E.T." - é a indizível concentração de opacidade no rosto de Haley Joel Osment, que surge como o único e exclusivo manancial de perturbação (natural) em "O Sexto Sentido". Não se trata de um estreante, já tinha sido antes escolhido por Robert Zemeckis para representar a personagem de "Forrest Gump" em criança, antes do aparecimento de Tom Hanks nesse filme. É quase irónico pensarmos que a imagem de marca anterior - um iluminado retardado, no fundo um adulto-criança - se tenha invertido e reformulado em criança-adulto: prodigioso de contenção e intencionalidade, Haley Joel Osment fixa os adultos de modo obstinado e esconde na impassividade facial quaisquer pistas para decifrar. É estranhamente parecido com Edward Norton, existe nele uma mescla de (inevitável) inocência e emotividade reprimida (na cena catártica com a mãe evita a banalidade ao introduzir esse acréscimo pessoal de "verdade"), e ao mesmo tempo há qualquer coisa de maligno na sua aparente inteligência, lembrando também o aparecimento de um outro actor paradigmático nos anos 90, Kevin Spacey.A outra singularidade de "O Sexto Sentido" é bem mais questionável mas também incontornável na lógica quase frígida do filme. É o "twist" final, um mecanismo dramatúrgico que consiste em trocar as voltas ao espectador com um golpe-surpresa de argumento. Por razões óbvias, não caberá neste texto a revelação da natureza dessa reviravolta, mas podemos adiantar que ela é tão radical que, subitamente, divide o filme em dois. O "twist" tem-se tornado um mecanismo habitual nalguma produção americana industrial - veja-se o caso exemplar de David Fincher, com "Seven", "O Jogo" ou "Clube de Combate", ou de "Os Suspeitos do Costume" - e é sempre difícil distinguir a linha divisória entre a manobra de embuste e o choque natural do efeito-surpresa. Digamos que em "O Sexto Sentido" não existe propriamente uma tentativa de enganar o espectador (num certo sentido, todas as pistas estão bem visíveis), nem que a surpresa seja tamanha que ponha o filme a depender só dela (até porque, no essencial, a linha condutora do filme não se altera depois do "twist"). Apenas fica a sensação que o impecável calculismo de M. Night Shyamalan (também argumentista) fica encerrado em si mesmo, um pouco à maneira do menino-prodígio que produz qualquer coisa perfeita mas que não passa para mais ninguém, aprisionado numa espécie de casulo. Ou, para dizer de outra maneira, não isenta de ironia, "O Sexto Sentido" sofre de uma síndrome de rigor "post-mortem".

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