O último voo de Superfly

Curtis Mayfield foi um dos grandes compositores e intérpretes da soul dos anos 60. Mas só na década seguinte, com bandas sonoras para filmes que exploravam o "orgulho negro", é que conquistou o estrelato e o reconhecimento das novas gerações. Há quase dez anos que estava impedido de tocar guitarra, a "irmã gémea" que dormia a seu lado. Morreu anteontem.

Uma das personagens charneira da música soul dos anos 60 e 70, Curtis Mayfield morreu no domingo, aos 57 anos. Estava internado no hospital de North Fulton, em Roswell, na Georgia (EUA) e a causa da sua morte ainda não foi anunciada. No entanto, aquele que foi um dos mais determinantes músicos e compositores do orgulho negro, encontrava-se há nove anos orfão de si mesmo. Foi quando deixou de poder tocar guitarra, o seu instrumento inseparável, tornando-se lendária a história de que dormia sempre com a sua "irmã gémea" na cama. O acidente aconteceu no Verão de 1990. Após uma lenta perda de popularidade, que vinha acontecendo desde a segunda metade dos anos 70, a carreira de Curtis Mayfield exibia finalmente sinais de retoma, à custa de artistas mais novos que recuperavam a sua obra, e de uma tendência revisionista desse período, em que finalmente se prestava o devido reconhecimento aos grandes compositores de bandas sonoras dos "blaxpoitation movies", os filmes que exploravam o "orgulho negro".Tinha sido convidado para dar um concerto ao ar livre em Brooklyn. O tempo ameaçava chuva, Curtis subiu ao palco do parque Wingate e uma súbita rajada de vento fez soltar um projector, que lhe caiu mesmo em cima, partindo-lhe três vértebras e paralizando-o para sempre do pescoço para baixo. Desde então, Mayfield, um admirador de Muddy Waters e de Andres Segovia, que praticava na sua guitarra desde os dez anos, nunca mais pode tocar: "A guitarra significou sempre mais do que aquilo que pude expressar. Eu e o meu machado [guitarra] dormíamos juntos. Acordava a meio da noite para escrever canções e ela, [a guitarra], era o meu outro eu. A inspiração tanto vinha de mim como dela. A guitarra era a minha irmã gémea". "A vida nunca mais será a mesma", disse, quando era já um tetraplégico. "Mas também nunca é aquilo que esperamos". Nascido em Chicago, a 3 de Junho de 1942, Curtis Mayfield começou por actuar no coro de espirituais da igreja da sua avó, a Travelling Soul Spiritualistic Church, e aos 15 anos formou com Jerry Butler os Roots, depois rebaptizados Impressions. "For your precious love" foi o primeiro êxito da sua carreira, a que se seguiram temas como "Gypsy woman", "It's all right" e "People get ready", canções que moldaram o "som de Chicago", assim denominado em oposição ao som de Detroit da Motown, de Berry Gordy. Ao contrário da maioria dos artistas de soul da época, Curtis sempre teve absoluto domínio da sua carreira, compondo, interpretando e editando a sua música, através da Curtom, a pequena companhia discográfica que fundou com Eddie Thomas. Muito antes de Stevie Wonder e Marvin Gaye convencerem o patrão da Motown a gravarem as suas próprias canções politizadas, ou de James Brown gritar "Say it loud, I'm black and I'm proud", já Curtis implementava letras eivadas de orgulho negro e defesa dos direitos humanos, nomeadamente com "Keep on Pushing" e "We're a winner". Em "This is my country" ou "Choice of colours" a sua consciência política cimentava-se sem nunca perder os ensinamentos espirituais do gospel e a vertigem rítmica da soul implementada por James Brown. A propósito desse período mágico em que a cultura negra se impôs ao mundo em geral, e à segregada sociedade americana em particular, Curtis confessou: "Falar dos anos 60 faz-me quase sempre chorar. Aquilo que fizemos. Aquilo que todos fizemos. Mudámos o mundo". No entanto, o seu grande contributo estava por surgir. Foi quando iniciou uma carreira a solo e lançou temas tão inovadores como "Move on up" (do Lp "Curtis", de 1970), com a sua voz de falseto em contraponto a arranjos orquestrais fulminantes, repletos de percussão, metais e a sua técnica brilhante de guitarra. "Roots", "Curtis Live" (71) e "Back To the World" (73) cimentaram uma nova ordem de composição e produção musical, que pouco depois determinou o disco-sound. Foi no entanto com a banda sonora para o "blaxpoitation movie", "Superfly", (72) que Curtis Mayfield se tornou famoso, vendendo mais de quatro milhões de cópias e sendo nomeado para quatro "Grammy". Juntamente com Isaac Hayes, Mayfield impôs um som que veio a tornar-se mais popular que os próprios filmes, inspirando já na década de 90 uma série de músicos que grava discos como se estivesse a recriar atmosferas e uma dinâmica cinematográficas. De resto, para além das versões que se têm feito, a obra de Curtis é uma das mais sampladas, o que lhe permitiu auferir dos seus direitos num período em que estava impossibilitado de trabalhar. Desde o início da sua carreira que salvaguardou os seus interesses: "Tive uma série de longas batalhas com as editoras. Ninguém conseguia entender porque razão é que queria ficar com os direitos de 'publishing' da minha música, como se não fosse o meu direito".Depois de colaborar com Gladys Knight, Aretha Franklin e o grupo vocal Staple Singers, na era do "disco", e de participar como actor e músico no melodrama "Short Eyes", a carreira de Curtis foi perdendo impacto, causando a bancarrota da sua editora e obrigando-o em 83 a uma reunião com o seu velho grupo, os Impressions. Colaborações com Ice-T, e a restante geração de hip-hop que lhe prestou culto, foram interrompidas com o acidente que o paralisou.Em 94 um grupo de estrelas, como Bruce Springsteen, Eric Clapton, Lenny Kravitz, B.B. King, Branford Marsalis e Whitney Houston homenageou-o no disco benemérito "All Men are Brothers". O reconhecimento institucional chegou também com duas indigitações para o Rock'n'Roll Hall of Fame, pela sua carreira a solo e com os Impressions, assim como dois Grammy pelo conjunto da sua obra.Em 97, com a ajuda de um trio de produtores e diversos colaboradores, Curtis Mayfield lançou um último e bem recebido disco, "New World Order", mas foi atacado pela diabetes, teve que lhe ser amputada uma perna, e a sua já de si precária condição física deteriorou-se ainda mais. "Aquilo que sentimos, aquilo que tentamos fazer, aquilo que observamos, aquilo que nos magoa, aquilo que nos faz rir - tudo isso sempre foram canções para mim", disse numa das suas últimas entrevistas. Talvez um dos seus dez filhos e sete netos continue a ampliar o sentido da sua obra.

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