Um americano convertido ao barroco

A 4º Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo acolhe a primeira apresentação pública do espólio legado pelo historiador de arte norte-americano Robert Smith à Fundação Gulbenkian. A versão montada em São Paulo é menor do que a que estará em Lisboa entre Abril e Julho de 2000. Mas lança um olhar sobre a vida de um homem que desembarcou em Lisboa antes da II Guerra e nunca mais parou de estudar o barroco colonial.

Robert Chester Smith nascido em Cranfort (New Jersey) em 1912, no seio de uma abastada família norte-americana, tornou-se a partir da década de 40 um dos maiores especialistas internacionais em arte portuguesa. A exposição "Robert C. Smith 1912-1975 - a investigação na História de Arte" montada a partir do espólio deixado pelo historiador à Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), e inaugurada em Novembro na 4º Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo, abre perspectivas sobre a importância do seu trabalho. Principalmente aquele que foi dedicado à arte colonial. No entanto, deixa em aberto interrogações sobre as verdadeiras motivações que terão conduzido Smith a interessar-se por um país periférico como Portugal. A sua vida aventureira parece envolvida em tramas que poderiam encaixar num romance policial. Afinal, quem era realmente Robert Smith? "Viveu num momento em que ser bem sucedido nos Estados Unidos representava ter dinheiro e sucesso na profissão", explica o investigador brasileiro Dalton Sala, comissário da exposição. Smith, formado pela Universidade de Harvard, chegou a Portugal em 1934 no trilho do arquitecto italiano Luigi Vanvitelli (1700-1773), a quem dedicou a sua tese de mestrado. Vanvitelli foi o autor da capela de São João Baptista integrada na igreja jesuítica de S. Roque em Lisboa. A obra, a última encomenda importante de D. João V, que morreu antes mesmo da sua conclusão, é uma obra-prima do barroco classicista. No entanto, seriam as pretensas particularidades do barroco português que acabariam por atrair a atenção de Smith para o doutoramento publicado em 1936. Os seus objectos seguintes de estudo seriam o alemão Johann Friedrich Ludwing - ou Ludovice, em Portugal desde 1701 - e o monumento que o imortalizou: o palácio-convento de Mafra, peça-chave da arquitectura do período joanino. Depois disso, nada pareceu escapar ao olhar de Smith, desde o barroco nortenho representado pelo italiano Nicolau Nasoni, que chegou ao Porto nos anos 20 de setecentos, ou o bracarense André Ribeiro Soares da Silva (1720-1769); passando pelo território brasileiro, o barroco de Minas Gerais, de Salvador da Bahia ou do Recife."É que Smith nunca considerou a arte brasileira dissociada da arte portuguesa".Este ponto torna-se uma das matérias importantes da historiografia de Smith, como pretende Dalton Sala: "Os historiadores brasileiros do período do presidente Getúlio Vargas e contemporâneos de Smith procuraram encontrar um cunho nacional na expressão artística do barroco brasileiro. Houve a tentação de construir uma identidade nacional utilizando essa ideia de um barroco diferenciado, mágico e criativo, e que se mantém ainda hoje". Smith resistiu, atitude que em muito valoriza o seu contributo actual. Além disso, desbravou um novo território. "Quando Smith trabalhou, os arquivos eram virgens, tudo o que se publicasse era original." Todavia, desde sua a morte em 1975, o olhar da história também se transformou. "Está de certa forma ultrapassado pelo uso cego da documentação, por a utilizar de uma forma não crítica."No decorrer do seu contacto com Portugal e Brasil, a personalidade de Smith também se alterou, como se o historiador captasse a mentalidade desse povo que acabaria por admirar, como provam os seus textos, alguns redigidos directamente em português, língua que dizia ter aprendido durante a sua passagem pela Universidade de Coimbra. Outros dados corroboram essa mudança. "Em 1939, um pouco antes da Exposição do Mundo Português em que participou como delegado dos Estados Unidos, ele converte-se ao catolicismo. Isso é uma coisa interessantíssima. E aí recebe a Ordem de Cristo. Dizem que pesou muito a influência de um amigo que Smith teve em Washington, o português Manuel da Silveira Cardoso. Talvez não na conversão, mas na transformação da sua atitude. Smith inicia o seu olhar com uma postura branca protestante, saxónica, sobre o católico latino, e no final você percebe que ele muda".Em 1993, Dalton Sala, a convite da FCG, começou a organizar o arquivo de Smith, mesmo antes de se decidir que este poderia ser apresentado ao público, numa mostra que recordasse o seu papel fundamental na divulgação da arte colonial portuguesa. Explorou-se a possibilidade de evocar a metodologia de trabalho do historiador de arte introduzindo-se na exposição alguns dos seus suportes materiais, como as anotações rápidas, a iconografia do período estudado (desenhos de fortificações, cidades, edifícios civis e religiosos destinados a Portugal, ao Brasil ou a outras partes do império colonial), a correspondência ou os registos fotográficos. Neste sentido, o acervo de Smith é bastante completo, como esclarece Dalton Sala: "O legado que a fundação herdou é importantíssimo. Primeiro, há a correspondência de trabalho - Smith correspondia-se com intelectuais fundamentais desse período, como John Bury (historiador inglês de arte que também se ocupou do Brasil). Depois, deixou 12 mil fotografias".Essas imagens revelam hoje um património que no final dos anos 30 estava ainda intocado. "Smith veio pela primeira vez ao Brasil em 1937 e viajou pelo país todo: desembarcou no Rio de Janeiro, veio a São Paulo, foi a Minas Gerais e depois fez toda a costa do Nordeste, da Bahia até S. Luís do Maranhão. Nessa viagem bateu cerca de 1500 fotografias de arte brasileira. As imagens foram recolhidas antes do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) começar a trabalhar." É assim possível comparar o estado dos monumentos antes e depois da acção do IPHAN, como igrejas que de repente ganharam torres ou frontões barrocos que nunca tiveram antes. O mesmo aconteceu em Portugal, com a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, durante o tempo de Salazar. "Isso é uma das coisas que tivemos o cuidado de mostrar na exposição", comparando o estado actual dos edifícios - em fotografias a cores magistralmente registradas por Luís Pavão - com as imagens a preto e branco que Smith foi acumulando ao longo de quatro decénios.

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