Bem na Bica do Sapato

Foi o acontecimento do ano, no sector, a abertura da Bica do Sapato. Joaquim Figueiredo continua em grande forma.

Da nona arte, a gastronomia, como lhe chamou Albino Forjaz de Sampaio, e das suas diversas manifestações, é do que se trata aqui. Podem ser livros que nos comovem - por serem uma pública declaração de amor à sua terra, como é o caso deste "Coruche à Mesa e Outros Manjares", de José Labaredas, editado pela Assírio & Alvim, no qual também se destaca um exercício de alta erudição que é o nutrido texto "Mestre Gil em Coruche e à mesa", sobre as referências gastronómicas na obra do fundador do nosso teatro - ou que nos exaltam os sentidos, como é o caso do monumental "Cozinha Transmontana", de Alfredo Saramago, com a colaboração de António Monteiro, e fotografia de Inês Gonçalves, igualmente da Assírio & Alvim. Ambos de se ler e chorar por mais. Mas 1999 não podia terminar sem que a este espaço se chamasse o Bica do Sapato, o acontecimento mais importante no sector restauritivo pátrio no ano que agora acaba. Localizado, do lado do Tejo, em frente à lisboeta Estação de Santa Apolónia, foi congeminado por um trio que tem prestígio merecido nestas artes: Manuel Reis (Frágil) e os senhores do Pap'Açorda (que continua em grande no Bairro Alto), Fernando Fernandes e José Miranda. O Bica do Sapato, que é um daqueles casos que antes de o ser já o era, quer dizer famoso e requestado, convidou para capitanear as fornalhas o mais talentoso dos cozinheiros portugueses da nova geração: Joaquim Figueiredo. O restaurante, de 120 lugares, confortável, luminoso, de decoração original e de um bom gosto sem mácula, abriu em Junho e houve muita gente que lhe torceu o nariz. Mas continuaram a ir lá: obrigação imposta pela moda. Por mim, só lá fui em finais de Novembro, princípios de Dezembro. Com as equipas de sala e cozinha já rodadas, a mesa do Bica do Sapato é agora um lugar recomendável sem reservas. Destaco, na ementa, algumas criações de Joaquim Figueiredo inspiradas nas cozinhas regionais portuguesas, designadamente as "lulas salteadas com ervilhas, mexilhões, tomate confitado e tomilho-limão" (2500$00), o excelente "lombo de bacalhau com puré de feijão e lulas estaladiças com limão" (2600$00), o "franguinho assado com migas de pão, chouriço, alhos e ervas aromáticas" (1900$00), o "lombo de porco preto com guisado de lentilhas e cacholeira alentejana" (2300$00) ou uma surpreendente e saborosíssima "pá de cabrito com crosta de azeitonas, pão, ervas aromáticas e batatas da padeira" (2900$00). Embora educado em França, Joaquim Figueiredo cultiva as suas raízes beirãs.Da ementa não se devem perder também a "sopa folhada com mexilhões de 'bouchots' e cogumelos" (1200$00), embora se deva vigiar a predominância no sabor destes últimos, os delicados "raviolis de caranguejo com molho de gaspacho e pequenos legumes" (1300$00), os esquisitos "carpaccio de atum" (1800$00) e o "salmão marinado com infusão de azeite e limão, caviar de beringelas e especiarias" (1200$00), as fresquíssimas "vieiras frescas com espinafres novos e molho de laranjas sanguíneas" (2750$00), só os escalopes e os corais do bivalve de sabor espevitado pelo sumo das toranjas, os "polvinhos grelhados com alcachofra, rucola e vinagre balsâmico" (1700$00), são mesmo minúsculos e resultam numa curiosidade culinária graciosa, o "empadão de sapateira com salada da época e ervas aromáticas" (3500$00), uma originalidade que resulta muito harmoniosa, um magnífico "lombo de robalo", fresquíssimo e no ponto perfeito da sua cozedura a vapor.Para sobremesa, além de queijos, que não se experimentaram, há doces e gelados. Interessantes o brioche recheado (950$00) e o souflé de chocolate (800$00) e muito bom o "mil folhas com geleia de framboesa e creme de baunilha" (1100$00).A carta de vinhos, sem arrasar, é equilibrada nos seus cinco champanhes, quatro espumantes, cinco verdes brancos, dois rosés, 30 maduros brancos e 39 maduros tintos. E os preços - parabéns, meus senhores - são de grande sensatez. Esta é, aliás, uma observação que também vale para a conta final. Serviço, capitaneado, à vez, por Fernando Fernandes e José Miranda, capaz e gentil. Está-se bem na Bica do Sapato. Mesmo muito bem.

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