Pintar a certidão de nascimento do Brasil

No Palácio de Belém, em Lisboa, estão 11 olhares diferentes sobre o conteúdo da carta que Pêro Vaz de Caminha escreveu ao rei D. Manuel sobre a descoberta do Brasil. Depois, os quadros vão para o Brasil, para assim se mostrar o Portugal de hoje.

São onze quadros, de onze pintores portugueses, com onze olhares diferentes sobre a carta que Pêro Vaz de Caminha, embarcado na expedição de Pedro Álvares Cabral, escreveu ao rei D. Manuel sobre o descobrimento do Brasil. A carta foi entregue a 1 de Maio de 1500, um dia antes da frota partir para a Índia, local onde viria a morrer essa figura enigmática, Pêro Vaz de Caminha, sobre a qual se sabe pouco. A exposição, intitulada "Leituras da Carta de Pêro Vaz de Caminha", é uma iniciativa da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP). Integrada nas comemorações do descobrimento do Brasil, à exposição de uma página do original da carta - as restantes estão a ser restauradas na Torre do Tombo - juntam-se os quadros de 11 pintores [ver caixa]. "Sendo uma peça emblemática, a carta deve ser a peça central de uma exposição, acompanhada de várias leituras pictóricas. Por outro lado, o que interessa é dar a conhecer o Portugal de hoje", explicou José Romero Magalhães, comissário-geral da CNCDP. É que a exposição passará por várias cidades do Brasil, entre Abril e Outubro de 2000, e os quadros, comprados, cada um, por 1800 contos, vão ser oferecidos pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, ao Brasil, onde ficarão sob custódia do futuro Museu Nacional de Brasília. É a segunda vez que a carta - "a certidão de nascimento do Brasil", comenta o pintor Fernando Lemos - vai viajar até ao Brasil. A primeira foi em 1954 na Bienal de S. Paulo, numa exposição comissariada pelo historiador Jaime Cortesão: "Fui um dos decoradores e coloquei a carta na vitrina", conta Fernando Lemos, que vive em S. Paulo desde 1953. Com sotaque brasileiro, acrescenta: "Jaime Cortesão foi a Portugal, pressionado pelo governo brasileiro. Estava exilado e tinha medo de ter problemas. Depois, até pessoas da PIDE vieram para cá, tomar conta da carta. Queriam ficar dormindo junto dela. Foi preciso o Jaime Cortesão interferir para expulsar essa gente. Houve uma coisa de política nisso." "Ha!-Ha?" é o título do quadro que Fernando Lemos pintou: "Tendo conhecimento do que é hoje o Brasil, evitei fazer referências à paisagem, a essa coisa de palmeiras. No tempo de Pêro Vaz de Caminha ainda não existia uma imagem do Brasil, seria patético dar essa imagem. O meu quadro tem dois búzios, onde a gente ouve o mar, símbolos da comunicação: a emissão, da carta, e a audição, de quem lê." A escolha dos pintores, mediada pelo comissário científico José-Augusto França, foi feita pela secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, numa encomenda da CNCDP. José-Augusto França explicou que o critério na selecção dos pintores contemporâneos (de Júlio Resende, 82 anos, a Ana Vidigal, de 39 anos) foi "a qualidade", tendo os artistas "liberdade absoluta" de criação. A Ana Vidigal agradou-lhe mais a ideia de "achamento", sinónimo no Brasil da palavra "descobrimento". Pintou um díptico onde a parte central é compacta, com cores garridas: "Há um lado mais colorido do que outro. Um mais certinho, outro onde os traços escorrem tinta." Foi a reacção de quem chegou que João Vieira retratou em "Torre de Babel", construída como as Torres de Babel da pintura renascentista, "onde cada sector do quadro tem uma cor diferente e em que estão inscritas palavras retiradas da carta", como num puzzle. O pintor cita a teoria sobre a origem dos índios americanos na Atlântida, que diz que as tribos nativos não se entendiam - à imagem de Babel -, apesar de serem da mesma raça: "Há uma tentativa, por parte das tribos que falavam línguas diferentes, de construção do Brasil. Na tela as palavras querem também mostrar o momento em que "os descobridores ficaram maravilhados com o lado misterioso e sombrio de algo novo, ao mesmo tempo que andavam à procura do que era semelhante" para descreverem essa realidade. O que mais impressionou Graça Morais, que pintou "Carta de Pêro Vaz de Caminha", foi a descrição do lado fantástico das pessoas, dos animais, mas sobretudo a troca de ofertas entre portugueses e nativos. Daí a presença de figuras "que estão ligadas às nossas ofertas", como o rosário, a cabra, as contas, a galinha mas também figuras da terra encontrada, como os papagaios. "Fugi o mais que pude à ilustração, à descrição das cores. Por isso há os castanhos e os pretos, em vez dos verdes descritos". No Palácio de Belém até 6 de Janeiro, a exposição irá para a Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa de 13 de Janeiro a 6 de Fevereiro, para o Museu dos Transportes e Comunicações de 15 de Fevereiro a 15 de Março e, depois, para o Brasil.

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