O que somos um deus há-de ampliar

"Bellis Azorica" é um dos mais belos livros de poesia publicados este ano. Para regressar aos Açores de João Miguel Fernandes Jorge, temos este "difícil / território do sublime, onde o passado / é quase sempre a arte d'hoje" e "o que somos / um deus há-de ampliá-lo."

Gostava de começar assim: na primeira pessoa. Porque não há outra forma justa de dizer que este livro anda comigo há sete meses, ou seja, desde que foi publicado. A um livro que anda connosco tanto tempo podem acontecer coisas como regressar à origem, sujar-se de terra, cair ao mar de uma ilha, passar de mão em mão. Tudo isto sucedeu ao exemplar de "Bellis Azorica" que agora auxilia este texto. Tem as suas marcas. Teve o seu silêncio.E só vale a pena começar assim na esperança de que, dentro do silêncio que cresceu em torno da publicação de "Bellis Azorica", cada um dos seus exemplares ande também por aí, de ilha em ilha, de mão em mão, caindo ao mar, sujando-se de terra. Porque este livro, que reúne 72 poemas de João Miguel Fernandes Jorge nascidos (se não escritos) nas várias ilhas dos Açores, é um dos mais belos livros de poesia portuguesa publicados em 1999. (Ou seja: o ano de "Quatro Caprichos", de António Franco Alexandre, do inesperado "Teoria Geral do Sentimento", de Nuno Júdice, e, sobretudo, da plenitude que representa "Baldios" na - até agora - curta obra de José Tolentino Mendonça.)Talvez Dezembro seja enfim propício a esta falta de humildade que é quebrar o silêncio que nós próprios adensámos, porque sabemos de menos. Ou, única forma justa, na primeira pessoa: sei de menos.É de 1992 o primeiro livro de João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ) totalmente dedicado aos Açores, ou seja, composto por poemas que surgiram do que o poeta viu, ouviu, viveu, pensou no decorrer de viagens (intercaladas entre 1988 e 1991) nas nove ilhas do arquipélago. "Terra Nostra" (ed. Presença) terminava com este poema precisamente intitulado "Final": Tudo estava perdido / e a viagem terminara. / Não havia outra coisa a fazer / senão regressar a casa. / Fechar o livro e esperar pelo / próximo barco. / Partir para a ilha fronteira / com o produto da rapina / versos fragmentos de versos / que foram o rosto."Posto isto, JMFJ publicou três livros de poesia, "O Barco Vazio" e "Não é Certo Este Dizer", na Presença, e "O Lugar do Poço", na Relógio d'Água. Passados sete anos, é por esse "rosto" que foi e ali terminava, em "Terra Nostra", que JMFJ regressa aos Açores, numa espécie de desejo impossível (impossível porque aspira a ser, fora da poesia, da rapina) formulado à entrada de "Bellis Azorica: "Açoreanos me chamassem açoreano / e a esse tão antigo rosto português / me trouxessem". No "Mercado da Ribeira Grande", em "Dia de toiros e procissão em Santa Cruz da Graciosa", num "Quarto de Hotel em Ponta Delgada", na "Frontaria da Igreja Matriz de Santa Cruz das Flores, "Entre Fajãs", no museu de Angra, no Porto da Horta ou no Peter Café Sport, esse rosto desenhado no poema (o dos "portugueses, os de cabelo castanho", num verso célebre de JMFJ) emana sempre um passado. O rosto é o que existe no instante de uma história e o poeta é o que convoca a história para o poder ver como ele é nesse instante, em todo o seu mistério, dentro do seu destino.A relação intrínseca que a poesia de JMFJ mantém com a história (aprofundada em livros que vão desde "Crónica", 1977, a "A Jornada de Cristóvão de Távora", cuja última parte foi publicada em 1990) é apenas uma das formas de expandir o instante no poema: "difícil / território do sublime, onde o passado / é quase sempre a arte d'hoje" ("Terra Nostra").Diante da circunstância mais precisa e irrepetível ("28 de Agosto de 1995, 5ª feira", "9 de Agosto de 1997, Sábado", "Sobre o calor desse Domingo de Agosto", "Tão quieto como nos céus da ilha o voo do milhafre") o poeta é o que amplia "o que somos" como "um deus há-de ampliá-lo". Quando JMFJ anota o que vê com os olhos ("míopes, graves / e frios", como ele, em "O Barco Vazio", escolheu dizer que eram os seus), quando descreve a sombra do metrossídero, a flor da beladona, a escultura no museu, o cabelo da apresentadora de televisão, o balcão do café, a merda na retrete, os marinheiros na rua do porto, o rapaz que vende peixes, o antigo empregado de café que lhe servia as bicas todas as manhãs, ele é ainda o que escreveu um dia "nem beleza nem fim / nem número ordenador como fantasma. // Todas as memórias partilhámos / a ruína compreende tudo. Compreender quer dizer abraçar" ("Vinte e Nove Poemas").O poeta, este poeta, fala-nos a partir desse lugar de deserto e solidão, algures entre o que está a ser e a memória de todo o tempo em todos os lugares que só Deus tem, entre o que se expõe à erosão e o que é imortal, entre o fósforo aceso e a luz do dia. Diz cada nome (isso que pode ser "uma marca deixada por um / corpo perdido na sucessão da / noite"), nomes de pessoas vivas e mortas, lugares, plantas, pedras, e inclina-os para alguma imortalidade. Traz o abismo dos mitos ao dia plano, como um vulto que se põe na sombra a ver a luz das coisas. O poema é essa sombra. E o seu campo é tão vasto quanto o tempo que o poeta transporta consigo - de vida, de memórias, de paixões.Foi Joaquim Manuel Magalhães que falou em "inscrições de paixão" para clarificar a presença habitual de múltiplas citações culturais na poesia de JMFJ, nomeadamente as que provêm das artes plásticas. Em "Bellis Azorica", encontramos sobretudo referências a música, a momentos em que a audição de determinadas peças (como em "Fuga em dó maior") se constituiu parte do poema; mas também à literatura: a Kavafis - belíssima a passagem em que JMFJ, num diálogo com o próprio acto poético, escreve: "(Como gostava que estas palavras se parecessem com o diário da viagem de Kavafis à Grécia. Faltam as temperaturas que indicavam todos os dias.)" -, a Pound, ou (com Sena, Sophia, Cesariny, Eugénio, uma das presenças da literatura portuguesa bem-vindas à poesia de JMFJ) a Agustina Bessa-Luís.Esta última surge num dos poemas mais nostálgicos do livro, "Tão quieto como nos céus da ilha o voo do milhafre", de aqui se transcreve o primeiro andamento: "Desapareceu o banco de pedra ao fim do terreno / nas traseiras da casa, mas no parque a árvore continua a / rasar a água do lago; e os patos desenham os mesmos círculos, / serão outros os patos de pescoço verde, tal como a ilha / já não são exactamente as mesmas pessoas tecendo círculos ao / redor; a ilusão da quietude permanece. Tenho saudades do / café das Velas, da rua larga de casas em S. Roque do Pico, da / rua da Praia da Graciosa voltada para o ilhéu. Nas Furnas / esqueci-me de comprar bolo lêvedo. Dois alemães nadam no / espelho de água queimada da piscina do Terra Nostra; no / palacete situou Agustina alguns dos personagens do 'Concerto / dos Flamengos'."Quem conhece os Açores, reconhece a ilha (São Miguel) de onde o poeta está a ver as outras ilhas do arquipélago, as que nunca voltarão a ser como foram num instante preciso, as que continuam connosco sendo outras quando voltamos, as que nos fazem dizer, como o poeta (no último poema do livro, quando enfim tem "muitos fragmentos para reunir"): "É / necessário que me proteja da sua beleza".E, terminando como comecei, na primeira pessoa, peço licença a JMFJ para me apropriar de outra passagem de modo a deixar aqui inscrita uma paixão, uma paixão pela ilha das Flores, do lado da costa que é a mais ocidental da Europa, onde certamente algum Deus trabalha para nos ampliar: "A Fajã Grande. As ribeiras despenham-se pela / encosta. Formam com a terra da Fajã e com o mar / um corpo circular. Famílias seguem o movimento / natural, geram-se, destroem-se: a variação, o / instante, a mobilidade: sobre o caminho de / bruma e quase treva de verdes, no outro século / e ainda neste, um rápido rapaz é o mensageiro." Foi aqui, a caminho da Ponta da Fajã, que o meu livro caiu ao mar e se salvou.

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