Mamet no jogo do cinema

Dramaturgo e jogador de "poker". Às vezes, quando entra no jogo do cinema, também argumentista e cineasta. Foi a propósito de "O Prisioneiro Espanhol", que realizou, que David Mamet falou com o PÚBLICO. E aí também se revelou compositor de canções.

Entrevistar estrelas de cinema é tarefa fácil, se comparada com a intensidade que envolve os encontros com cineastas como Oliver Stone, Peter Greenaway e até Mike Leigh, casos em que é preciso estar sempre um passo à frente. Por isso, a perspectiva de um encontro com David Mamet, um dos mais astutos artesãos da palavra, é mais assustadora do que a realidade.Como escritor, Mamet passa muito tempo sozinho; por isso muito facilmente fala do seu trabalho com quem o quiser ouvir. É também muito generoso, agradece sempre o interesse que se demonstra. No entanto, é muito cuidadoso com o que diz, citando-se constantemente a si próprio e às anedotas de muitas das personagens das suas peças e argumentos cinematográficos.O estilo de Mamet é reconhecível. Ultimamente, o escritor-realizador de 50 anos tem sido comparado a Quentin Tarantino, porque ambos produzem para os ecrãs uma espécie única e não naturalista de verbalização. Todavia, Mamet está mais ligado a autores como Harold Pinter, que dirigiu uma peça de Mamet, "Oleanna", em Londres. "Conheci Harold há 20 anos, quando comecei a escrever as minhas peças em Inglaterra. É um homem extraordinariamente generoso e grácil e apoiou sempre o meu trabalho. Em larga medida foi ele o responsável pela exibição do meu trabalho em Londres."Um verdadeiro "workaholic", Mamet escreveu o argumento de algumas produções de Hollywood, como "The Edge" ou "Manobras na Casa Branca" e foi o co-argumentista de "Ronin", sob o pseudónimo de Richard Weisz. Mas este encontro com o PÚBLICO, no Festival de Cinema de Deauville, foi para falar de "O Prisioneiro Espanhol", um pequeno e intrigante filme que evoca o seu filme mais famoso, "House of Games" (1987)."Interesso-me pelo 'film noir' desde que fiz 'House of Games' e desde então quis escrever e dirigir outro 'thriller'", dispara Mamet como se fosse um "gangster" de Chicago (natural de Chicago, Mamet escreveu "Os Intocáveis"). Austero, cabelo curto negro que começa a ficar grisalho, veste um fato preto, camisa negra apertada até ao colarinho, usa óculos com aros de metal, e, enquanto fala, enruga as suas fartas sobrancelhas e a testa."Tive a ideia para 'O Prisioneiro Espanhol' quando estava de férias com a minha mulher nas Caraíbas, onde vimos um enorme barco em terra. Um helicóptero estava sobre ele e perguntei-me que tipo de pessoa poderia viver num barco assim, e, se essa pessoa alguma vez saísse do barco, se estaríamos disponíveis para acreditar em qualquer coisa que ela dissesse. É a história da atracção que despertam os super-ricos e superpoderosos, e como os tornamos figuras míticas.""O Prisioneiro Espanhol" passa-se numa ilha tropical onde decorre um encontro de negócios. Um inocente Campbell Scott inventou "The Process", uma fórmula que vale milhões, e é uma presa fácil para o "tubarão" interpretado por Steve Martin - o estrangeiro misterioso que chega à ilha de hidroavião. A mulher de Mamet, Rebecca Pidgeon, uma actriz da Broadway, colaborou com o marido na história. No filme ela interpreta uma secretária que se atira constantemente ao singelo Scott. No fim de contas, não é um "film noir"."O filme negro é ironia e violência, enquanto este filme vem mais na tradição dos 'thrillers' românticos que fizeram Hitchcock e Stanley Donen", diz Mamet. "É um filme sobre o logro; é um 'puzzle'. Interessa-me a fraude, a mentira e o engano, porque isso é que é a substância do drama: o desaparecimento da verdade, como um truque de magia. Convida-nos a usar o raciocínio para pensar mais longe, para tentar saber quem é o mau, para tentar saber o que vai acontecer ao herói."Mamet, um ávido jogador de póquer, deplora o desaparecimento da figura do vigarista na sociedade. Está a escrever um filme sobre o jogo para o seu companheiro de póquer Al Pacino e escreveu e dirigiu um espectáculo "off Broadway" para o seu amigo Ricky Jay, que é considerado o maior manipulador de cartas do mundo e que aparece em "O Prisioneiro Espanhol". No póquer, diz Mamet, "é preciso assumir que toda a gente está a fazer batota ou a mentir, porque é isso que se passa". "Há um óptimo provérbio na América: 'Confia em toda a gente, mas conta as cartas.'"Mamet nasceu em Chicago de pais descendentes de judeus russos: o pai era advogado especializado em direito de trabalho, a mãe professora. Foi para a universidade em Vermont, regressou a Chicago aos 24 anos e fundou a St Nicholas Theatre Company, de que continua a ser dramaturgo residente. Iniciou uma carreira como actor e encenador, mas começou a escrever peças devido à pouca oferta de material de qualidade. Atrai-o o mundo do proletariado de Chicago, e o seu vernáculo distinto foi aprendido nos tempos de juventude rebelde numa série de empregos, desde agente imobiliário, condutor de camiões, vendedores de carpetes, limpador de vidros e marinheiro.A mistura de "cultura" e "experiência da vida" em Mamet marcam a sua escrita, e isso era notável em "Glengarry Glen Ross", a sua peça vencedora de um prémio Pulitzer, onde viscosos agentes imobiliários venderiam a própria avó, se fosse preciso, para fazerem dinheiro. Tinha ganho algum reconhecimento dez anos antes em peças como "Sexual Perversity in Chicago" (que no cinema teve o título "About Last Night") e "American Buffalo", com Al Pacino, que foi considerada a melhor peça pelos críticos de Nova Iorque e que deu origem a um decepcionante filme com Dustin Hoffman. Mamet foi nomeado para o Óscar com o seu argumento para "O Veredicto", com Paul Newman, e escreveu "O Carteiro Toca sempre Duas Vezes" para o "remake" de Bob Rafelson, para quem também interpretou um jogador em "Black Widow". Para além disso, as palavras de Mamet escorregam como néctar nas línguas de estrelas como Nicholson, Pacino e Hoffman; trabalhou com uma série de amigos, como William H. Macy e Joe Mantegna, e Lindsay Crouse foi a musa das suas peças até aparecer Rebecca Pidgeon. Muitos dizem que Mamet se tornou mais acessível com o seu casamento com Pidgeon, a quem ele responsabiliza pela criação da personagem principal que dá título a "Oleanna", a sua peça de maior sucesso. Infelizmente ela não pôde fazer o papel no filme que adaptou a peça (e que rapidamente foi esquecido) devido ao nascimento do filho do casal. "O meu trabalho não mudou assim tanto. Rebecca é maravilhosa para se trabalhar e adoro escrever para ela. É como escrever para qualquer outro actor ou actriz estupendos. Não é que eles ofereçam algo de específico; é que os limites não estão à vista. Colaborámos mais neste filme do que em qualquer outro. 'O Prisioneiro Espanhol' tem uma história muito intricada e foi preciso muito trabalho agradável juntos, para que as coisas funcionassem."O mais interessante quando se conversa com Mamet é a sua humildade. E a admiração pelo homem só pode crescer quando se lê sobre as peças, os filmes e os livros em que ele está a trabalhar. Também publica ensaios, escreve peças para crianças e ensina em instituições de prestígio, como a Yale School of Drama e a Universidade de Chicago. "Adoro trabalhar, adoro escrever e adoro dirigir. E, ao fim de 30 anos, ainda me espanta que consiga fazer isso para poder viver. Em qualquer sítio onde esteja, quaisquer que sejam as circunstâncias, não me sinto feliz, se não estiver a escrever. É uma obsessão. Tenho de escrever todos os dias.""Dos filmes que escrevi para outras pessoas, há uns de que gosto mais. É como as cartas [e que outra coisa poderia ser?]. O negócio é este: pagam muito bem e podem tomar algumas ou muitas liberdades. Quando escrevo para mim, quero fazer o meu filme." Mas, quando escreve para outros, afasta-se das rodagens: "A maior parte dos realizadores quer um bom argumento e querem ser eles a realizar o filme. Quanto melhor é o realizador, mais isso acontece.""Para 'Lolita' [de Adrian Lyne] ouvi dizer que tinha sido encomendado um argumento a Harold Pinter; por isso fiquei espantado quando me pediram a mim para o escrever", recorda. "Telefonei a Harold e perguntei o que é que ele pensava. Ele respondeu: 'Escreve-o, faz isso com a minha bênção. Mas eles vão lê-lo e ditá-lo fora.' Foi exactamente o que aconteceu. E era um óptimo argumento."É esse o destino do argumentista - mesmo que se seja o melhor. Todavia, Mamet, olha para tudo com sentido de humor, diz que a melhor coisa que escreveu foi uma piada. E conta uma sobre um urso polar."Um pequeno urso polar chega a casa da escola e pergunta aos pais: 'Sou mesmo um urso polar?' E eles respondem: 'Claro, porquê?" Ele responde: 'Sou vosso filho e sou mesmo um urso polar. Verdade?' 'Sim, és mesmo um urso polar!' "Sou um urso polar, os meus avós eram mesmo urso polares', insiste. E a mãe volta dizer: 'Absolutamente. És um urso polar. Porque é que perguntas?' Ele responde: 'Porque estou a morrer de frio!'"Mamet vive na pacífica cidade de Boston e frequentemente refugia-se na sua quinta em Vermont. Foi lá que escreveu umas canções para a mulher e oferece-se para as cantar ao PÚBLICO, no piano do "hall" do decadente Normandy Hotel. "The word around town is that you smile at somebody else/They say you're out there running around/I don't know, and I don't say it's true/But maybe that's the word around town."

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