"Estivemos no inferno"

Drogas, desintoxicações e recaídas, o círculo vicioso completo, conta o baixista Flea nesta entrevista. Misturado com isso, em palco, o "showbizz" de um jardim zoológico. Na 2ª feira, o Pavilhão Atlântico, em Lisboa, vai abanar com a turbulência do "punk funk" dos Red Hot Chili Peppers. O PÚBLICO viu o concerto na Wembley Arena e antecipa.

Entre "Californication", o último álbum dos Red Hot Chili Peppers (RHCP), e "One Hot Minute", o anterior, passaram quatro anos mas, para além das notícias sobre problemas internos e de drogas dos seus elementos, pouco se especulou sobre o silêncio do grupo durante esse tempo... Ao contrário, por exemplo, dos Guns N'Roses, cuja ausência tem sido objecto de uma avalanche de rumores só comparável à de que Obi-Wan Kenobi é um travesti. E se fomos presenteados com uma circulação de boatos acerca da (in)actividade de Axl Rose, o nome dos RHCP quase só voltou a ser mencionado quando as All Saints fizeram êxito com a sua versão de "Under the bridge".A banda gostaria que acreditássemos que "Californication" é uma variante da teoria de expansão cultural dos anos 50, conhecida como "CocaColanisation", sublinhando que tudo o que os EUA (ou Hollywood) lançam ao mundo é abraçado com entusiasmo, desde o cinema à música. Mas o problema é que só se abraça uma parte; a literatura, o teatro, a ópera, o bailado e a arte são ignorados. A triste realidade é que o único contributo americano para a cultura mundial foi a Coca-Cola, com a ameaça do McDonald's à alimentação saudável em segundo lugar, mas a pouca distância. O resto é... "kitsch"?Onde é que se encaixam os RHCP? Conseguirão produzir rock após esta prolongada sesta, como lhe chamou o vocalista, ou voltaram às suas velhas momices? Os tempos mudaram nestes quatro anos, e parecemos estar na era dos prodígios com um único êxito. O efémero governa, triunfante, e é objecto breve da nossa atenção decrescente, já que nenhum artista consagrado recebe uma promoção tipo "Guerra das Estrelas", reservada à nova constelação de estrelas transitórias. "Não creio que nos encaixemos em nenhum formato ou categoria", opina o baixista Flea. "Limitamo-nos a tocar a música apaixonada, honesta e cheia de emoção de que gostamos. A música pop mudou para pior, e há um grande vazio que clama pelo nosso disco. Estou satisfeito por podermos preenchê-lo, porque parece ir tudo de mal a pior...""Californication" marca um regresso ao som de "Blood Sugar Sex Magik", que encantou milhões em 1991, e tem muito menos a ver com a natureza rígida de "One Hot Minute", de 1995, talvez devido à ausência do guitarrista John Frusciante, que voltou a alinhar em Janeiro de 1998, quando vagou o posto ocupado pelo mestre-guitarrista Dave Navarro, convidado a sair e a concentrar-se no projecto a solo que ocupava a sua atenção. Enquanto três guitarristas (Arik Marshal, Jesse Tobias e Navarro) lutavam para suplantar a sua palheta, Frusciante passava por um mau bocado depois de dois álbuns a solo, "To Clara" (1994) e "Smile From The Streets You Hold" (1997), terem confirmado que não se deve deixar que elementos de bandas de sucesso se aproximassem de um estúdio sozinhos. Viciado em heroína, sobrevivia num quarto de hotel e seguia a sua filosofia de nunca fazer planos e lidar com as proverbiais pontes a atravessar um dia de cada vez. E estava a descobrir que elas eram cada vez menos...Flea, que afinal está longe do louco ágil e nu que se vê em palco, e é articulado, falador e afável, foi o único que se manteve em contacto com o seu velho amigo que deixara os RHCP nas vésperas do "tour" Lollapalooza de 1992."O regresso dele foi um processo simples e natural, agradável. Estamos contentes... A primeira vez que nos juntámos numa sala foi como se ele nunca tivesse estado ausente. Não falámos muito e começámos a trabalhar rapidamente. Frusciante sabe instintivamente para onde a banda vai. Isso faltou durante a sua ausência e a recuperação do método antigo deu mais espontaneidade à música".A marca musical da banda continua a ser o "punk-funk", com uma melodia que entra no ouvido e uma guitarra roqueira - estilo destilado no segundo álbum, "Freaky Styley" (1985), produzido por George Clinton, o guru da Parliament/Funkadelic. Foi um sonho tornado realidade para o quarteto que se desfizera e refizera antes de conseguir perseguir uma carreira a sério. A família de Anthony Kiedis mudou-se para L.A. nos anos 70, e ele juntou-se aos seus colegas da Fairfax High School - Flea (Michael Balzary), nascido em Melbourne, Hillel Slovak, guitarrista, e Jack Irons, baterista - num grupo chamado Anthem School. A sua existência foi curta, porque Kiedis decidiu ir estudar, mas o bichinho do rock já o tinha infectado e não tardou a juntar-se aos outros três.Slovak e Irons, porém, não puderam gravar o álbum de estreia da banda, em 1984, devido a obrigações contratuais com a sua "outra" banda, What is This?. Um ano depois, estavam de volta para assinalar o verdadeiro nascimento dos RHCP. Contudo, em 1988, Slovak morreu com uma "overdose" de heroína, a que se seguiu a deserção de Irons (até há pouco tempo nos Pearl Jam) e a sua substituição por Chad Smith. Dez anos depois, o nova-iorquino Frusciante, que fora o seu quarto guitarrista, tornou-se o oitavo e actual seis cordas."Improvisamos e podemos trabalhar sobre um tema, um estado de espírito, ou energia explosiva" - Flea fala com vivacidade, como que para reflectir o ritmo do álbum - "e é assim que temos boas ideias. É um excelente processo de apanhar coisas no ar, de nos explorarmos como músicos, de estabelecer comunicação com os outros elementos. A nossa música é o resultado de uma química que existe entre nós".Misturar canções com uma carga emocional e contrabalançá-las com cortes agressivos e caóticos funciona para esta banda, e, embora não tenham estagnado, também não estão a progredir a passos largos em termos criativos. "Californication" é uma mera afirmação do vocabulário que a banda já estabeleceu. Mas não se tornou um rock com "design" Versace e é uma mistura "apimentada" dos seus ingredientes habituais.Tentando sempre que a sua música seja o mais possível emocional, valorizam a honestidade e as relações com os fãs e a comunicação social. A menção da palavra leva Flea a afirmar imediatamente: "A minha ambição é viver o resto da minha vida com total honestidade. As mentiras, a falsidade e todos os aspectos da desonestidade só podem resultar numa vida infeliz". Os RHCP nunca esconderam nada e investiram fortemente na discussão aberta e directa das suas experiências, excessos, dependências de droga, desintoxicações e recaídas, o círculo vicioso completo."A honestidade é essencial para nos relacionarmos com as pessoas de uma forma válida. Qualquer pessoa que oiça a nossa música com atenção sabe que sempre fomos honestos connosco próprios e só fazemos música de que gostamos. Diria que é o elemento fundamental da nossa banda, e continuamos a tocar rock, embora a música mude e cresça tal como nós mudamos e crescemos, como pessoas e como banda".Não é de crer que tenham crescido tanto que a nudez, a componente sexual e os espectáculos extravagantes sofram alteração na sua agenda. Kiedis pensa que o sexo não só é uma força motriz da sua arte mas também a força motivadora da vida. O que levou o cantor a uma pena de prisão de 60 dias por ofensas sexuais e exibicionismo, em 1990... Os RHCP assinaram mesmo o contrato com a EMI em pelota, em 83, e posaram para a célebre fotografia "socks on cocks" na travessia para peões de Abbey Road que os Beatles tornaram lendária...As momices em palco resultam do simples facto de serem americanos. Ao contrário dos seus homólogos europeus, não consideram a música uma forma de arte mas um entretenimento; assim, agem em conformidade e praticam a palhaçada, dando o seu máximo, como o "showbiz" de um zoo. Desde os dias do "vaudeville" que os americanos esperam dos artistas que os divirtam e não que os aborreçam. O contributo dos RHCP incluiu Flea pendurado de cabeça para baixo enquanto tocava guitarra, deixando cair a tanga branca (o elástico rebentou) e a acabar o concerto na Wembley Arena em Julho de 1996 completamente nu e com a guitarra bem no ar.A ideia de só usar roupa interior em palco não só é prática mas constitui uma "homenagem", um cumprimento à sua amada banda "funk" Parliament/Funkadelic, onde um dos elementos se passeava de fralda. Por outro lado, podia ser apenas a mania das grandezas induzida pelas drogas. Era de prever que as quantidades (industriais) de drogas consumidas alterassem as relações entre os elementos da banda, bem como a sua química."Sim, todos nós mudámos e passámos por maus bocados. Antes de o John sair, já ele e o Anthony não se davam. Não creio que fosse só a droga, porque fazer parte de uma banda pode ser difícil, por causa das viagens... Tudo isso interfere e começamos a sentir-nos desconfortáveis, a banda torna-se uma tortura. Quando fizemos a digressão do 'Blood Sugar Sex Magik', antes de o John sair, já não nos dávamos bem e não conseguíamos suportar-nos. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida"."Mesmo que não cure, o tempo fecha velhas feridas e amadurece as pessoas, torna-as mais tolerantes (Flea e Kiedis fizeram 37 anos este ano), e elimina maus hábitos. Há mais compreensão, não precisamos de trabalhar a nossa relação. Tem sido tudo muito natural e espero que continue assim. Acho que a coisa mais importante é apoiarmo-nos. Se houver problemas, devemos ser capazes de os discutir, de evitar que dêem origem a algo de negativo".A negatividade ergueu muitas vezes a sua feia cabeça entre os dois membros fundadores da banda, em particular durante os anos de toxicodependência. Kiedis e Flea conhecem-se há 21 anos, desde que o músico e actor principiante australiano se mudou de Nova Iorque para a Costa Leste. (Muito antes de se juntar à malta, Kiedis fez de filho de Stallone no filme "F.I.S.T.", de 1976, enquanto Flea apareceu em "Suburbia", em 1983, e continuou a fazer pequenos papéis, designadamente em "The Big Lebowski", dos irmãos Coen.)"Temos tido altos e baixos, mas continuámos sempre a ser amigos. Ao mesmo tempo, surpreende-me que sejamos amigos há tanto tempo... Nos últimos tempos, as coisas tornaram-se fáceis; ao longo deste ano o Anthony tornou-se uma pessoa mais madura e humilde. Cresceu, e muitas coisas que me faziam ir aos arames já não acontecem. A droga pode ter tido alguma coisa a ver com o estado mental da banda no passado, e tivemos as nossas zangas. Hoje, ele pode rir-se disso, mas na altura estivemos no inferno."Não dá para perceber isso no álbum. Pelo som, parece que os RHCP nunca fizeram "One Hot Minute". Para além do seu título enganadoramente óbvio, "Californication" confirma também que eles são uma banda tipicamente de Los Angeles e que a sua música é impulsionada pela ambição, autoconfiança e fantasia daquela cidade; é um produto de um lugar onde as pessoas são levadas a crer que a quimera é possível. Basta ter a possibilidade de perseguir o sonho americano e tentar transformá-lo em sucesso; esta é a música da cidade que nos ama num dia e nos manda apunhalar pelas costas no outro. Esta banda tem atrás de si uma vida de excessos e riscos, e escolher os pontos de referência deve ser uma longa busca através de carbonizados desfiladeiros mentais. Mas qual foi o momento mais assustador da sua carreira?"Ir num avião que quase se despenhou no Brasil, com os Nirvana, as L7 e os Alice in Chains a bordo! A seguir, tocar num concerto no Japão quando o local foi varrido por um tufão!"Uma confirmação final da turbulência do "funk rock".

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