Janela aberta sobre os bairros

"Sud" é uma viagem à memória do sul americano esclavagista. "Outros Bairros" tece narrativas de identidade nos bairros clandestinos de Lisboa. "Entraste no Jogo, Tens de Jogar" é um vendaval de corpos e música a partir de uma romaria no Minho. E há Norman Mailer, Takeshi Kitano ou Cronenberg. Um percurso pelos X Encontros de Cinema Documental.

A realizadora Chantal Akerman queria ir ao sul americano, aos lugares da escrita de Faulkner, como em 1993 tinha ido ao Leste europeu filmar a implosão ("D'Est"). Mas uma noite em que a televisão americana exibia um "western" - 7 de Junho de 1998 -, um camião conduzido por três brancos ziguezagueou pelas ruas de Jasper, no Texas, arrastando o corpo de um homem negro, James Byrd, depositando o que restava dele, sem cabeça e sem braços, à entrada de um cemitério. Akerman foi ao sul, só que "Sud", o resultado dessa viagem, não pôde ignorar o caso James Byrd. Mesmo não querendo fazer uma reconstituição, teve de incorporar os testemunhos de luto dos familiares, o "gospel" e a catarse na igreja. O mais forte, contudo, deste documentário que se exibe amanhã, às 22h, na Malaposta, na sessão de abertura dos X Encontros Internacionais de Cinema Documental, é o mais indefinível. São os "travellings" laterais pelas ruas de Jasper - Akerman só podia estar ao lado, nunca dentro, desse episódio americano; é o silêncio das árvores, algumas das quais foram inclinando os ramos de maneira diferente porque era nelas que se enforcavam os corpos; é a calma de morte a seguir à catástrofe, e essa não é só a da morte de James Byrd, é toda a memória silenciosa do sul esclavagista que se acumula nos lugares, e que a câmara de Akerman bebe - literalmente, como no longo "travelling" final debruçado sobre a estrada do desmembramento.É ainda um filme sobre a memória - aprisionada nas fotografias, por exemplo - "Outros Bairros", documentário de Kiluanje Liberdade, Vasco Pimentel e Inês Gonçalves, que está no conjunto de títulos com que, domingo, começa o desfile dos 18 filmes da competição nacional destes Encontros."Outros Bairros" constrói-se numa dupla relação entre acção e reflexão. A câmara tanto persegue o dia-a-dia de jovens habitantes de bairros clandestinos da Grande Lisboa (deambulam entre barracas, fazem corridas de motas e vão de carro até à outra margem), como entra nos espaços íntimos para fixar os corpos, enquanto as vozes tecem discursos sobre as formas de viver o amor, as dificuldades de viver num gueto. Paralelamente, mostra como a fotografia, a organização dos espaços domésticos e a música estão presentes na construção das narrativas identitárias, revelando as relações entre a produção de cultura expressiva urbana e a construção das identidades individuais e de grupo. A iniciar uma sucessão de planos dedicados às formas de pensar as relações amorosas - um dos fios da narrativa - aparece um rapaz que mostra pequenas fotografias de raparigas, tipo passe, que vai comentando: são colegas de escola, primas, irmãs. Uma delas, diz, é bonita como uma princesa. Noutra sequência, das mais envolventes, duas raparigas conversam, deitadas na cama, frente a frente, sobre a vida com os rapazes. Falam da infidelidade, dos amores que parecem eternos mas não são, dos rapazes que sofrem mas nunca o mostram, das vidas estragadas das mães solteiras. Numa outra série de planos, também filmados num quarto e relativos à destruição da Pedreira dos Húngaros, as fotografias voltam a aparecer como suporte. Um rapaz mostra as imagens que fixou nas paredes da casa que vai ser forçado a abandonar. Numa delas, a sua preferida, aparece no primeiro plano a abraçar uma rapariga, com o bairro em segundo plano, um amontuado de prédios. Diz que será sempre da Pedreira dos Húngaros, viva lá onde viver. Que tem vontade de chorar e que as fotografias vão estar sempre com ele, para nunca esquecer os amigos, o bairro. "Outros Bairros" perpetua, assim, as emoções de jovens que sofrem com o desaparecimento repentino de um lugar que, embora ainda exista, já corresponde à memória das adolescências que vão perder. Um bairro em demolição é uma janela aberta sobre a intimidade dos seus antigos habitantes. Talvez isso explique a carga emocional dos planos, quase fotográficos, do interior das casas semi-destruídas. Em silêncio ou debaixo do som violento dos martelos, vemos fragmentos de paredes que foram pintadas com cores vivas, e onde o desapego provocado pela partida deixou quadros de figuras religiosas acompanhados por lâmpadas e ursos de peluche. "Outros Bairros" não centra a narrativa no Rap, mas este aparece como um discurso forte que percorre o filme. Percebe-se que quando "rapam" os rapazes vivem momentos de partilha expressiva que dão forma a uma identidade comum. Porque se pensam como sendo negros, emigrantes e perseguidos pela polícia, mas também porque sabem que são percepcionados pelo exterior como iguais. Como marginais. E a contestação dessa imagem parece ser central quando existe um interlocutor exterior, neste caso, os espectadores: "Que gang? Devem estar a ver muitos filmes americanos. Aqui no bairro não há gangs (...) O único gang que há aqui é a polícia".O forte sentimento de pertença é construído no interior da ambivalência de quem vive uma situação de clara exclusão social e territorial. Amam o bairro, porque sabem que são mal amados em qualquer outro lado.Vendaval no microcosmosÉ também no silêncio, como no caso de "Sud", de Chantal Akerman, que desagua outro filme português em competição, "Entraste no Jogo, Tens de Jogar - Assim no Céu como na Terra", de Pedro Sena Nunes (18, 21h, Malaposta). Mas para aí chegar, é preciso experimentar o vendaval de sons num microcosmos: uma capela na Serra D'Arga, no Minho, onde todos os anos se realiza uma peregrinação anual. Sena Nunes fixa as imagens dessa liturgia pagã, "flashes" de corpos endoidecidos com carne, vinho, lutas, bebedeiras e a música que arrasta tudo. Mas o mais selvagem (e o mais político) é o despique sonoro, onde lutam, para se fazerem ouvir, o discurso apocalíptico de um padre sobre o "mundo sujo e conspurcado" e o testemunho de um vendedor de frangos, um romeno que foi parar ao Minho - "estrangeiro", desfasado cultural e intelectualmente, é a "voz" que o realizador escolhe como sua. A resolução deste despique vai resolver-se pelo silêncio, embora ainda com a música de um acordeão tocado por uma criança, e junto à natureza. É o lugar entre o Céu e a Terra, diz o subtítulo do filme. Alguns poderão também chamar-lhe o sinal de Deus.Quem se aventurar pelo labirinto destes X Encontros de Cinema Documental não passará ao lado, também, de títulos como "A Fazer o Mal", de Luís Alves de Matos (sobre a rodagem de "Mal", a longa-metragem de Seixas Santos que competiu no último Festival de Veneza); "Espelho de África", de Miguel Vale de Almeida ou "Outro País", de Sérgio Tréfaut, que estão na competição nacional. Ou ver, em sessão especial (no dia do encerramento, 21, às 16h, na Malaposta), o último trabalho de Frederick Wiseman, "Belfast, Maine", retrato de uma pequena cidade portuária do nordeste americano.

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