Quando o professor não se vê

Têm entre cinco e 12 anos e níveis de aprendizagem diferentes. O que não impede que estejam integrados na mesma turma e que até aprendam em conjunto. A solução a que por vezes se recorre só quando escasseiam os alunos, é praticada por convicção no Externato Fernão Mendes Pinto, em Lisboa. O modelo é defendido pelo Movimento Escola Moderna, por assentar na "democracia participada".

O João já sabe ler e domina a tabuada enquanto a Maria ainda agora ensaia as primeiras letras e, quanto a contas, ainda mal sabe somar. Apesar dos diferentes níveis de conhecimento, os dois frequentam a mesma sala de aula. Ao todo são dezanove alunos do 1º, 2º e 4º ano do 1º ciclo do ensino básico, concentrados numa turma diferente das outras. Diferente porque reúne meninos com idades diversas - dos 5 aos 12 anos -, mas também no modo de funcionamento. Aqui há presidentes, conselhos de turma, diário de turma. Há um orçamento para gerir e todos têm uma palavra a dizer na planificação do dia."Na essência trata-se de trazer para a sala de aula uma forma de organização social próxima da democracia, que apela à participação dos alunos, para que aprendam a ser cidadãos activos", explica a professora Clara Felgueira, coordenadora desta turma do Externato Fernão Mendes Pinto, em Lisboa, e membro da associação Movimento Escola Moderna (MEM), organização que conta em Portugal com 30 anos de existência e que defende a aplicação de um modelo de escola assente na democracia participada. "Toda a acção pedagógica centra-se no grupo e não no docente, tal como acontece no modelo tradicional", acrescenta.A aula começa e todos sabem qual a sua função, previamente definida no quadro de "registo de responsabilidade". Sabe a Catarina, que prontamente se dirige ao quadro de presenças e faz a chamada. E a Joana que, empoleirada numa cadeira, escreve a data. O Manuel, presidente naquele dia, tenta pôr ordem na sala de aula. Há ainda um responsável pela planificação diária, pelos lanches, calendário, apagar do quadro, utilização dos computadores, tarefas que todos os meninos assumem rotativamente.Os primeiros minutos são prenchidos com as notícias do dia. Dedo no ar, os alunos pedem para falar e aguardam que o presidente lhes dê a palavra. "Comentários, perguntas?", interroga no final de cada relato. À professora compete lembrar as regras de cada vez que alguém não respeita a vez do outro. Mas, claro, também ela tem de pedir autorização ao presidente para intervir. "O professor não é mais do que um mediador e um modelo de participação activa", explica.Como conciliar o ensino de crianças que se encontram em estádios tão diferentes de aprendizagem? É a questão que mais dúvidas suscita aos pais e que os leva por vezes, no momento da inscrição, a rejeitarem esta turma. "Não há nada de complicado", responde a coordenadora. "Trabalha-se sempre para além dos professores: na biblioteca, nos computadores, com as fichas de trabalho que estão na sala, à mão de todos. No início do dia planificamos o trabalho e se realizo exercícios com os meninos do 1º ano, os do 2º e do 4º vão fazendo trabalhos autónomos, nas diferentes áreas de estudo", explica a professora que diz recusar "aulas de cátedra".Os meninos do 1º ano são chamados para a frente da sala para trabalhar com a professora. Os outros já sabem. Durante uns minutos estão por sua conta, mas todos respeitam as regras e sabem que têm de cumprir o que se comprometeram a fazer. "O professor não se vê", comentou um dos colegas de Clara Felgueira, enquanto assistia a uma das aulas.Este modelo, a que por vezes se recorre nas escolas públicas quando o número de alunos não é suficiente para constituir várias turmas, é neste externato praticado por convicção. Convicção de que "a motivação e as relações de entreajuda e solidariedade são maiores" quando se concentram meninos de várias idades, justifica a professora. "Só quero classes destas porque permitem um dinamismo no grupo completamente diferente, muito mais próximo da realidade, já que também nós não convivemos apenas com pessoas da mesma idade ou geração". Como esta professora, existem perto de três mil docentes, sócios do Movimento Escola Moderna, que defendem esta filosofia. Número que, segundo a associação, cresceu "muito nos últimos anos", em parte porque as mais recentes orientações do ministério apontam para a aplicação de princípios desde sempre defendidos pelo MEM. "Gestão flexível do curso, cooperação educativa, diferenciação pedagógica, são conceitos que cada vez mais a tutela quer ver aplicados nos estabelecimentos de ensino", diz Clara Felgueira.As vantagens pedagógicas são reconhecidas pelo Departamento do Ensino Básico (DEB): "Mais do que constituir turmas com meninos da mesma idade, interessa é que um aluno que entre no 1º ano de escolaridade acompanhe o mesmo grupo até ao final do 1º ciclo", sustenta Vasco Graça. "Até porque mesmo que as crianças tenham a mesma idade isso não significa que se encontrem no mesmo nível de aprendizagem", acrescenta o vice-director do DEB. O problema, defende Carlos Pereira, da Confederação Nacional das Associações de Pais, é que quando se recorre a esta concentração como forma de rentabilizar os recursos, no caso de haver escassez de alunos, a solução "não deixa de ser precária". Opinião corroborada pelo presidente da Federação Regional das Associações de Pais de Lisboa, Vitor Sarmento. "Em relação a turmas normais, com mais de 10 alunos, não acho desejável a junção de meninos com níveis de aprendizagem muito diferentes. Tenho muitas dúvidas quanto às vantagens pedagógicas", diz.*os nomes constantes nesta reportagem são fictícios

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