Torne-se perito

A encruzilhada do catalanismo

O resultado das eleições regionais de hoje na Catalunha, garantem os analistas, será justo. A cinco meses das eleições gerais espanholas de Março de 2000, a perpetuação do poder nas mãos nacionalistas poderia ajudar os conservadores a manterem as rédeas do governo de Espanha. Para já, Pujol, que já vai em 19 anos de reinado, detesta que lhe falem da sucessão e Maragall só admite ganhar.

A pré-história do catalanismo político situa-se no Antigo Regime. Depois de fazer parte durante séculos da Coroa de Aragão, vinculada a Castela desde a subida ao poder dos Reis Católicos, o principado da Catalunha dará repetidas mostras do seu mal-estar pelo modo de inserção no sistema de poder da Coroa espanhola. Em 1640, o que o historiador inglês J. H. Elliot chamou "a rebelião dos catalães", esteve quase a provocar uma secessão à maneira portuguesa. A diferença é que os catalães foram vencidos pelas armas.Também em 1659 a "paz dos Pirenéus" entre Espanha e França consagrou a anexação por Luís XIV do território catalão situado a norte da cadeia montanhosa (o Rossilhão) e a divisão do vale intermédio da Cerdanya. Na vertente norte só se manteve em território espanhol o pequeno vale de Arán, de língua occitana, onde nasce o rio Garona que desagua em Bordéus. Esta divisão manteve-se até hoje sem perspectivas de ser superada, uma vez que o nacionalismo catalão limita a sua implantação à Catalunha hispânica.A explicação, como no caso basco, reside na capacidade de integração do Estado francês, em contraste com as limitações do espanhol. "Vocês têm sorte e podem ser catalanistas", explicava um camponês do Rossilhão a um escritor nacionalista de Barcelona em 1930. O Rossilhão tinha as necessidades básicas: hospitais, estradas, telefone. Escola nacionalizadora em sentido francês, convém acrescentar. Por outro lado, a ausência desses serviços numa Espanha atrasada tornava possível a eclosão de um movimento centrífugo como o catalanismo.Houve, no entanto, uma segunda derrota da Catalunha. Quando Felipe V de Borbon herdou a coroa espanhola em 1700, o Principado, tal como outros territórios do reino de Aragão, acabou por optar pelo pretendente da casa de Habsburgo, o arquiduque Carlos. E manteve a resistência após a resolução em Utreque do conflito à escala europeia.Finalmente, a 11 de Setembro de 1714, a cidade de Barcelona foi conquistada pelas tropas borbónicas, tendo consequentemente a Catalunha perdido os seus foros e privilégios. O erudito Antonio de Capmany evocou o acontecimento com palavras bem eloquentes: "o ano de 1714, em que as armas de Felipe V, mais poderosas que as leis, fizeram calar todas as instituições livres na Catalunha". Daí em diante, Barcelona seria uma cidade marcada pelas suas duas fortalezas, Montjuic e a Ciudadela, cuja função não era defendê-la, mas dominá-la. O assalto à Ciudadela será o primeiro objectivo das insurreições populares do século XIX, até à sua demolição. A memória histórica manteve-se e o catalanismo transformou o dia de luto de 11 de Setembro de 1714 na sua comemoração nacional, "la Diada".Apesar de tudo, os séculos XVIII e XIX assistem a uma integração progressiva da Catalunha na Espanha. O grande historiador Pierre Vilar intitulou justamente a sua obra magna acerca desse processo "Catalunya dins l'Espanya moderna" [Catalunha na Espanha moderna]. Pois bem, a economia irá sobrepor-se à política e à questão linguística. Na segunda metade do século XVIII, e de forma muito definida a partir da década de 1830, apoiando-se na produção têxtil, a Catalunha torna-se a ponta de lança da industrialização espanhola. Trata-se de uma revolução burguesa localizada, que não encontra eco no resto de Espanha e que, por conseguinte, acaba por se adaptar às condições económicas e políticas de um país atrasado relativamente ao contexto europeu.A comparação com Itália pode ser útil para entender o fenómeno. O eixo Turim-Milão, ou Piemonte-Lombardia, não só encabeça a luta pela unidade no Risorgimento, como no plano económico e cultural, com todas as suas limitações, é ele que constrói a Itália contemporânea. A Catalunha, pelo contrário, está isolada e a sua modernização tem de suportar os estrangulamentos próprios de uma Espanha rural e pobre, cingindo-se a conservar, mediante o proteccionismo alfandegário, o seu controlo desse débil mercado interno espanhol. Em todas os aspectos da vida social e política, este desfasamento estrutural marca as relações entre a Catalunha e Espanha.Em 1840, forma-se um pujante movimento operário em torno da indústria têxtil catalã, talvez com mais de 30 mil filiados, porém, fora dali não há nada: sociedades dispersas de ofícios, uns quantos tipógrafos. A capital, Madrid, é, até à década de 1960, uma cidade sem indústria. E tanto nessa altura, como ainda hoje, os movimentos sociais catalães mantêm um nítido avanço sobre os do resto do Estado, onde apesar de tudo se enquadraram organicamente. Isto passa-se ainda hoje no socialismo democrático e teve enormes consequências para a crise do eurocomunismo na sua transição: na Catalunha, o partido aqui chamado PSUC obteve, nas primeiras eleições democráticas de 1977, 20 por cento dos votos, contra cerca de sete por cento no resto da Espanha, onde residia o centro de decisão política. Este desajustamento entre modernização catalã e centralização política em Madrid está na base do antiestatismo que sempre impregnou os comportamentos políticos de intelectuais e grupos populares no Principado: o grande movimento anarco-sindicalista, protagonizado entre 1910 e 1939 pela CNT, espanhol na forma, mas centrado em torno do proletariado catalão, constitui a sua expressão mais evidente. E a acção política da burguesia também não se livra desse espectro. Os industriais e empresários catalães souberam desde muito cedo agir eficazmente como grupos de interesses sobre o Governo de Madrid e, com o catalanismo, essa pressão - de Enric Prat de la Riba, no início do século, a Jordi Pujol, nos nossos dias - fez-se sentir também na política. Contudo, nunca houve uma articulação de interesses conservadores que permitisse às elites catalãs participar de modo estável no Governo de Madrid. Nem em meados de oitocentos, ou na monarquia constitucional anterior a 1923, nem na democracia actual. Ao longo dos anos 90, o presidente catalão, Jordi Pujol, exerceu uma influência mais que notável sobre a política dos sucessivos governos, tanto socialistas como "populares", de Felipe González a Aznar, mas sem nunca se envolver directamente na gestão do Governo central. Enquanto o nacionalismo basco constitui a expressão da resistência de um sector daquela sociedade aos efeitos das transformações económicas, demográficas e culturais que ocorreram no último terço do século XIX em torno da industrialização da Biscaia, resistência à modernidade e resistência a Espanha (independentismo), o catalanismo é a expressão do peculiar desfasamento entre a Catalunha e a Espanha. O que não conduz, no entanto, à ruptura devido à nítida consciência que existe na região de que a sua prosperidade depende da hegemonia exercida sobre o mercado espanhol. Desde o século XIX, o proteccionismo foi o estandarte que uniu todos os catalães, burgueses e trabalhadores, criando a imagem de uma convergência de interesses. Foi "o proteccionismo que impôs um dia a Catalunha", uma frase de um dos mais destacados catalanistas deste século, Francesc Cambó, que se comprometeu por fim a dar apoio económico à sublevação de Franco. Não se tratava de uma ruptura com Espanha, mas de desenvolver um protagonismo político da Catalunha, que impulsionara desde o principado a modernização do Estado e da sociedade espanhola. "Grande Catalunha na Grande Espanha" era o lema do catalanismo do primeiro quarto de século. O independentismo foi sempre uma opção muito minoritária no seio do movimento nacionalista catalão.A harmonia aparente da fórmula é, no entanto, enganadora. Desde as suas origens, o catalanismo faz uma crítica muito dura aos hábitos políticos espanhóis, com base na contraposição entre o dinamismo e a modernidade que presidem à vida catalã e a inércia que caracteriza Madrid. A construção nacional catalã apoia-se nessa visão dualista, que nos primeiros momentos de gestação ideológica - em escritores como Almirall ou Prat de la Riba - roça o racismo. Na vertente oposta, o conflito social, muito intenso na Catalunha desde meados do século XIX, obriga o catalanismo a renunciar à atitude progressista neste ponto, assumindo posições fortemente defensivas, até mesmo reaccionárias, como a defesa das "colónias industriais", e que em momentos de crise levam os sectores burgueses a refugiarem-se nos recursos defensivos do Estado central. Na grande revolta operária de 1909, a chamada Semana Trágica, o diário catalanista "La Veu de Catalunya" ["A Voz da Catalunha"] não apenas despreza a acção dos trabalhadores, como escreve na primeira página uma ordem clara: "Delateu!" (Denunciem!). O mesmo sucederá em 1936, por ocasião do levantamento militar. Os catalanistas conservadores da Liga optarão pelo apoio a Franco, que recrutará entre eles os melhores defensores da sua sublevação para o exterior, apesar de estarem conscientes de que com ele tanto a autonomia política como o livre curso da cultura e da língua catalãs vão desaparecer.A formulação política do catalanismo coincide no tempo com o aparecimento dos documentos que definem o galeguismo e o nacionalismo basco. As Bases de Manresa, a primeira articulação sistemática das aspirações regionalistas no Principado, são de 1892, o mesmo ano em que o basco Sabino Arana publica "Bizkaya por su independencia". Quanto ao galeguismo, o tradicionalista Alfredo Brañas deu à estampa, em 1890, "El regionalismo" e, na mesma data, o liberal Manuel Murguia escreve "La patria gallega". O carácter fechado do sistema político da Restauração, iniciado em 1876, e o fracasso da experiência federal em 1873, abriam caminho às alternativas ao Estado-nação espanhol centralizado, sempre a partir das regiões periféricas. Só com a perda das colónias (Cuba, Porto Rico e Filipinas), em 1898, se dá o salto das formações minoritárias para os movimentos políticos de importância. O Desastre de 1898, provocado pela derrota espanhola na guerra com os Estados Unidos, não só representa a crise simbólica do Estado-nação espanhol, convertido num "país moribundo", segundo o diagnóstico do primeiro Lord Salisbury, como incide fortemente sobre as atitudes da burguesia. E a burguesia catalã foi claramente espanholista perante as aspirações independentistas de Cuba, dada a importância que, para sectores como o têxtil, representava o mercado reservado da ilha. A derrota demonstrava a incapacidade de Madrid para defender esses interesses económicos e trazia para primeiro plano o já citado desajustamento entre as elites catalãs e o Estado central."Até as pessoas bastante vinculadas ao sistema da Restauração", escreveu o historiador Borja de Riquer, "eram partidárias de uma mudança na política espanhola e salientavam a necessidade de uma descentralização." "De repente, o catalanismo", diz J. Ll. Marfany em "La cultura del catalanisme", "começa a crescer a um ritmo aceleradíssimo, tendo esta súbita expansão como complemento a assunção generalizada da doutrina nacionalista." No discurso dos que tinham sido regionalistas, a "nação" é termo agora reservado à Catalunha, enquanto que Espanha é o Estado.No mesmo ano de 1898, Enric Prat de la Riba redige os seus dois manifestos "Als catalans" [Aos catalães] e "Al poble català" [Ao povo catalão]. Em Janeiro de 1899, sai o primeiro número do diário "La Veu de Catalunya" ["A Voz da Catalunha"]. Em 1901, forma-se o partido, a Liga Regionalista; 1906 é o ano da síntese doutrinal de Prat, "La nacionalitat catalana" ["A nacionalidade catalã"], mas principalmente da coligação que dá força eleitoral ao movimento, a Solidariedade Catalã. Em 1907, Prat de la Riba é eleito presidente do parlamento de Barcelona e, de 1914 a 17, ano em que morreu, preside à macrocomunidade da região. A autonomia parecia estar ao alcance do catalanismo conservador quando a conjuntura social e política em convulsão que se segue a 1917 inutiliza os esforços do sucessor de Prat, Francesc Cambó. A crescente mobilização social e a frustração quanto à reforma do Estado farão surgir, nas vésperas da Ditadura de 1923, movimentos nacionalistas mais radicais. Em 1919, o ex-oficial do Exército Francesc Macià funda a Federação Democrática Nacionalista que, três anos depois, se transforma em estado Catalão, de vocação independentista. Também em 1922 surge a Acção Catalã, à esquerda da Liga, e, passado um ano, aparece um partido socialista e catalanista, a União Socialista da Catalunha, pequena formação com notável presença intelectual.Fica aberto o caminho para o predomínio das correntes populares catalanistas, o que sucede a partir de 1931, na Segunda República espanhola. A Liga consumiu-se nos seus esforços para defender e, ao mesmo tempo, tentar reformar a monarquia espanhola. Nas vésperas da mudança de regime, os sectores democráticos do catalanismo criam o partido Esquerra Republicana da Catalunha [Esquerda Republicana da Catalunha], com Macià, Companys e Tarradellas como principais dirigentes.Desde a vitória eleitoral de 12 de Abril de 1931, que leva por um momento Macià a proclamar o Estado catalão, até à queda de Barcelona em Janeiro de 1939, no final da guerra civil, a Esquerra, ainda hoje existente, será o partido que impulsiona a autonomia catalã - conseguida com o Estatuto de 1932. Enfrenta, esse processo, a resistência dos conservadores espanhóis e dos anarquistas autóctones, e se mantém-se vinculado à esquerda do regime republicano. Entretanto a Liga, rebaptizada em 1933 Liga Catalã, debate-se entre o catalanismo e a propensão contra-revolucionária, que se afirma em Julho de 1936. Então, em plena guerra civil, cabe à Esquerra o trabalho mais difícil, perante a ocupação de facto do poder pelo anarco-sindicalismo e os conflitos com o poder central.Em 1933 morre Macià, sendo Lluis Companys quem assume a presidência do governo catalão, a Generalitat, de Dezembro de 1933 a Outubro de 1934 (altura em que é detido por se levantar contra a entrada da direita autoritária no Governo de Madrid) e de Fevereiro de 1936, vitória da Frente Popular, até ao fim da Guerra Civil. As convulsões destes anos de autogoverno abandonarão a memória histórica perante os logros políticos e culturais do catalanismo no poder. Para isso, contribuirá o facto trágico do fuzilamento do presidente Companys por Franco, quando no fim da guerra, tentou refugiar-se em França e foi entregue a Espanha por Pétain.Para a Catalunha iniciava-se uma longa etapa de obscuridade. O Estatuto foi suprimido, o franquismo perseguiu ferozmente o uso público do catalão e a derrota levou consigo os velhos partidos. Valeu nesta altura o alinhamento da Liga, que proporcionou um paulatino ressurgimento cultural das publicações em catalão, o que chega a adquirir notável importância nos anos 60. A Igreja local, com a abadia de Montserrat como pilar, teve também um papel importante na recuperação.Mas foi sobretudo o despertar da sociedade civil catalã que tornou possível um ressurgimento efectivo, com base na articulação do catalanismo, mobilização operária e antifranquismo. Perante as linhas tradicionais do PCE, o partido comunista catalão, o PSUC, realizou uma tarefa considerável de nacionalização dos trabalhadores, permitindo superar o esquema de confronto da CNT [Confederação Nacional do Trabalho, anarquista] com a Esquerra da Segunda República.A importância dos grupos de oposição permitiu que se constituísse, em Fevereiro de 1971, a Assembleia da Catalunha, com um espectro de representação muito plural, que não teria sido possível reunir no resto de Espanha. Uma sociedade em transformação, a catalã, enfrentava um regime imóvel, o de Franco, segundo a fórmula de Culla e Riquer na "História da Catalunha", coordenada por Josep Termes. Com a onda de industrialização, as Comissões Operárias [central sindical com vinculação comunista] conseguiam alcançar grande implantação, o mesmo sucedendo com os movimentos de bairros [comissões de moradores]. A caminho da transição democrática, com um PSOE catalão em vias de ressuscitar do nada, pareciam soprar ventos favoráveis a um predomínio político de uma esquerda aberta ao catalanismo. Além disso, o trauma de 1936-39 parecia dificultar a formação de um forte partido catalanista conservador, embora não faltassem figuras individuais, como o próprio Jordi Pujol. Também não facilitou as coisas a esta corrente o facto de o presidente da Generalitat no exílio, Josep Tarradellas, ter feito sobreviver a instituição ligada à sua pessoa. Quando ele regressa a Barcelona, convidado pelo presidente Suárez, em Outubro de 1977, a pré-autonomia dirigida pelo histórico discípulo de Macià vai fazer-se sob o signo do pluralismo. Os resultados das primeiras eleições também não foram favoráveis a Pujol, que formará uma coligação do seu grupo com os catalanistas democratas-cristãos sob o nome Convergência e União (CiU).O novo Estatuto entra e vigor em 1979, mas Pujol sobe ao poder nas primeiras eleições democráticas não pelos votos que obteve, mas pela recusa socialista em formar governo com os eurocomunistas do PSUC. Essa decisão terá consequências decisivas para o resto do século. A partir deste momento, o comportamento eleitoral da Catalunha é singular: vitórias socialistas nas eleições para o Parlamento espanhol e catalanistas nas autonómicas, sem excepção.O CiU passa a ser o primeiro partido da Catalunha, a gestão pessoal de Pujol faz dele um líder indiscutível, quase um pequeno rei, e a autonomia constrói-se e consolida-se sob o signo de um nacionalismo que nos últimos anos começa a procurar o incremento de competências que põem em causa a ordem constitucional-estatutária definida nos finais dos anos 70. O nacionalismo radical agrupa-se na velha e minoritária Esquerra, que esteve há dez anos à beira do desaparecimento. A novidade é que, em oposição a Pujol, nas próximas eleições apresenta-se um catalanismo não nacionalista, que tem o seu porta-voz num dirigente muito dinâmico, Pasqual Maragall. Agora, se Pujol deixar o leme, não será por os catalães recusarem a sua gestão, mas por uma evidente sensação de cansaço ante a sua permanência no poder, que já dura há duas décadas.* catedrático de Ciência Política da Universidade Complutense de Madrid

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