David Lynch, coração amansado

Três anos depois de "Estrada Perdida", David Lynch regressa com um novo filme. "The Straight Story" volta a ser um objecto surpreendente, mas desta vez por uma razão improvável: não tem nada a ver com Lynch. Ou afinal tem?

Não é segredo que David Lynch, o escritor-realizador-compositor-pintor, tem uma relação invulgar com o restaurante "Bob's Big Boy". Na década de 80, durante sete anos, almoçou lá todos os dias, pedindo chávenas de café super-adoçado umas atrás das outras e um único batido de chocolate, enquanto escrevinhava notas nos pequenos guardanapos quadrados.Aquilo que nem toda a gente sabe - e que revela algo de fundamental sobre o cineasta de 53 anos - é que durante esse período, quando ele "pensava que o açúcar era uma coisa realmente bela" (entretanto deixou de o consumir), fazia os possíveis e os impossíveis para chegar ao Bob's todos os dias às duas e meia da tarde. Motivo: dessa maneira aumentavam as hipóteses de ele lá encontrar a perfeição."Se se for mais cedo, à hora de almoço, estão a servir imensos batidos de chocolate. A mistura tem de arrefecer numa máquina, mas se não assentar o tempo suficiente - ou seja, quando estão a servir muito - é pouco espessa." Às duas e meia a mistura do batido ainda não está pronta há muito tempo, mas há uma hipótese de que esteja óptima."A recompensa de Lynch por esta preparação meticulosa foi mínima: apenas três batidos perfeitos em mais de 2.500 que bebeu. Mas não era isso que interessava. Para Lynch, era suficiente saber que tinha preparado as coisas para que pudesse acontecer um momento de excelência. Lynch pensa imenso nesta ideia, que afecta não apenas a sua alimentação (ainda come a mesma coisa, todos os dias, ao almoço e ao jantar), mas também a sua preferência por mobiliário escasso e a maneira quase Zen como escolhe os projectos. Seja com batidos ou com filmes, Lynch acredita que se deve criar espaço para que a inspiração apareça - preparar o ambiente certo para que a grandeza aconteça.Por isso parece particularmente satisfeito com "The Straight Story", a sua oitava longa metragem, com estreia marcada para o dia 15 nos Estados Unidos. Baseado na história verdadeira de Alvin Straight, um homem de 73 anos do Iowa que conduziu durante 500 quilómetros uma cortadora de relva para ver o irmão muito doente, o argumento chamou a atenção de Lynch e ele nunca mais o largou. Resultado: três anos passados sobre o seu último filme, "Estrada Perdida" ("Lost Highway"), e nove depois de a série "Twin Peaks" ter apresentado à América profunda a sua visão excêntrica, Lynch concluiu um filme diferente de tudo o que fez antes.Para começar, "The Straight Story" constitui a primeira vez em que Lynch dirige um projecto que não escreveu (os créditos são partilhados por Mary Sweeney, há muito tempo companheira de Lynch e responsável pela montagem dos seus filmes, e por John Roach). O filme, com Richard Farnsworth no papel de Straight e Sissy Spacek como Rose, a filha, não é povoado pelos inadaptados e mutantes que os fanáticos de Lynch conhecem de filmes como "Eraserhead" e "Blue Velvet". É uma celebração das pessoas comuns do Midwest, a maior parte dele velhos.Mais surpreendente, o filme, distribuído pela Walt Disney Pictures através do "logo" Disney, é para todos."Esta é a visão que David Lynch tem da sabedoria da vida com 73 anos. É uma ode à América, a valores humanos" - resume Peter Schneider, presidente dos estúdios Walt Disney.Spacek põe as coisas desta maneira: "É um 'road movie' a seis quilómetros por hora. É sobre viver a vida e não lamentar isso."Lynch sabe que algumas pessoas dirão que ele está uma pessoa diferente. "Quando se fizeram dois ou três filmes que foram primeiro classificados 'para adultos' e depois 'para adolescentes' e a seguir se realiza um filme 'para todos', isso é olhado como sendo uma coisa diferente", admite o realizador num tom minimizador que soa, apropriadamente, como uma coisa do Midwest (ele próprio cresceu no Montana).Depois de dar as boas vindas na sua casa de Hollywood Hills, Lynch senta-se numa cadeira baixa, numa sala quase vazia que ele, a rir, afirma que ainda acha estar muito atravancada de móveis.A um nível puramente visual, "The Straight Story" é um retrato carinhoso da América rural. Raramente filas intermináveis de cereais foram abraçadas desta maneira por uma câmara. Mas entre os moinhos de vento e os silos, os celeiros descoloridos pelo sol e a maquinaria agrícola, também há imagens que aquecerão os corações dos mais fanáticos apreciadores de Lynch: por exemplo, uma mulher enorme numa cadeira de plástico a bronzear-se com um reflector de metal enquanto come um gelado.Tem-se escrito muito sobre a ligação entre a educação formal de Lynch como pintor e as imagens intensas das suas longas-metragens. Mas Lynch é o primeiro a dizer que os seus filmes têm poucas semelhanças com as suas telas. Vê mais ligação entre a realização e a composição musical, com a qual gosta de fazer experiências (muitas vezes em colaboração com Angelo Badalamenti, que criou a música para todos os projectos de Lynch desde 1986).Além de dirigir "The Straight Story", Lynch é o "sound designer", e mesmo os espectadores mais desatentos hão-de notar o cuidado que ele pôs no estímulo dos ouvidos e não apenas no dos olhos. Seja o ranger de um elevador de cereais, o rugido de uma tempestade ou o sussurro de bicicletas a passarem em primeiro plano numa estrada rural, passam pelo filme as texturas audíveis da vida no campo."Cinema, para mim, é como se fosse música, na forma como apresenta coisas a sucederem em sequência. Certos acontecimentos têm de preceder outros, de determinada forma, para que tudo funcione. Mas há uma ligação entre música, cinema, pintura, escrita, tudo", afirma Lynch, que faz estas coisas todas e ainda desenha mobiliário e cuida da educação do filho de sete anos.O poder cinemático de Lynch tocou o público pela primeira vez em 1977, com o lançamento de "Eraserhead", um pesadelo surrealista sobre um casal que cria um bebé mutante. Perturbante, o filme tornar-se-ia um dos mais bem sucedidos objectos de culto no circuito das meias noites."Eraserhead" também impressionou o cómico Mel Brooks, no momento em que a sua companhia estava a produzir um filme sobre John Merrick, o chamado Homem Elefante, cuja cabeça e corpo deformados mascaravam uma alma boa. Brooks contratou Lynch para escrever e filmar, a preto e branco, "O Homem Elefante". Lançado em 1980, foi nomeado para oito Óscares, incluindo Melhor Realizador.De repente, Lynch estava no topo. Mas também estava mais interessado em prosseguir os seus próprios projectos do que em fazer grandes filmes em Hollywood. Começou a fazer um pequeno filme, "Ronnie Rocket", nos estúdios Zoetrope, de Francis Ford Coppola.Mas quando os problemas financeiros da Zoetrope obrigaram finalmente Lynch a suspender a produção, assinou um contrato com o produtor Dino de Laurentiis para realizar o primeiro filme de grande orçamento, a havia muito esperada versão cinematográfica de "Dune", a "ópera" de ficção científica escrita por Frank Herbert. Era um empreendimento tremendo - o próprio Lynch reduziu o enorme volume de 500 páginas a um argumento que tentava dar alguma consistência cinematográfica à visão complexa de Herbert - e empregou 20 mil figurantes para lhe dar vida.Resultado: críticas desiguais, receitas desapontadoras e aquilo que Lynch descreveria mais tarde como "uma tremenda quantidade de dor". Devastado pelo falhanço em dar vida a "Dune" de uma forma compreensível, procurou conforto, todos os dias, no "Bob's Big Boy"."O café e o açúcar é que me mantinham em movimento. E tentava ir tendo ideias", afirma, para tentar explicar como a rotina diária o ajudava a pensar, muito da mesma forma como acontece com os espaços com poucos móveis. "Se há muitas coisas numa casa, isso perturba o espírito."Aparentemente, Lynch andava atrás de qualquer coisa, porque o seu filme seguinte - projectado, em parte, nos guardanapos do Bob's - foi "Blue Velvet". Elogiado pela "Newsweek" como "um feito, fundindo as obsessões mais pessoais (de Lynch) com sexo, morte e inocência", o filme seguia um detective amador (Kyle MacLachlan) em busca do proprietário de uma orelha humana (encontrada num campo) até um escuro submundo de drogas, corrupção e violência sexual. Mais uma vez, Lynch foi nomeado para o Óscar de Melhor Realizador.Desde "Veludo Azul"/"Blue Velvet", Lynch realizou a série de televisão (ao princípio de grande audiência) "Twin Peaks" (e a menos do que popular longa metragem baseada nela), mais dois filmes ("Coração Selvagem"/"Wild at Heart" em 1990 e "Estrada Perdida"/"Lost Highway" em 1996) e aventurou-se algumas vezes pela televisão.Mas "The Straight Story" intrigou-o de uma forma nova, porque colocava um desafio: capturar em filme o que ia no coração de um homem. "É uma coisa muito complicada, a emoção, e a forma de a colocar em filme", afirma Lynch, que vê semelhanças entre este filme e "O Homem Elefante".Sweeney, responsável pela montagem dos últimos três filmes de Lynch e produtora dos últimos dois, diz ter ficado comovida com a dignidade de Straight, que decidiu fazer uma visita final ao irmão - apesar de ver mal, de ter problemas ósseos e uma carta de condução fora de prazo. Com Roach, que conhece desde o primeiro ano do liceu, lançou-se na escrita de um guião sobre um modo de vida ao qual o cinema não dá muita atenção."Roach e eu temos um amor tremendo por esta parte do país e pelas pessoas que lá vivem", disse Sweeney em entrevista telefónica. "Todos os dias, na vida comum, há tantos exemplos de coragem." Sweeney e Roach fizeram em conjunto pesquisa sobre a vida de Straight. "Passámos uma boa quantidade de tempo com seis dos seus sete filhos em Des Moines. Seguimos pela estrada (por onde ele foi)", recorda Sweeney.O filme foi realizado em sequência, com início em Setembro do ano passado, e por isso, à medida que se desenrola, vão mudando as cores do Outono e o ritmo da colheita. Lynch e as suas câmaras seguiram o caminho de Straight e até filmaram na casa que era dele na pequena localidade rural de Laurens, Iowa. (Straight morreu em 1996 e a casa estava vazia.)A vida durante as filmagens foi maravilhosa, lembra Spacek, por causa da forma calma como Lynch trabalha. "Tem uma visão que quer comunicar. Não é conflituoso. Mas é tão bom e divertido e trata toda a gente com tal respeito que todos procuram ao máximo dar-lhe aquilo que quer", afirma, acrescentando sentir que Lynch tem uma ligação especial à viagem de Straight. "Parece-me ser qualquer coisa que o próprio David podia fazer."* Exclusivo PÚBLICO/ "Los Angeles Times"

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