"Aqui existo de uma maneira longínqua"

Sete poetas que vivem longe, uns mais longe que outros, dois conhecidos, um assim-assim, mais quatro desconhecidos. O Encontro de Poetas da Diáspora Portuguesa terminou sexta à noite, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, com a proposta, desde logo recusada, de uma "antologia com os poemas dessas pessoas espalhadas pelo mundo inteiro".

A assistência era modesta - não seriam mais que três dezenas -, mas a sala no segundo andar da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, dificilmente suportaria multidões. Um dos sete convidados lançou a dúvida, no último dia de encontro: "Vou colocar uma questão a mim mesmo. Ou, melhor, a vocês: porque é que estou aqui hoje, depois de 30 anos fora e 22 de publicação?" "Porque era urgente", responderam. E porque, como Rui Diniz, o dono da dúvida acima, muitos dos autores convidados a participar no Encontro de Poetas da Diáspora Portuguesa são ilustres desconhecidos no país que deixaram há mais de 25 anos. Façam o teste: Fernando Echevarría, Fernando Lemos, Helder Macedo, Jorge de Amorim, Luís Amorim de Sousa, Luiz-Manuel e Rui Diniz. Para acabar com as distâncias, mesmo que discretamente, a Casa Fernando Pessoa trouxe-os a Lisboa, pediu-lhes que lessem os seus poemas. Fernando Lemos folheia os seus livros sem cessar, lê um poema atrás do outro, perguntando de tempos a tempos se não esgotara já os minutos devidos. Anunciado o fim da leitura, a plateia bate palmas, ele recomeça novo poema, assegurando: "Eu fico mais uns minutos com todo o prazer. Não quero parecer um fugitivo". Fugitivo foi-o há 47 anos, quando trocou Portugal pelo Brasil, como lembra ao PÚBLICO: "Fugi daqui para não voltar mais. Não fugi só do Salazar, fugi também da minha mãe, que era muito autoritária. De qualquer maneira, estava naquela idade de a gente pular o muro", diz, com um ligeiro sotaque brasileiro. Enquanto outros procuravam abrigo em França, Inglaterra, Alemanha ou EUA, ele escolheu o Brasil: "Fui atrás dos meus traços culturais, de um país da mesma língua. Ir para um país aprender uma outra língua... ia fazer estrago." No Brasil goza de franca notoriedade como pintor e desenhador (a Casa Fernando Pessoa acolhe uma exposição de fotografias e desenhos inéditos), mas é deste lado do Atlântico que o seu cartão de apresentação inclui o ofício de poeta. "No Brasil não se tem essa agilidade poética que se tem em Portugal. Aqui toda a gente escreve poesia, há poetas até de mais", acusa. "Prefiro ficar-me nesta coisa de artista plástico. A escrita é uma coisa que faço a uma determinada hora do dia, ao final da tarde, no lusco-fusco, quando já terminei de pintar. A minha poesia tem muito de carta, é a de um sujeito exilado num lugar que, para não ficar sozinho, escreve. Se dou a alguém para ler, fico sempre na obrigação de explicar isso, o que não me apetece." Por cá, a última edição de um livro seu data de 1985, "Cá & Lá" (ed. INCM), presumível compilação das suas obras completas que afinal não o são.No fim da conversa, revela que se estreara na leitura dos seus próprios poemas, na passada sexta-feira: "Foi bom. Para a poesia não sei, mas fez-me bem ao ego".Mas a estreia de Fernando Lemos não foi a única. "Sou uma pessoa extremamente nervosa, nunca li poesia em frente de ninguém. Isto vai ser um drama, portanto, tenham paciência", avisa Rui Diniz, radicado nos Estados Unidos, em Eaton - "nem sei se vem nos mapas", avança Nuno Júdice, mestre de cerimónias da última sessão de leitura de poemas. E lembra que a partida de Rui Diniz, em 1969, deixou "algumas interrogações" por cá, até porque o poeta nunca mais regressara a Portugal nem publicara por cá livros depois de o seu "Ossuário" (ed. & etc) ter sido considerado "uma referência da poesia do fim dos anos 60". O livro é raro, tão raríssimo que "até em alfarrabistas é difícil de encontrar", segundo Manuela Júdice, coordenadora da Casa Fernando Pessoa, mas, entre a assistência, uma mulher tira o livro da mala para confirmar a data de publicação e acompanhar a leitura dos versos. "A presença de Rui Diniz vem mostrar que ele existe, vem resolver uma inquietação de muita gente", diz Nuno Júdice. E o drama previsto no início não aconteceu.Poetas da diáspora, emigrantes, exilados, fugitivos. O adjectivo muda conforme o interlocutor. Como Fernando Echevarría, que usa cada um dos termos consoante o "jeito" que lhe dão. Ou não fosse ele poeta: "O acto de criação é um exílio, o supremo exílio. Nele, o autor está, de certa maneira, fora de si como indivíduo. Nesse sentido, a palavra exílio dá-me jeito. Diáspora é um conceito que implica que haja um centro, estabelece uma relação que é a da língua - o facto da língua quotidiana ser estrangeira obriga a alargar a língua em que se escreve. Nesse sentido, a diáspora dá jeito." Exilado em Paris desde 1961, Echevarría fez-se conhecer como poeta ainda antes de deixar Portugal, em 1956, com "Entre Dois Anjos", a sua estreia literária. Dois anos mais tarde reincidiu com "Tréguas Para o Amor" e já deixara o país quando saiu "Sobre as Horas", em 1963. Mas à distância geográfica acabou por trazer o afastamento dos meios editoriais portugueses: "Até 87 tive que publicar à minha conta." O seu mais recente livro, "Geórgicas", de 1998, valeu-lhe a mais recente distinção do Pen Clube na área da poesia. Só em França o reconhecimento tarda. "Lá não existo, sou um zero à esquerda, não sou sequer um escritor, tenho um livro. Aqui existo de uma maneira longínqua. Até me dá jeito, porque me sinto mais livre para escrever. A melhor condição para escrever é ser um zero e ter um papel à frente", remata. O único livro de Echevarría editado em francês é uma selecção de poemas de "Figuras", publicado há quase dez anos."Considero-me um escritor português que vive longe", descreve Luís Amorim de Sousa, que optou por Londres há uns 40 anos "para fugir ao fascismo". Mas não lhe chamem romancista, só porque tem duas ficções publicadas na Assírio & Alvim: "Sou mais conhecido como romancista, quando não o sou, escrevi livros autobiográficos." É verdade: "Crónica dos Dias Tesos" relata os seus tempos de recém-chegado em Londres, "O Pico da Micaia" é o desabafo de uma juventude passada (também) na antiga Lourenço Marques. Com quatro livros de poemas editados em Portugal - "Ultramarino" (ed. INCM) reúne a sua obra poética até 1997 -, Luís Amorim de Sousa garante que "escrever no estrangeiro é um pouco como ser filatelista: é um trabalho muito solitário". Com dois manuscritos inéditos na pasta, um à espera de editor, outro ainda em curso ("O Insecto na Folha" e "O Verbo Trafalgar"), Amorim de Sousa conta que a distância dos circuitos editoriais implica muitas vezes ter de aguardar numa fila de espera o sim do editor. "Há momentos em que a gente se sente esquecido e francamente injustiçado", assegura. "Sabia que o Alberto de Lacerda [residente em Inglaterra] tem mais de mil poemas inéditos?", pergunta. "O facto de existirmos merecia apoios que não conseguimos sozinhos", desabafa. "Não seria interessante fazer uma antologia com os poemas dessas pessoas espalhadas pelo mundo inteiro?", sugerem na plateia. "Essa antologia devia existir, há estes sete poetas, há outros mais, gostaríamos de ter tido cá mais alguns. A Casa Fernando Pessoa está a aberta a colaborar tanto na selecção como na edição dessa antologia, mas não o pode fazer sozinha", diz Manuela Júdice. E é um dos poetas quem se manifesta "totalmente contra". Para Helder Macedo, poeta, ensaísta, romancista e professor catedrático no King's College, em Londres, "a ideia de uma antologia de poetas da emigração é perpetuar um gueto, quando o que fizeram estes dias foi quebrar as barreiras desse gueto. É preciso que publiquem, mas em meios não circunstanciados à emigração". Fernando Echevarría é da mesma opinião: "Não se deve fazer um gueto das pessoas que vivem lá fora. O que se deve conseguir é que elas publiquem cá dentro." Que é como quem diz, venha para dentro lá fora.

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