O estranho mundo de Bob

"É tão difícil ser simples" foi uma das considerações que Robert Wilson teceu quanto ao trabalho de encenação actual. Convidado para inaugurar a experimentadesign99, no domingo, o mago do teatro contemporâneo conquistou a assistência do Convento do Beato, em Lisboa, que, desde o início, se rendeu aos seus dotes de palco. Uma sessão de slides, revelações feitas na primeira pessoa e conselhos para quem deseja penetrar no mundo insondável do mestre foram alguns dos aperitivos oferecidos ao longo de uma palestra que durou quase três horas.

"Nasci em Waco, uma pequena cidade no Texas, onde não havia salas de teatro, galerias de arte ou museus. Mais tarde, mudei-me para Nova Iorque e comecei a frequentar salas de teatro, galerias de arte e museus. Primeiro, fui à Broadway e à ópera mas não gostei nada daquele trabalho muito complicado e pensado. Os actores insistiam demasiado numa ideia. Depois, conheci o trabalho coreográfico de George Balanchine e gostei muito (ainda gosto) porque era diferente da Broadway e da ópera. Tinha espaço, mental e virtual, para a reflexão".Foram estas as palavras com que Robert Wilson deu início à sua comunicação, um aperitivo irrecusável na abertura oficial da experimentadesign99.A conferência estava marcada para as 17h, na Biblioteca do Convento do Beato, em Lisboa. Embora a entrada tivesse que ser marcada com antecedência, houve quem não deixasse de tentar a sua sorte no próprio dia. A ocasião especial exigia-o e, em alguns casos, o arrojo foi recompensado. Resultado: as cadeiras não chegaram e algumas pessoas tiveram que se manter de pé ao longo das quase três horas de palestra oferecida por este nome incontornável do teatro contemporâneo .A plateia começou a reunir-se pouco antes da hora prevista. A sala muito abafada não foi suficiente para desanimar os presentes que, respeitosamente, aguardavam a chegada daquele que, ainda o ano passado tinha apresentado em Portugal "O Corvo Branco", a ópera que, juntamente com Philip Glass e Luísa Costa Gomes, concebeu para a Expo-98.Não demorou muito para que a biblioteca ficasse na escuridão. Entretanto, um foco de luz acendeu-se e incidiu sobre Robert Wilson que se levantou em direcção ao palco. Imóvel e em silêncio, enfrentou longamente os presentes numa pose séria e estudada. O momento era partilhado com curiosidade pelas dezenas de pessoas que cabiam na sala.As primeiras palavras foram disparadas de surpresa e rematadas com o sorriso de quem prevê conseguir o efeito desejado.Desde o início que a assistência se rendeu à sua capacidade comunicativa e a explicação para esse facto não deverá andar longe do tom intimista e confessional de Wilson, naquela que foi uma elucidativa viagem ao seu estranho mundo. Depois de ter revelado os nomes de Balanchine, Merce Cunningham e John Cage como referências iniciais no seu trabalho, Wilson surpreendeu ao confessar uma das principais influências da obra que hoje lhe conhecemos. Vestindo a pele de contador de histórias, falou da ligação que, em meados dos anos, 60 estabeleceu com Raymond Andrews, um rapaz mudo que descobriu numa instituição psiquiátrica e que decidiu adoptar. "Raymond não conhecia as palavras e eu tinha uma grande curiosidade acerca do seu raciocínio" explicou. Como acreditava nas capacidades de Andrews ("ele tinha sentido de humor e isso é um sinal de inteligência"), encetou com ele uma colaboração recompensadora que culminou, em 1971, com a apresentação do primeiro trabalho, "Deafman Glance", uma ópera silenciosa com sete horas de duração que, à época, foi aclamada internacionalmente. O ponto de partida era a exploração do movimento, "a partir do qual aparece o som" porque, à maneira de Cage, também ele percebeu que todos os silêncios são música.O fascínio por este Raymond Andrews é visível, mas não rouba espaço ao protagonista que Robert Wilson apresentou de seguida e que revelou ter conhecido em circunstâncias pouco habituais que não tardaram a ser descritas. Corria o ano de 1973 quando um psiquiatra seu conhecido lhe ofereceu uma gravação de conteúdo algo críptico, que Wilson não se escusou a recitar, deixando perplexa a assistência da Biblioteca do Convento do Beato. "Hat At Hap Hat At" foi a lengalenga incompreensível, escutada e escrita até à exaustão.A explicação não se fez esperar. O autor daquelas palavras era Christopher Knowles, uma criança de 13 anos com lesões cerebrais que, meses depois, Robert Wilson convidou para participar numa peça sua. O resultado desse trabalho pôde ser visto em "A Letter to Queen Victoria". O que se seguiu à apresentação destes dois quase impossíveis actores foi uma autêntica lição de artes do palco. Apoiando-se na projecção de uma sessão de "slides", Robert Wilson ia fazendo passar pelos olhos do público atento uma série de imagens surrealistas de grande impacto visual, todas referentes ao seu trabalho de encenação, afinal o seu cartão de visita. Wilson soube dominar e moldar a assistência a seu bel-prazer. Ciente das possibilidades da sua figura em palco, gesticulou, ensaiou esgares e encarnou as várias personagens que povoam o seu universo. Histórias quase inverosímeis desfilavam à velocidade da luz e arrancavam gargalhadas de um público completamente fascinado. Desde a sua avó, que é convidada a recitar em palco o rol diário de queixas quanto à quantidade astronómica de medicamentos que tem de tomar, até ao facto de a irmã lhe ter confessado achar as suas peças demasiado lentas, Wilson fez de tudo para seduzir a assistência. E teve sucesso.De forma quase subliminar, Bob Wilson continuava a apresentação de "slides" que funcionaram como uma breve retrospectiva do seu trabalho. De "Einstein on the Beach", a obra responsável pelo encontro histórico entre o encenador e Philip Glass, até à "Alice", com paragem obrigatória em "The Black Rider", resultado da sua colaboração com Tom Waits e com o falecido escritor William S. Burroughs, fez-se uma incansável viagem por quase todos os seus trabalhos. Algumas imagens mereciam-lhe comentários mais extensos, outras eram votadas a um saudável abandono. As explicações não eram gratuitas e acrescentavam sempre algo de novo. Os objectos de cena das suas óperas também puderam ser apreciados, embora não tivessem merecido mais do que uma simples menção quanto ao museu onde se encontram expostos. Numa bienal dedicada ao design e às suas intersecções com outras áreas artísticas, essa foi uma pergunta que ficou por responder.Quase no final da sua palestra, Wilson distribuiu pelos presentes o segredo do seu sucesso. "Pensem com o corpo, porque é lá que está a verdade e não representem" foi o conselho que deixou. Quem sabe, talvez seja esta a pista para quem quiser decifrar o trabalho de um mestre que tem como objectivo final a simplicidade, afinal tão difícil de alcançar.

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