Morreu o "Bispo Vermelho"

Foram os militares que governaram o Brasil entre as décadas de 60 e 80 que lhe deram o nome de "Bispo Vermelho". Mas antes de se identificar com a esquerda, Dom Hélder Câmara teve uma passagem pelo lado oposto, pelo integralismo. Foi um "erro de juventude", justificou. Quando se reformou, a Teologia da Libertação perdeu terreno no Brasil.

Foi sepultado ontem, no cemitério da Igreja da Sé, em Olinda (Brasil), o corpo do arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara. A morte de Dom Hélder, aos 90 anos, vítima de insuficiência respiratória, põe fim a uma história de defesa dos direitos humanos e de combate à pobreza. Por conta das denúncias de violações aos direitos humanos durante a ditadura brasileira, e do trabalho de organização social de operários e camponeses, Dom Hélder chegou a ser chamado "Bispo Vermelho" pelos militares que governaram o Brasil entre as décadas de 60 e 80. Mas a identificação do arcebispo de Olinda e Recife com a esquerda não aconteceu sem uma passagem pelo lado oposto. Nos anos 30, o então padre Hélder estava ligado à Acção Integralista, a versão brasileira do fascismo, cujo emblema lembrava a suástica. Mais tarde, Dom Hélder viria a reconhecer que a sedução pelo integralismo teria sido um "erro de juventude".Nascido no dia 7 de Fevereiro, em Fortaleza, no Ceará, Dom Hélder Câmara era um dos 12 filhos de um jornalista e crítico teatral e de uma professora primária. Entrou no seminário aos 14 anos e ordenou-se padre aos 22. Em 1931, organizou a Juventude Operária Cristã e dirigiu a Legião Cearense do Trabalho, que apoiava a Acção Integralista. Por solicitação do cardeal Dom Sebastião Leme, Dom Hélder afastou-se da política. Em 1952, Dom Hélder foi um dos principais articuladores da fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, hoje, é o mais importante órgão de representação da Igreja Católica no Brasil, de que foi o primeiro secretário-geral. Foi ele também o principal articulador das Comunidades Eclesiais de Base - organizações de leigos e padres que actuam na organização de comunidades pobres e que vieram a ter um papel decisivo na criação do Movimento dos Sem Terra (MST).Em 1956, já arcebispo do Rio de Janeiro, fundou a Cruzada de São Sebastião, que procurava "urbanizar, humanizar e cristianizar" as favelas da cidade. O contacto permanente com a pobreza e, mais do que isso, com a miséria - "na pobreza, existe apenas o indispensável, mas existe; na miséria, nem o indispensável existe", dizia -, marcou a existência de Dom Hélder, que era conhecido como "irmão dos pobres" pelo Papa João Paulo II, mas irritava os ditadores. "Se dou comida aos pobres, eles chamam-me santo. Se pergunto por que razão os pobres não têm comida, eles chamam-me comunista", queixava-se.Mas o trabalho que deu maior notoriedade a Dom Hélder Câmara foi o da denúncia de violações aos direitos humanos durante a ditadura. Num momento em que o lema oficial era "Brasil: Ame-o ou Deixe-o", em que qualquer crítica ao regime se confundia com falta de patriotismo, em que quem se atrevia a criticar arriscava-se a desaparecer nos porões da ditadura, Dom Hélder soube usar até ao limite do temerário a relativa imunidade que o arcebispado lhe conferia. Internamente, as denúncias de Dom Hélder acabavam por cair no vazio - a censura não permitia uma linha sequer sobre as torturas praticadas sistematicamente na época -, mas, no estrangeiro, Dom Hélder incomodou tanto quanto pôde o regime militar. O trabalho de denúncia da ditadura brasileira levou o episcopado alemão a indicá-lo para o Prémio Nobel da Paz - indicação que o regime militar se empenhou em minar, com sucesso. Mas o trabalho de Dom Hélder em defesa dos direitos humanos na fase da História brasileira em que essa actividade foi mais perigosa não se resumiu a palavras. Sabe-se hoje que a casa de Dom Hélder serviu de abrigo a inúmeros perseguidos políticos. A redemocratização brasileira coincidiu com a reforma de Dom Hélder, em 1985. Nesse período, a facção mais à esquerda da Igreja Católica, congregada em torno da chamada "Teologia da Libertação", perdeu terreno. Em parte, devido ao crescimento das seitas evangélicas, em parte, pela acção de João Paulo II, que considerava os teólogos da libertação demasiadamente ligados às questões terrenas e esquecidos da salvação das almas. Mas Dom Hélder, embora aliado na acção política, não chegava a incluir-se entre os teólogos da libertação, no que há nisso de questionamento da hierarquia interna da Igreja. Ele, que se tornou um ícone da ala "progressista" da Igreja, era grande amigo do actual arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugénio Sales, que, por sua vez, é tido como ícone da ala "conservadora". Para espanto de "progressistas" e "conservadores", os dois adoravam-se. Ontem, o ex-Bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, recordando a altura em que recebeu o prelado brasileiro em sua casa, disse que "Dom Hélder passa à História como um exemplo de como a Igreja deve viver no mundo, empenhada na denúncia das injustiças". Já D. Januário Torgal Ferreira, vigário-geral castrense citado pela Lusa, chamou-lhe "homem simples, pobre e desprendido", "exemplo de uma Igreja que tem muita coisa a mudar em si".

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