Um santo contra a peste

O que foi o culto de S. Roque, o santo que espantava a peste com o sinal da Santa Cruz? Que dimensão teve em Portugal? Algumas respostas podem encontrar-se na exposição aberta no Museu de São Roque, em Lisboa, até final de Setembro, que inclui quadros exemplares da mais antiga pintura portuguesa.

As obras de conservação da Igreja de S. Roque realizadas entre 1997 e 1998 pela Santa Casa da Misericórdia puseram a descoberto um património inestimável: as fundações da antiga ermida manuelina de S. Roque mandada destruir pelos jesuítas. Foi este o pretexto para realizar a exposição que pode ser visitada, agora, no Museu da Misericórdia- até 30 de Setembro, das 13 às 17h00, excepto aos domingos-, esclarece a sua responsável, Teresa Morna. Com as escavações foram ainda encontrados vestígios de azulejos que teriam pertencido ao revestimento da ermida e que estão também em exposição, além de criptas e de ossadas de possíveis vítimas da peste. Várias peças pertencentes a um período compreendido entre os séculos XVI e XIX incluem-se nesta mostra. Nela, ocupa lugar de destaque o conjunto de quatro pinturas do século XVI que ilustram os episódios mais marcantes da vida do Santo. Tradicionalmente conhecidas como as "Tábuas da Vida de S. Roque", decoraram o retábulo-mor da antiga ermida de S. Roque e pertencem hoje ao espólio do museu. Embora não se conheça a identidade do pintor, os estudos sobre a obra indicam que se trata "claramente de um pintor português", como refere Joaquim Oliveira Caetano no catálogo da exposição. "Os fundos de paisagem, quando aparecem, podem ser referenciados noutros pintores da escola de Lisboa e os figurinos das personagens nobres têm clara correspondência nas oficinas da capital" - escreve. As características do pintor podem encontrar-se, aliás, noutros conjuntos relevantes da pintura nacional do primeiro terço de Quinhentos, afirma Joaquim Caetano. Entre os objectos expostos, distinguem-se ainda várias esculturas do Santo em madeira, pedra pintada e marfim, diversos relicários e urnas, quadros pintados a óleo. Há também uma estante missal em madeira entalhada e lacada usada em cerimónias religiosas, um escapulário em seda dourada e uma bula papal concedendo privilégios à irmandade de S. Roque.Além de contribuir para uma melhor informação acerca do culto de S. Roque em Portugal, esta exposição permite ainda dar a conhecer a ligação entre a antiga Irmandade de S. Roque e a História da Companhia de Jesus, explica Teresa Morna. A fama dos milagres de S. Roque chegou a Portugal no início do reinado de D. Manuel I, numa época em que sucessivos surtos de peste alastravam por toda a Europa. Ao aperceber-se da intensidade da crença neste Santo, o rei conseguiu que uma das suas relíquias viesse de Veneza - onde se encontravam depositados os seus restos mortais - para Lisboa. Essa relíquia foi recebida na capital pela corte e pelo povo e transportada em cortejo até junto da cerca fernandina que defendia a cidade. Era um descampado que tinha sido escolhido para a construção de um cemitério onde tinham sido enterradas as vítimas do último surto de peste que infestara Lisboa. Neste local, foi construída em 1506 uma ermida, pequena capela do estilo manuelino, para a prática do culto de S. Roque. Porém, a capela não existiu mais do que 50 anos. Com a chegada a Lisboa dos primeiros padres jesuítas, foi cedida à Companhia de Jesus e mandada demolir para erguer em seu lugar a Igreja de S. Roque, sede da ordem jesuítica em Portugal. Foram os vestígios dessa antiga ermida e do que se encontrava no seu subsolo, como criptas e ossadas, que foram encontrados nas recentes escavações.São Roque nasceu em Montpellier por volta de 1350, no seio de uma família rica e poderosa. Não era um bebé igual aos outros. No peito tinha uma marca vermelha em forma de cruz, o que levou a que fosse logo visto com um certo misticismo, como um sinal enviado por Deus. Quando o pai morreu, ele herdou uma imensa fortuna e o título de duque. Mas resolveu renunciar a todos os privilégios, distribuiu os seus bens pelos pobres, ofereceu o título a um tio e tornou-se peregrino. Em Itália, ao deparar-se com um surto de peste, distinguiu-se pelas suas curas milagrosas junto desses doentes através, apenas, da administração do sinal da Santa Cruz. Até que, ele próprio, apanhou peste e decidiu isolar-se numa floresta impenetrável para não propagar a doença. Já tinha uma chaga na coxa que se tornou numa marca característica da sua imagem. Na solidão da floresta, um anjo enviado por Deus consolou-o do sofrimento e aplicou-lhe na ferida um bálsamo milagroso que acabou por curá-lo. Ao mesmo tempo, o cão de um nobre que morava perto roubava um pão da mesa do dono e, todos os dias, levava-o ao Santo no seu refúgio. Curado, São Roque decidiu regressar a Montpellier mas ninguém o reconheceu. Havia guerra, confundiram-no com um espião e o tio, a quem ele concedera o título de duque, mandou-o prender. Diz a lenda que acabou por morrer no cárcere onde foi encontrado banhado por uma luz sobrenatural. Esta é a história que serviu de base a quatro quadros expostos no Museu da Misericórdia, exemplos da mais antiga pintura portuguesa (composta no século XVI) e da narração visual da lenda. Pinturas que fizeram parte do retábulo interior da ermida de S. Roque. O seu culto iniciou-se no século XV no seguimento da decisão do Concílio de Ferrara que prescreveu preces públicas pedindo a intervenção de São Roque quando, em 1439, a peste ameaçava a cidade. Com o tempo, a veneração a este Santo perdeu a dimensão que teve outrora, embora a Irmandade ainda exista em Portugal.

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