Um "cristianismo sem religião"?

Dietrich Bonhoeffer inventou a expressão "cristianismo sem religião". O teólogo alemão assassinado pelos nazis não põe em causa nem a fé cristã nem a Igreja como tal, mas as formas sagradas ou as instituições que deixaram de ter significado para o homem moderno. Na alvorada do seu terceiro milénio, as Igrejas defrontam o desafio de se abrirem àqueles a quem São Paulo teria chamado "pagãos" modernos.

"Deus agarrou-me pela pele do pescoço." É assim que Desmond Tutu explica, a 3 de Fevereiro de 1985, no dia da sua ordenação episcopal na catedral anglicana de Santa Maria de Joanesburgo, o combate da sua vida contra o apartheid. Desmond Tutu é, antes de mais, uma pilha de nervos debaixo da casula violeta, desgrenhado e risonho, a desengonçar-se diante do microfone ou a dançar à frente do altar. É o homem das expressões categóricas, das palavras que gelam o auditório ou o põem a rir. Auditório de brancos, a quem repete que o apartheid é, "depois do nazismo, o sistema mais perverso inventado pelo homem". Auditório de negros, para quem a palavra de ordem sempre pronta a ser gritada é: "Um colono, uma bala."Como Martin Luther King e Oscar Romero, o seu envolvimento funda-se no Evangelho e não no programa de um partido. Amigo de longa data de Nelson Mandela, mantém-se distanciado do ANC (Congresso Nacional Africano), não partilhando as suas opções violentas. Em 1988, ao Presidente Pieter Botha, que o acusa de "estar feito" com os comunistas e com os terroristas, Tutu responde que trabalha apenas para o "reino de Deus". "As nossas ordens para manifestações contra o apartheid", afirma, "vêm do próprio Cristo e não dos homens. Quando as leis são injustas, ensina-nos a tradição cristã que não as respeitemos."A Bíblia é, para este filho de professores metodistas nascido a 7 de Outubro de 1931, na cidade mineira de Klesdorp (Transvaal), uma companheira inseparável. Brande-a nas reuniões populares do Soweto. E é categórico: na Bíblia não há apartheid! As leis do apartheid são anticristãs! "Então que Bíblia lêem os brancos? A que Deus dirigem as suas preces?", interroga exaltado. E para aqueles que o acusam de confundir as suas responsabilidades como bispo com militância política, a resposta é só uma, carregada de ironia: "Foi enquanto chefe político ou enquanto chefe religioso que Moisés libertou o povo hebreu do Egipto?"Desmond Tutu é a favor de todas as marchas de protesto contra a segregação, de todas as campanhas de boicote, de desobediência civil, de objecção de consciência. Primeiro deão negro da catedral de Joanesburgo, recusa a sua residência oficial num bairro branco para permanecer no Soweto, gueto negro martirizado pelos motins de 1976. A partir do final dos anos 70, os seus apelos ao boicote ao carvão sul-africano tinham-lhe valido ser tomado como um inimigo pelo poder branco. Bate-se por escolas comuns, por uma cidadania sem distinções de raça, pela abolição das leis que regulam as deslocações da população negra ("pass-laws").A partir do início dos anos 80, monsenhor Tutu promete que, "dentro de cinco ou dez anos", o país será dirigido por um Presidente negro, que poderá perfeitamente chamar-se Nelson Mandela. Este encontra-se então a cumprir a sua longa pena de prisão em Robben Island, ao largo do Cabo. O bispo anglicano falhou por poucos anos. Entretanto, recebe o Nobel da Paz e, mais tarde, ser-lhe-á confiada a comissão "Verdade e Reconciliação", que tem por missão recensear todos os crimes cometidos desde 1948 sob o regime de apartheid. "Crimes contra a humanidade", cuja lista preenche as colunas do seu relatório, que classifica como a "enciclopédia do horror".Na geografia da segregação, não é grande a distância que separa a África da Ásia. Em ruptura com a sua ordem religiosa europeia, Madre Teresa torna-se indiana como os indianos e pobre como os pobres. Nos anos 40, é enviada para Calcutá, para um colégio de elite. Confrontada com a miséria de uma cidade com mais de cinco milhões de habitantes - e tal como Francisco de Assis ou Vicente de Paulo no seu tempo -, decide declarar guerra à pobreza e à miséria. Percorre os passeios e os bairros de lata onde se amontoam, às dezenas de milhares, seres humanos privados de tudo. Em 1952, no bairro popular de Kalighat, Madre Teresa abre a "missão do coração puro" (Nirmal Hriday), onde passa a acolher os moribundos. Outros "lares" se seguirão, para mendigos, doentes, leprosos, crianças abandonadas ou adolescentes saídos da prisão.Vêm juntar-se a ela outras irmãs, incluindo jovens da burguesia bengali. Madre Teresa pede às Missionárias da Caridade - a ordem indiana que fundou nos anos 50, hoje instalada numa centena de países - que renunciem a tudo. Aos votos clássicos de castidade, pobreza, obediência, ela acrescenta um quarto: "Servir com todo o coração e gratuitamente os mais pobres entre os pobres." Madre Teresa conduz as irmãs, por vezes com mão de ferro, nas "frentes" da fome, da doença, da solidão, da ignorância. "O pouco que damos torna-se infinito aos olhos de Deus." Esta mensagem dá a volta ao mundo. Madre Teresa envia-a aos políticos, aos intelectuais, aos responsáveis de todas as religiões.Da Índia aos países em guerra ou na base da escala, passando pelas tribunas oficiais - ONU, Casa Branca, Vaticano, júri do Nobel -, todos conhecem os olhos travessos, o rosto enrugado, a pequena silhueta envolta num eterno sari branco resplandecente e debruado a azul. Madre Teresa torna-se o símbolo mais venerado de uma tradição cristã de solidariedade concreta. Perturba aqueles que a tomam por heroína de uma caridade mediatizada, que a criticam por tratar das feridas em vez de atacar o mal e põem em causa a sua teologia do sofrimento, da pobreza redentora que aproxima de Jesus Cristo. Madre Teresa morre a 5 de Setembro de 1997. Menos ingénua do que se pensa, gostava de citar o provérbio: "Em vez de dares um peixe a quem tem fome, ensina-o a pescar." Mas acrescentava: "Aqueles que eu acolho nem sequer têm forças para segurar numa cana de pesca.""Eu vi, antes de retirarem as vestes aos condenados, o pastor Bonhoeffer ajoelhado diante do seu Deus, em intensa oração. A mais completa submissão, deixando transparecer a certeza de ser atendido, que este homem testemunhava tocou-me profundamente. No local da execução, rezou mais uma vez, depois subiu corajosamente as escadas da forca. A morte ocorreu em segundos. Em 50 anos de prática, nunca vi um homem morrer assim, completamente abandonado às mãos de Deus." O autor deste testemunho é o médico do campo de concentração de Flossenbürg (entre Nuremberga e a fronteira checa), que assiste, na madrugada de segunda-feira, 9 de Abril de 1945, ao enforcamento por alta traição do pastor protestante Dietrich Bonhoeffer, do almirante Wilhelm Canaris, ex-chefe da Abwehr (contra-espionagem), do general Karl Oster, do jurista militar Hans Sack, do capitão Ludwig Gehre, entre outros - todos eles implicados na tentativa de atentado contra Hitler, em 20 de Julho de 1944.Desde a subida ao poder dos nazis, em 30 de Janeiro de 1933, que Dietrich Bonhoeffer, jovem teólogo e pastor, de 27 anos, assume riscos inauditos. A 1 de Fevereiro, numa rádio berlinense, brinca com a palavra "Führer": "Se a imagem do 'chefe' [Führer] resvalar para a do sedutor [Verführer], o chefe e a sua função divinizar-se-ão numa caricatura de Deus." A sua resistência resume-se na rejeição da "autodivinização do poder". Dentro da sua própria Igreja, evangélica (luterana), Bonhoeffer luta contra aqueles que se submetem ou, até, que se comprometem com o regime. "Nós só temos um altar", declara, "o altar do Santíssimo, perante o qual todas as criaturas se devem ajoelhar. Quem pretender outra coisa não pode estar connosco na casa do Senhor." Fé e luta antinazi são, para ele, como dois dedos da mesma mão. Desde Abril de 1933 que Dietrich Bonhoeffer se insurge contra um projecto da sua Igreja que visa "expurgar" os membros de origem judaica. Juntamente com Martin Niemöller, cria uma liga dos pastores, incita os concidadãos a deixarem aquela Igreja oficial e funda, em Maio de 1934, a "Igreja Confessante" da Alemanha - um dos seus primeiros gestos será escrever um memorando a reivindicar a dissolução da Gestapo e o encerramento dos campos de concentração. Depois da Noite de Cristal (9 de Novembro de 1938), Bonhoeffer inventa esta expressão magistral: "Só os que gritam ao lado dos judeus têm direito a entoar cantos gregorianos."Bonhoeffer viaja pela Inglaterra e pelos Estados Unidos mas, apesar dos conselhos de prudência, regressa, em Julho de 1939, ao seu país. Aí, por intermédio de Hans von Dohnanyi, seu cunhado, liga-se a núcleos de resistentes que conspiram contra Hitler e consegue emprego na Abwehr, dirigida pelo almirante Canaris. Em Maio de 1942, em Estocolmo, Dietrich Bonhoeffer faz chegar às autoridades britânicas, por intermédio do seu amigo George Bell, bispo inglês, uma mensagem: a resistência está a elaborar um plano para suprimir o "Führer". Mas não recebe qualquer apoio. Em 5 de Abril de 1943, é preso na sua casa de Berlim e levado para a prisão militar de Tegel. Depois do atentado falhado de 20 de Julho de 1944, o inquérito instaurado procurará demonstrar a sua cumplicidade com os Stauffenberg, Goerdeler, Canaris e Oster que tentaram acabar com a vida do "Führer". O calvário dos últimos meses leva o pastor a uma cave do gabinete de segurança, na Prinz-Albert Strasse, em Berlim. Em seguida, a um abrigo blindado em Buchenwald. E, finalmente, ao sinistro campo de Flossenbürg, onde já tinham morrido milhares de resistentes.A sua fecundidade teológica mantém-se mesmo dentro das quatro paredes das penitenciárias nazis. As cartas que escreve nos campos de concentração, reunidas sob o título "Resistência e Submissão", fazem de Dietrich Bonhoeffer o profeta de um cristianismo moderno, despojado das vaidades históricas. Dá assistência aos companheiros de prisão condenados à morte, medita sobre a Bíblia nas celas minúsculas, celebra, em Buchenwald, o culto da Páscoa oito dias antes de ser enforcado. O cativeiro abre-lhe os olhos para a ausência de Deus na consciência dos homens. O homem moderno, escreve, renuncia a um "Deus ex machina", um Deus-muleta que tem resposta para tudo, que explica tudo, incluindo o inexplicável. Ora, a Revelação cristã baseia-se na ideia de que todos os homens são, por natureza, religiosos. Será que isto deixou de ter sentido?O cristianismo não pode continuar igual ao que era há 20 séculos. O mundo liberta-se de Deus, torna-se "irreligioso", "ímpio", repete Bonhoeffer. O ateísmo cresce. Deus morreu, declararam Nietzsche, Marx e Freud. Dietrich Bonhoeffer não se regozija nem se escandaliza. Começa a sonhar com um "mundo superior" e mais próximo do Deus da Bíblia, o dos seres fracos, sofredores, perseguidos. E também com uma Igreja que deixe de ser um refúgio da maldade dos homens, uma instituição de poder que procura preservar-se, para passar a ser um lugar de encontro vivo entre Deus e os homens, um mergulho no mundo, análogo ao de Jesus Cristo há 20 séculos.É Bonhoeffer quem inventa a expressão "cristianismo sem religião". Humanismo laico? "Horizontalismo" cristão? O teólogo alemão assassinado pelos nazis não ignora o mistério da relação "vertical" do homem com Deus. Não põe em causa nem a fé cristã nem a Igreja como tal, mas as formas sagradas ou as instituições que deixaram de ter significado para o homem moderno. Para ele, a preocupação da salvação pessoal - que atravessou os dois milénios da história cristã - deve dar lugar a um comprometimento autêntico e ético entre os homens.Fechou-se o círculo. No século I, Paulo de Tarso "liberta" a fé cristã da Lei judaica. No século XX, um pastor alemão antinazi, Dietrich Bonhoeffer, seguido por teólogos ou militantes na América, Ásia, África e Europa, afirma que, perante a angústia dos homens, o cristianismo deve ficar cada vez menos alheado do grito dos povos, dos humildes, dos pobres. E que só sobreviverá, na alvorada do seu terceiro milénio, se renunciar aos reflexos de identidade e se abrir, o mais que puder, a todos aqueles a quem São Paulo teria chamado "pagãos" modernos. * exclusivo PÚBLICO/"Le Monde"

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