O Oriente dos mártires

Com a conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453, o Oriente ortodoxo fica sob o jugo islâmico. A ortodoxia balcânica conhece o seu maior eclipse. A excepção é a Rússia, onde Moscovo se proclama a "Terceira Roma". Abre-se uma era de martírios, que culmina, na União Soviética, com a maior perseguição anti-religiosa da História. A cultura de vitimização ortodoxa é feita de todos estes traumas.

"Oh cidade, cabeça de todas as cidades! Oh cidade, centro das quatro partes do mundo! Oh cidade, glória dos cristãos e aniquilação dos bárbaros! Oh cidade, outrora paraíso voltado para o Ocidente." As lamentações do historiador Ducas, que assiste à queda de Constantinopla a 29 de Maio de 1453, exprimem o clima de humilhação que reina quando chegam as tropas do sultão Mehmet II. Os turcos havia muito que se tinham instalado no Kosovo, após a famosa batalha do Campo dos Melros (1389), e na Bulgária (1393). A sua chegada a Constantinopla é acolhida como uma doença mortífera, enviada por Deus para punir os bizantinos pelas suas lutas intestinas. Comparam-na a "uma peste que nos arrasta todos para a morte". A palavra peste é bem fraca para definir o que representam no imaginário de Bizâncio estes turcos, de quem, no século anterior, o imperador João VI, Cantacuzeno, dizia: "Eles têm prazer em matar e o mais doce dos seus ganhos é a captura de prisioneiros e a sua venda como escravos."De joelhos na igreja de Santa Sofia, segundo o relato do historiador Alain Ducellier, a população inteira reza ao anjo, que a lenda descreve como estando armado de um grande sabre e que, com o gume da sua lâmina, salvará de novo o império. Ou suplica a Deus que envie, no seu cavalo branco, um outro imperador lendário, Constantino V, o único que poderá fazer recuar o inimigo muçulmano. Quando o exército turco chega às portas da cidade, espera encontrar uma resistência de dezenas de milhares de homens. Mas apenas se lhe depara uma cidade desamparada, resignada, abatida. Dois dias de combates, durante os quais morre o último imperador, Constantino XI, chegam para que a "nova Roma" seja devastada pelo cortejo de pilhagens, profanações de igrejas e relíquias, massacres episódicos. Sensível à cultura grega, Mehmet II segura a mão de um dos seus homens, que, "em nome da fé", destrói o pavimento da Basílica de Santa Sofia. O sultão dá-lhe um golpe com a espada, lança-o para fora meio morto e proclama que a cidade, a partir de agora, é sua, que todos os monumentos lhe pertencem... Os homens também. Aos judeus e aos cristãos, anuncia que respeitará as suas crenças, que os deixará administrar as suas comunidades. Restabelece o patriarcado, apostrofando o primeiro titular do cargo, Gennadios Scholarios, com estas palavras: "Sê patriarca, preserva a nossa amizade e recebe todos os privilégios que possuíam os patriarcas teus predecessores." Aproveitando a confusão, o patriarca decide exercer o seu poder à maneira dos imperadores. Torna-se o "milet bachi", o chefe da nação cristã ("etnarca" em grego). É o começo de um compromisso: o patriarca é manipulado e torna-se, de facto, o responsável pela liquidação de um império cada vez mais subjugado.A islamização é progressiva, mas tenaz. A política do "milet" (comunidade) está longe de ser um modelo de tolerância. Apesar das promessas, Santa Sofia é confiscada e transformada em "Mesquita do Conquistador", e a Igreja dos Santos Apóstolos, o panteão dos imperadores, é destruída. Como obriga o direito muçulmano, os cristãos, que constituem o "rayah", ou seja, o "gado", têm de pagar todos os anos um pesadíssimo tributo por cabeça ("haradj"). Todo o sistema assenta na corrupção e no arbítrio. "Os sultões esmifram os seus paxás, que por sua vez esmifram os cristãos", diz Alexandre Schmemann. Os patriarcas tornaram-se marionetas nas mãos da administração muçulmana. No século XVIII, em 73 anos, sucedem-se no trono 48 patriarcas, enquanto se multiplicam as levas de crianças para serem transformadas em janissários [guardas], ao serviço exclusivo do sultão, cujas revoltas fazem regularmente derramar sangue.À excepção da Rússia, demasiado feliz por suceder a Bizâncio - Moscovo autoproclama-se a "Terceira Roma" -, todo o Oriente ortodoxo se encontra então sob o jugo islâmico. Atenas foi conquistada três anos depois de Constantinopla e o Pártenon, igreja cristã durante mil anos, foi igualmente transformado em mesquita. A Sérvia, desde 1459, a Bósnia, desde 1463, e o Egipto, desde 1517, estão ocupados pelos otomanos e defendem, como podem, a fé cristã.A ortodoxia balcânica conhece o seu maior eclipse. Durante meio milénio, na Grécia, Sérvia e Roménia, a cultura, a educação, a língua e os costumes destes países são ignorados, apagados do mapa. "Imaginem que, de Villon a Lamartine, se tivesse apagado toda a cultura francesa", observa Olivier Clément.A Europa fecha os olhos e serão necessárias as explosões nacionais do século XIX para que a ortodoxia, instigada pelo seu clero, entre em resistência. A insurreição contra o império otomano rebenta primeiro na Grécia. Os cristãos da Turquia e de Constantinopla sofrem represálias e voltam a pagar o tributo do martírio. Em 1821, no dia de Páscoa, Gregório V, o patriarca de Constantinopla, é enforcado pelos turcos na porta das traseiras da sua residência. Aos juízes que lhe pedem que renuncie à sua fé e desautorize os seus correligionários, ele responde: "Os vossos esforços são vãos. O patriarca dos cristãos morre cristão." Na manhã de Páscoa, celebra, uma última vez, a liturgia, exorta os cristãos à festa e à reconciliação e, segundo a tradição, distribui ovos aos fiéis. Antes de se deixar prender e conduzir perante os carrascos."Eh! Camarada, não tenhas medo, pega na tua arma/ Disparemos uma bala na santa Rússia/ Na Rússia dos bosques, na terra das cabanas, a terra dos traseiros grandes/ acabaram-se as cruzes, acabaram-se as cruzes." O poeta Alexandre Blok (1880-1921) canta assim o último calvário da ortodoxia, o da Rússia.Na noite de 12 para 13 de Agosto de 1922, Benjamim Kazanski, bispo de Petrogrado (São Petersburgo), morre fuzilado pelas balas de soldados soviéticos. O "concílio" que a Igreja Ortodoxa da Rússia convocou em 1917, mesmo antes de a revolução ter estalado, restabeleceu o patriarcado de Moscovo (que Pedro, o Grande, abolira) e a eleição popular dos bispos. Amado pelo povo, incluindo as camadas operárias, Benjamim foi reconduzido no seu cargo. Bispo da cidade da revolução, não reconhece o novo governo dos sovietes, mas mostra-se leal, chegando a classificar os bolcheviques de "publicanos" ou "gentios" a quem, como São Paulo, ele quer anunciar o Evangelho!No início de 1922, a guerra civil, a fome e a resistência dos camponeses à colectivização das terras provocam milhares de mortes. Nas vésperas da revolução, o patriarca Tikhon da Rússia excomungou "os inimigos da Verdade de Cristo", mas recusou dar a bênção aos contra-revolucionários e ao exército "branco". Perante a catástrofe alimentar, ele oferece ao Estado os tesouros e riquezas de todas as igrejas - à excepção dos objectos utilizados na liturgia - para que o país possa comprar alimentos ao estrangeiro.Novo senhor do país, Lenine inventa então um estratagema. Ordena a confiscação de todos os objectos de culto. O que provoca o protesto de todo o clero, mas também vai fazer chover sobre os bispos e os padres as acusações de que "fazem o povo passar fome". De facto, estalam confrontos sangrentos entre o Exército Vermelho e a população hostil à confiscação das relíquias e outros objectos sagrados. São executados centenas de eclesiásticos e milhares são deportados para o campo de Solovki. Nesta altura, numa circular enviada ao Politburo (revelada 50 anos depois no relatório secreto do comité central sobre o estado da Igreja russa), Lenine ordena aos camaradas que "tirem partido da vaga de fome para fuzilar o maior número possível de padres, a fim de que lhes sirva de lição durante décadas"!Em Julho de 1922, o bispo Benjamim de Petrogardo é preso e acusado por se opor à confiscação de objectos litúrgicos. Um argumento falacioso: a 10 de Abril, ele publicara um apelo, reproduzido pelo jornal... "Pravda", onde pedia a todos os fiéis que entregassem os objectos às autoridades civis. A confiscação tinha-se passado sem incidentes! Num processo falseado, ele comparecia com mais 86 co-acusados. Em todas as audiências, mal chegava ao tribunal, os fiéis prostravam-se aos seus pés, apesar das brutalidades policiais, e o bispo benzia-os. É "um santo", alega o seu advogado judeu, Gurovitch. No tribunal, ele força a admiração, procura desculpar os que estão no banco dos réus juntamente consigo, a ponto de o juiz-presidente se ver obrigado a gritar-lhe: "Está sempre a falar dos outros. O tribunal gostaria de ouvir o que tem a dizer de si."O bispo de Petrogrado dá-lhe a seguinte resposta: "Ignoro o que me reserva a sua sentença, a vida ou a morte. Mas seja qual for o veredicto, é com fervor que eu elevo os olhos ao Céu e que faço sobre mim o sinal da cruz, dizendo: 'Glória a Ti por tudo, Senhor nosso Deus.'" No dia 15 de Julho de 1922, Benjamim de Petrogrado é condenado à morte com outros nove acusados. Seis vêem a pena reduzida a prisão perpétua. Os restantes três - incluindo o bispo - são fuzilados na noite de 12 para 13 de Agosto.Como Benjamim de Petrogrado, durante esse ano de 1922, cerca de 2700 padres e bispos, 2000 monges, 3400 religiosas foram executados. É uma das páginas mais negras da revolução bolchevique. Segundo relata Olivier Clément, nessa época os santuários são profanados, os ícones espezinhados, padres, bispos, fiéis são fuzilados, empalados, fervidos em água! "Que Deus vos perdoe!", grita o bispo Vladimiro de Kiev no momento de ser fuzilado. A outro mártir, o professor do seminário de Voronej, Nectaire Ivanov, partiram-lhe as pernas e os braços, enfiaram-lhe no corpo bocados de madeira e obrigaram-no a "comungar" com chumbo fundido na boca. Antes de morrer, arranjou forças para se lembrar da fórmula bíblica: "Senhor, deixa agora ir o teu servo em paz."De 1917 a 1941, foram liquidados 600 bispos, 40 mil padres, 120 mil monges e monjas. Pelo menos 75 mil locais de culto foram destruídos até aos anos 60, já com Khrutchov. É a maior perseguição anti-religiosa da História, todos os regimes incluídos. Em 70 anos, fez mais vítimas do que Nero, Diocleciano e outros imperadores sanguinários em três séculos.No Império Romano transferido para Bizâncio, nos países eslavos, na Rússia de Ivan, o Terrível, bem como na dos "czares vermelhos", no Próximo Oriente, berço dos três monoteísmos e teatro de todos os confrontos, a história do cristianismo é a de uma longa ladainha de sofrimentos. A memória ortodoxa guarda, como cal viva sobre uma chaga, a recordação de todos estes traumas.Nas volutas de incenso destas igrejas, sob o ouro das suas cúpulas e das suas iconóstases, tomaríamos facilmente a ortodoxia como uma religião de museu. É verdade que, à força de ter sido maltratada pela História, acabou por lhe voltar as costas e por se refugiar na luz dos círios, na calorosa bondade dos seus cânticos e dos seus mosteiros. Ela sobreviveu graças à sua tradição mística e monástica, graças ao seu património litúrgico e filosófico.Nenhuma outra religião está tão associada ao peso das consciências nacionais. Ainda hoje, na convulsão dos Balcãs, da Ásia Menor ou Central, no Médio Oriente, manipulada, instrumentalizada, ela é cúmplice de nacionalismos arcaicos, de nostalgias expansionistas ou de sonhos de restauração. Não se rompe assim tão facilmente com uma história que começou por três séculos de perseguições e por uma aliança entre a Igreja e um império que foi mais frequentemente sinónimo de escravidão.Dever-se-ia ter aberto uma página nova depois da desagregação do império otomano ou, mais recentemente, do império soviético. Mas o ressurgimento dos nacionalismos, a escalada dos islamismos, o enfraquecimento - que o Ocidente avalia mal - das igrejas perseguidas durante a longa ocupação muçulmana e as ditaduras comunistas despertaram tensões e utopias. Um recalcamento religioso serve, uma vez mais, de brasa para atear os confrontos étnicos. Na ortodoxia, tem-se muitas vezes uma grande tentação de opor as "trevas" do mundo exterior à "luz" interior. Mas uma tal visão apocalíptica é sempre fonte de perigos.* exclusivo PÚBLICO/"Le Monde"Amanhã: O papa e o eremita vão para a guerra santa

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