Um teatro elitista para todos

O legado de Giorgio Strehler, o ex-encenador e director do Piccolo di Milano, é a grande surpresa do Festival de Almada deste ano que será marcado ainda pela presença mítica do actor "Arlequim", Ferrucio Soleri. Um certame que mostrará 58 espectáculos de todos os cantos do mundo e que terá como grande homenageada a ensaísta Luciana Stegagno Picchio.

"Este é o melhor festival de sempre". O encenador Joaquim Benite repete esta frase, todos os anos, nas vésperas da abertura do Festival Internacional de Teatro de Almada de que é director. Mas este ano - o festival efectua-se entre 4 e18 de Julho- tem ainda mais razões de sobra para estar satisfeito. Bastaria, como ontem anunciou Benite em Almada, a presença do Piccolo Teatro di Milano, com encenações de Giorgio Strehler, que traz no elenco o fabuloso actor Ferrucio Soleri no papel de "Arlequim", a presença do Teatro Lliure de Barcelona com um Beckett encenado por Lluis Pasqual ou do grupo chileno La Troppa, com uma adaptação do romance "O Grande Caderno" de Agota Kristof, para este festival continuar a ser sinalizado como o melhor encontro internacional de teatro em Portugal.Um teatro que, sublinha Joaquim Benite, citando o encenador tunisino Fadhel Jaibi, deve ser "um teatro elitista para todos". Aliás, da Tunísia virá a companhia deste encenador e autor já conhecido do público do festival, "Familia", com a peça "Soirée Particulière". O seu espectáculo "Les Amoureux du Café Desert", de 1977, está ainda na memória de muitos espectadores.Para além das companhias citadas, vai estar presente no festival o grupo brasileiro Circo Branco, com a peça "Auto da Paixão" de Romero Andrade Lima, um criador que embarca o público no seu universo escultural para lhe relatar a história de Cristo. Esta companhia integra com a chilena La Troppa a programação oficial deste ano do Festival d'Avignon. De Espanha vem o Teatro del Noctámbulo, para apresentar "Pedro y el Capitan" de Mario Benedetti, numa encenação de Francisco Carrillo, peça escolhida no ano passado pelo público e pela crítica para ser o espectáculo de honra. Trata-se de uma conversa entre um torturador e um torturado, uma osmose que permite uma perturbante incursão pela psicologia do torturador, um trajecto que passa pela moral, pela coragem, pela traição e pela cobardia.A França é representada pela Companhia Alain Bertrand, de Grenoble, com a peça "Maure à Venise", numa encenação de Carlo Boso, um discípulo de Strehler, que foi actor no Piccolo. Esta peça é baseada num argumento da Commedia dell'Arte para o "Mercador de Veneza", do século XVI, e que foi também aproveitado por Shakespeare. Deste país, vem também o espectáculo "Mattis et les Oiseaux" de Tarjei Vesaas, encenada por Adel Hakim, uma co-produção do Griffon Théâtre de Nantes e des Scènes National de Saint-Brieuc e de Saint-Nazaire.Para além do Piccolo, Itália estará presente com "Giovanni d'Annunzio", um espectáculo de Tomasella Calvisi e Franco di Francescantonio, de Florença, que é uma adaptação livre do romance de d'Annunzio, "Giovanni Episcopo", e que fala das contradições do fim de século (1891), e com "La Grama Vita de Joe Lobotomi", pelos Manicomics de Piacenza, uma criação e interpretação de Mauro Mozzani e Rolando Tarquini, sobre "o interior" e o "exterior" de um homem vulgar. Virão também participações da América Latina, África e Ásia, com destaque para o Teatro Arena do México, a Companhia Agitada Gang de Paraíba (Brasil) ou o grupo El Patron Vasquez, de Buenos Aires, que traz a peça "Dos Personas Diferentes Dicen Hace Buen Tiempo", inspirada no escritor Raymond Carver, em que as personagens vivem num universo desolado e patético. Saliente-se também a presença do autor e encenador Richard Demarcy que apresentará "Ubu Libertado", a partir de Alfred Jarry, com um grupo de actores da África Central de um projecto chamado Sanza Théâtre.O festival, como em anos anteriores, não se resume aos espectáculos - 42 produções de 36 companhias, 20 estrangeiras e 16 portuguesas, num total de 58 espectáculos durante 16 dias, para um orçamento de 85 mil contos -, apresentando, paralelamente, colóquios, exposições e cursos de formação, estes orientados por Jean-Guy Lecat sobre técnica teatral e por Fadhel Jairi para jovens actores.Este anos haverá duas homenagens no festival. Uma dedicada a Giorgio Strehler, a grande figura do Piccolo di Milano, que morreu em Dezembro de 1977, a quem são dedicados os três espectáculos do Piccolo, dois debates e uma exposição. A outra, dedicada à ensaista e professora universitária Luciana Stegagno Picchio, que foi a personalidade escolhida este ano. Luciana Picchio, uma das investigadoras estrangeiras a quem a literatura e o teatro portugueses mais devem, é autora, entre outras obras, da "História do Teatro Português", editada em 1969 pela já desaparecida editora Portugália.Este festival foi financiado, entre outras entidades, pelo Ministério da Cultura, Câmara de Almada e Região de Turismo de Setúbal-Costa Azul. Vários dos espectáculos são apresentados em parceria com o Teatro da Trindade, Centro Cultural de Belém, Culturgest, Cena Lusófona, Fundação do Oriente, bem como os Festivais d'Avignon e Barcelona.

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