O homem da Ponte Maria Pia

Aquando das comemorações do 75º aniversário da Ponte Maria Pia, o engº Frederico Abragão publicou um conjunto de artigos sob o título "Os homens da Ponte Maria Pia", associando três nomes à realização daquele notável empreendimento: Manuel Afonso Espregueira, que na sua qualidade de director-geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro resolveu definitivamente o problema do atravessamento do rio Douro pela linha férrea do Norte; Pedro Inácio Lopes, responsável pela adopção da solução de atravessamento do rio Douro defronte do antigo seminário, e pela consequente elaboração do correspondente anteprojecto; e Gustave Eiffel, um nome que, tal como foi então afirmado, despertava, desde logo, no nosso espírito, duas imagens: uma, a da imponente torre do Campo de Marte, em Paris; outra, perto de nós, a da Ponte Maria Pia, sobre o Douro.Embora, nessa ocasião, tivesse sido salientado que a Ponte fora projectada pelos engenheiros Gustave Eiffel e Théophile Seyrig, alusão que, aliás, se encontra frequentemente noutras referências relativas àquela obra, nunca se esclareceu com precisão qual o contributo que cada um destes dois engenheiros prestou ao nível da concepção do projecto, tendo o nome de Gustave Eiffel, pela notoriedade que quase de imediato adquiriu, ofuscado quase por completo o de Théophile Seyrig, ao ponto de hoje em dia se conferir àquele, em exclusivo, e quanto a nós incorrectamente, a autoria do projecto da Ponte.No momento em que a Ponte Maria Pia vai ser alvo de uma significativa homenagem - o descerramento da placa com a sua classificação como "International Civil Engineering Historic Landmark", atribuída em 1990 pela American Society of Civil Engineers - numa cerimónia que se vai realizar no próximo dia 17 em colaboração com a Ordem dos Engenheiros e as autarquias das duas margens, é oportuno esclarecer convenientemente estes aspectos relacionados com a história da sua construção, nomedamente sobre a participação que nela tiveram G. Eiffel e Th. Seyrig.Numa anterior "Memória da Cidade" já tivemos oportunidade de chamar a atenção para a importância de Th. Seyrig, a quem se deve o estabelecimento dos cálculos e o projecto do grande arco parabólico, o qual constituiu o elemento mais inovador e revolucionário daquela estrutura. O que, desta vez, pretendemos apresentar são novos dados sobre a biografia de Théophile Seyrig, que vieram entretanto enriquecer o conhecimento sobre a actividade deste engenheiro. Estes novos elementos resultaram de um trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Prof. Manuel de Azeredo, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, e foram divulgados no seu estudo sobre as pontes do Douro. É nesse trabalho que nos baseamos para aqui apresentar alguns dos aspectos desconhecidos da biografia de Théophile Seyrig. Continuam, no entanto, por averiguar outros traços da sua vida pessoal e profissional, não se conhecendo igualmente qualquer fotografia sua.Contrariamente ao que se pensava, Th. Seyrig, de seu nome completo François Gustave Théophile Seyrig não nasceu em França, mas sim na Prússia, mais precisamente em Berlim, em 19 de Fevereiro de 1843. Aos 18 anos prestou provas de admissão à École Centrale des Arts et Manufactures, de Paris, tendo obtido uma elevada classificação, o que lhe permitiu cursar aquele prestigiado estabelecimento de ensino. Durante os três anos que frequentou a École Centrale des Arts et Manufactures, Seyrig obteve excelentes classificações, tendo conquistado sempre a menção de "très bon élève", concluindo o curso de Engenharia, "spécialité mécanicien", em 1864, embora - um aspecto a esclarecer no futuro - o ano de 1865 surja também como a data de conclusão dos estudos.Em 1869, Théophile Seyrig e Gustave Eiffel associam-se, fundando a sociedade "Casa Eiffel et Cie", numa frutuosa colaboração que irá durar uma década, quando insanáveis divergências se manifestam abertamente entre os dois engenheiros, tendo cessado a partir de então a colaboração de Seyrig naquela empresa. Importa sublinhar que a razão das desinteligências entre os dois homens não se deveu apenas ao facto de Th. Seyrig se considerar prejudicado no acordo que tinha estabelecido com G. Eiffel.Pala além das questões financeiras - entre outros aspectos prejudiciais a Seyrig, o salário que Eiffel tinha atribuído a si próprio na empresa que ambos tinham constituído era o triplo do de Seyrig... - o essencial das divergências tinha a ver com todo o processo de concepção da Ponte Maria Pia, nomeadamente com o facto de Th. Seyrig não ver reconhecido o seu papel decisivo na concepção do grande arco metálico, surgindo sempre a sua participação numa posição secundária ou "escondida" sob a fórmula de "MM. G. Eiffel et Cie." ou "G. Eiffel e o seu colaborador Th. Seyrig", entre outras. Significativamente, logo após a ruptura entre os dois homens, G. Eiffel apressou-se a publicar a brochura "Notice sur le pont de Porto", reivindicando a autoria da sua concepção e, simultâneamente, legando para a posteridade um documento que pudesse também vir a cumprir esse fim.Após a sua saída da Casa Eiffel, em 1879, Th. Seyrig aparece como administrador-delegado de uma empresa sua rival e concorrente, a Société de Construction de Willebroeck, de Bruxelas. A sua primeira iniciativa foi a de se apresentar, ainda nesse ano, ao concurso para a construção da Ponte de Luís I, no qual ambas as empresas apresentaram projectos, tendo a Société de Construction de Willebroeck, precisamente com base num projecto de Th. Seyrig, vencido toda a concorrência.Nos anos seguintes, Seyrig concebeu e construiu inúmeras obras de engenharia, ao serviço de outras empresas, como as sociedades d'Anzin, d'Haumont e de Cockeril. Data deste período o seu projecto para a ponte sobre o rio Tisza, em Szeged, na Hungria, a fim de substituir a que tinha sido destruída por uma catastrófica cheia em 1879 - que arrasou totalmente a parte antiga daquela cidade -, o qual obteve um prémio no ano seguinte. Encontram-se também outras obras de Th. Seyrig em Espanha, na Bélgica e na Etiópia, embora não tenha sido ainda possível identificá-las.Ao longo da sua vida profissional, Seyrig escreveu várias monografias sobre pontes - um destes trabalhos, intitulado "As pontes metálicas. Trinta anos de progresso na construção de pontes metálicas" foi publicado entre nós, em 1899, na "Revista de Obras Públicas e Minas" -, um tratado de estática gráfica, e juntamente com um outro autor dissertou sobre a evolução do mundo e o destino das estrelas, publicando vários livros sobres estes temas. Estes últimos apresentam-nos uma outra sua faceta que, precisamente, o trabalho do prof. Manuel de Azeredo veio revelar, a qual se prende com o seu interesse pela arqueologia e pela astronomia.Théophile Seyrig integrou o "Comité Supérieur de Redaction" da prestigiada revista "Le Génie Civil", tendo sido nomeado, em 1881, membro do "Comité de la Société des Ingénieurs Civils", na qual participou activamente, tendo sido um dos animadores das discussões então travadas sobre o problema da "fadiga dos materiais".Como já tivemos oportunidade de salientar, é hoje impossível determinar qual o grau de participação de todos os que directa ou indirectamente estiveram ligados à concepção e construção de uma obra da envergadura da Ponte Maria Pia. Certamente que Gustave Eiffel desempenhou um papel importante, nomeadamente na sua preocupação por inovar em todos os domínios, de que aquela Ponte constitui um excelente exemplo. Para além disso, como responsável máximo da empresa, era ele o director do projecto e era em nome da empresa (que ostentava o seu nome) que o mesmo era apresentado. Desempenharam também um papel de relevo Emile Nouguier, autor do sistema de montagem do grande arco metálico, Joseph Collin (representante em Portugal da Casa Eiffel) e Marcele Angevere, que dirigiram os trabalhos de construção da Ponte, só para referir alguns dos nomes mais significativos. Como sucedia naquela época com inúmeras obras desta envergadura, a Ponte Maria Pia constituiu uma obra colectiva, não se podendo contudo deixar de sublinhar que o elemento inovador na sua concepção - o grande arco metálico - foi concebido por Théophile Seyrig, e, por isso mesmo, é ele quem deve auferir do reconhecimento dos méritos desse contributo, e ficar associado à obra que, mais do que qualquer outro, ajudou a criar.

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