A terceira via é aceitar que o mundo mudou

A reforma é uma criação do Estado previdência, tal como é a dependência dos reformados. Porque é que havemos de aceitar as coisas como definitivas? Para Anthony Giddens, considerado por muitos o "guru" de Tony Blair, a "terceira via" é sobretudo a capacidade de fazer perguntas radicais e encontrar também respostas radicais para um mundo que mudou completamente. Um mundo onde a globalização e a interdependência devem ser aceites pela esquerda.

Autor de uma obra polémica que crismou o novo trabalhismo de Tony Blair - "para uma terceira via", já traduzida em Portugal -, o sociólogo britânico Anthony Giddens está no centro de uma polémica que atravessa toda a esquerda europeia sobre o seu próprio futuro na era da globalização e da rendição à eficiência dos mercados. Veio a Portugal recentemente a convite do Presidente da República para ajudar a debater o envelhecimento da população nas sociedades modernas e os inúmeros problemas que o facto coloca. Giddens defende, na entrevista que deu ao PÚBLICO, que são as mudanças de natureza das próprias instituições em que assentam as nossas sociedades que impõem uma mudança radical da esquerda. Mudou a natureza da família, do trabalho, da economia, do Estado, da soberania, diz Giddens. Para concluir que a esquerda não pode continuar a defender as mesmas instituições que criou em condições completamente distintas. A "terceira via" é para ele um sinal de que é preciso encontrar uma outra forma de radicalismo. Os dois anos do Governo de Tony Blair, a entrada da libra no euro, a guerra no Kosovo e o futuro da Europa foram os grandes temas abordados nesta entrevista. PÚBLICO - O seu livro "A Terceira Via" tem sido objecto de algumas críticas entre a esquerda social-democrata, pelo menos em Portugal. Essas críticas referem que se trata apenas de um conceito destinado a encobrir o vazio do pragmatismo ou mesmo da rendição da esquerda às políticas neoliberais. Como responde a estas críticas?Anthony Giddens - Em primeiro lugar, tem de reconhecer-se que o debate sobre a "terceira via" é realmente um debate global, não apenas um debate europeu. Por toda a parte as pessoas estão a debater o tipo de questões que levanto nesse livro - posso dizer que, de certa forma, estão a debater este livro, que é um "best-seller" na Coreia, por exemplo. O que me parece é que há qualquer coisa de importante a acontecer e que se traduz numa mudança de paradigma do próprio debate. Uma das razões pelas quais parte da esquerda europeia se sente desconfortável com as ideias que apresento está no próprio termo "terceira via". Em alguns países europeus, esse termo tem uma história que não é muito atraente. Foi utilizado, por exemplo, pela extrema-direita nos anos vinte. Mas penso que essa reacção resulta de um mal-entendido. As políticas da "terceira via" não são uma tentativa para encontrar o caminho entre, por um lado, a globalização dos mercados e, por outro, o velho socialismo. É, pelo contrário, uma tentativa de descobrir como se adaptam os valores do centro-esquerda a um mundo em profunda mudança. E, em boa medida, se a questão de saber se se está ou não em desacordo com ela depende de se aceitar ou não que o mundo mudou completamente. Eu penso que mudou. Mudou a natureza da família, do trabalho, da economia, do Estado-nação, da soberania. Todas estas instituições estão a sofrer os efeitos de um mundo global e de uma economia electrónica global. Ora, não podemos adaptar-nos a estas novas coisas mantendo-nos fiéis às velhas ideias da esquerda. Não há hoje nenhuma instituição que não esteja a ser posta em causa por estas mudanças. Chamo-lhes "instituições-conchas" porque todas elas foram criadas em condições que deixaram de existir. Radicalismo significa olhar para a forma como podemos reconstruir essas instituições. Radicalismo, para mim, não significa apenas limitarmo-nos à divisão habitual entre esquerda e direita. Continuo a pensar que essa divisão ainda é importante, mas é um erro tentar forçar cada debate político a encaixar nesta divisão. Mas isso não é o mesmo que adoptar o modelo americano, porque não queremos aquela espécie de desigualdade. O nosso problema, no Reino Unido, é demasiada desigualdade em comparação com os alemães, por exemplo. Para termos uma nova abordagem da justiça social temos de levar em conta estas duas questões. É sobre isto que é a "terceira via". O que tentamos fazer na Europa é criar uma nova forma de governância que é verdadeiramente cosmopolita. Por isso a União Europeia é tão importante, constituindo hoje uma espécie de experiência pioneira para todo o mundo. Completamente diferente das Nações Unidas, que representam a organização dos Estados e se baseiam no princípio inalienável da soberania nacional. A UE é uma tentativa para os Estados abandonarem a soberania, não a favor de um super-Estado mas a favor de uma realidade descentralizada que é capaz de reconhecer a diversidade cultural e regional. O que se passa no Kosovo é o confronto entre o nacionalismo místico e territorial do velho mundo, como aquele que levou a Europa a duas guerras mundiais, e um novo estilo de cosmopolitismo em que as fronteiras e os territórios já não interessam tanto, em que podemos ser ao mesmo tempo ingleses, britânicos e europeus sem que isso nos levante qualquer problema. A UE é o instrumento mais importante que temos para agir perante todas estas mudanças, mesmo que tenhamos que reconhecer que é também uma "instituição-concha", da guerra fria, a precisar de muitas reformas. Quanto ao Governo Blair, penso que as coisas estão a andar bem e que eles mostraram que o radicalismo não tem de ser necessariamente da velha esquerda.Porque a verdade é que uma das coisas mais radicais que se fizeram no Reino Unido aconteceu exactamente na semana passada: a devolução de poderes à Escócia e ao País de Gales. Apesar das inúmeras dificuldades, também foi conseguido uma acordo de paz na Irlanda do Norte. Um acordo que, por acaso, reflecte tudo aquilo de que temos estado a falar. A razão pela qual ele foi possível está exactamente na coexistência de várias soberanias, impensável há uma geração. Pode ser-se da Irlanda do Norte, da Irlanda, do Reino Unido e da Europa ao mesmo tempo. Do ponto de vista económico, o governo também fez um bom trabalho. Havia, como se lembra, uma forte convicção de que a economia britânica ia em direcção à recessão. Isso não aconteceu. O que vemos são novas divisões na cena política e novos arranjos e alinhamentos em resposta às novas circunstâncias. Há cada vez mais questões em que a divisão entre direita e esquerda não faz sentido e não há razão para que os partidos de centro-esquerda e de centro-direita não cooperem para resolvê-las - para criar empregos, por exemplo. Penso que devemos, sempre que for possível, procurar consensos em que assentem políticas de mudança, radicais, mas razoáveis. Mas também há o facto de Margaret Thatcher ter sido muito eficaz em virar a opinião pública britânica contra a Europa e o euro. E o Governo comprometeu-se com um referendo que tem necessariamente de ganhar. Mas devo dizer-lhe que podemos chegar lá mais depressa do que pensamos. Basta que a libra continue a valorizar-se muito em relação ao euro, e uma das grandes realidades a que temos de prestar atenção é ao papel dos mercados financeiros. Mas continuo a pensar que continua a ser muito importante manter as nações unidas - só que que a devolução serve este objectivo. As nações têm ainda uma função civilizadora muito importante.

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