Portugal sem título

Uma sequência calculada três séries de trabalhos apresenta em Lisboa a obra mais recente de Paula Rego. Cada uma das séries aborda realidades diversas mas entre todas elas estabelece-se uma intensa e dramática rede de efeitos e reflexos. Paula Rego questiona a estabilidade de todos os estatutos sociais, históricos e sexuais: o lugar do masculino e do feminino, a persistência de atavismos morais perversos, o abuso das fragilidades por parte de um poder cego que nunca é claramente figurado. O trabalho centra-se, de novo, em Portugal.

Uma mulher de espada erguida como um anjo vingador enfrenta um tríptico onde três mulheres muito diversas se contorcem num esforço de dor, quase abstracto. De negro e dourado, como uma grande pintura barroca, ela está ali não para as castigar mas para combater por elas. "Pode ser também um anjo da guarda", diz Paula Rego ao PÚBLICO, e recorda o facto de, originalmente, em Junho de 1998, a pintura ter estado exposta ao lado de pinturas espanholas do século XVII, Murillo e Velásquez, na Dullwhich Gallery, em Londres. Na Gulbenkian, o Museu do Centro de Arte Moderna apresenta, a partir de dia 18 deste mês, duas diferentes séries de trabalhos, "O Crime do Padre Amaro" (ao qual pertence "O Anjo") e "Sem Título" e os respectivos estudos. Ambas as séries são pinturas a pastel de óleo sobre papel porque "a pastel eu desenho e é de desenhar que eu gosto. Assim é tudo feito à mão; o pincel afasta-me a mão da imagem e o acrílico é uma coisa morta". Na galeria 111, em Lisboa, e na sua congénere do Porto, encontram-se já em exposição as gravuras da série "A Cruzada das Crianças". A violência goyesca destas crianças empenhadas na prática e no sofrimento dos horrores da guerra reduz-se a nada perante a fragilidade das mulheres ajoelhadas em sofrimento na série de pinturas que significativamente Paula Rego designa como sendo "Sem Título". De igual modo, a violência compositiva e a denúncia sexista presente em "O Crime do Padre Amaro" dilui-se face às mesmas mulheres brutalizadas pela revelação do seu acto secreto de abortar.Ao reler "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queiroz, a pintora questionou o estatuto e a hierarquia do masculino e do feminino. "Sem título", é uma violenta série de pinturas onde coloca a questão do aborto clandestino, uma questão já implícita na série queiroziana. Nas gravuras, "A Cruzada das Crianças", Paula Rego regressa à história e à lenda. Ilustrando livremente factos relacionados com a utilização de menores nas lutas medievais pela reconquista de Jerusalém a pintora convoca os factos recentes das crianças usadas nas guerras africanas e asiáticas. Um homem, num ambiente provinciano, corrompe a sua missão de ministro de Deus, seduz e abandona na morte uma jovem conduzindo também à morte o filho ilegítimo de ambos. As mulheres, jovens e menos jovens, colegiais e trabalhadoras, de boas famílias ou de enorme pobreza, obrigadas a abortar por imperativos sociais e morais, igualizam-se, em absoluta solidão, no drama e na humilhação do acto clandestino que praticam e onde arriscam a vida. As crianças, capazes de matar cruelmente oferecem, por sua vez à orgia da morte, os seus corpos frágeis. Assim nos revela e nos coloca Paula Rego perante três idades ou três estatutos da condição humana. Depois de uma série marcada pela fundamentação literária, pela encenação de grupos humanos e pelo diálogo explícito dos sexos, Paula Rego expõe a absoluta solidão das mulheres, sozinhas com o seu corpo, com a sua culpa social. As crianças guerreiras são apenas outra imagem etária, outra etapa cronológica dessa sucessão caótica de desacertos entre o Bem e o Mal, entidades que sempre se degladiam nas suas obras. No seu conjunto, as recentes séries constituem novas estações de um inferno demasiado humano.Um dos aspectos fundamentais dos últimos trabalhos de Paula Rego é o regresso às temáticas portuguesas. A sua pintura, por questões que poderíamos considerar de "estilo" ou de linguagem, mas também por recepção crítica, museológica e comercial, integra-se cada vez mais na lógica da pintura britânica. Mas, ao mesmo tempo, confirma o seu enraizamento nas memórias portuguesas da autora. "Onde é que eu vou situar esta cena que quero pintar? Só posso situá-la no tempo da minha infância no Estoril ou nos anos 50, quando vivemos na Ericeira!", insiste Paula Rego. Uma pintura mais antiga, "A Dança", que os ingleses "acham muito britânica é toda pensada na Ericeira: aquelas pessoas e fatos e cenários...", conclui Paula Rego.Estamos perante o que poderíamos considerar uma reflexão ensaística dirigida de novo sobre Portugal. "Os meus temas nunca foram outra coisa". Nos anos 60 e 70 havia uma intenção de "manifesto" na sua pintura: "Nesse tempo era por causa do Salazar, eram coisas contra o Salazar. Tudo era político antigamente." Nos anos 80, apesar de serem recorrentemente portuguesas as fontes e as histórias (para além dos modelos) das suas pinturas, os temas centravam-se numa forte subjectividade, em questões da sua vida pessoal ou em glosas a temas universais, como a ópera. "Aí a política era pessoal", classifica ela. E agora? "Agora é tudo outra vez político", diz Paula Rego. "O Crime" é, segundo ela, "sobre como o Portugal de oitocentos se prolongou até ao meu tempo de jovem. É uma crítica mas é também uma história de amor. Não condeno o padre, ele é fruto do seu tempo. Há homens assim, mesmo sem serem padres..."A série suscitada pela derrota da lei de interrupção voluntária da gravidez é, pelo contrário, um trabalho sobre a actualidade. "Eu sei do que é que estou a falar. Eu sei dessas coisas. Eu via a miséria das mulheres da Ericeira", recorda. "É sobre coisas que temos que continuar a fazer às escondidas, como sempre em Portugal. Mas é melhor fazer que não fazer!"Paula Rego regressa, portanto, a Portugal, dominando já na totalidade as referências renascentistas do espaço e da pintura de modelo a que regressou lentamente ao longo desta década. Assim, um dos outros elementos fundamentais da sua pintura é a especificidade da composição das imagens. O tratamento do espaço e o estatuto das personagens constituem o centro dos esforços da pintora na transmissão da sua mensagem. Em "O Crime do Padre Amaro", os espaços desarticulam-se e multiplicam-se e os espelhos são elementos decisivos. Mas "a série dedicada ao aborto contém os quadros mais formais e mais clássicos que eu alguma vez fiz".O ponto de ancoragem das personagens é, em geral, criado pelos adereços de cada pintura. Um conjunto de objectos, por vezes evidentes, por vezes insólitos, fixam a acção e o olhar e subvertem frequentemente o sentido literal de cada cena. Um búzio, um porquinho mealheiro, uma malga de cerâmica, um balde de zinco, "de que a Lila, a minha modelo mais frequente e preferida, se lembrou e mandou vir da terra, em Viseu!", multiplicam-se nas pinturas de ambas as séries. No entanto, nas pinturas de "Sem título", quase não há objectos excedentes: apenas as camas e cadeiras onde se apoiam, os panos de que se cobrem e os baldes, alguidares e bacios onde se sentam. A dureza é, portanto, maior. A ausência de sangue, que se esperaria ver devido ao tema, é outra modalidade para firmar um silêncio maior. "Os modelos desta vez são muitos, a Lila, a minha filha mas também alunas minhas e outras mulheres. Foi muito difícil: as posições e o tema eram muito violentos. Eu dizia-lhes de que se tratava e elas colaboravam". "O quadro que me agrada mais é este, o do corpete roxo. É aquele onde a posição do corpo é mais dura, onde há mais caos, mais dor." A mulher debruçada sobra a cama está sentada num bacio de esmalte, de costas para o espetador. "Aquele parece mais simples" - é quase uma menina e está apenas deitada no chão agarrando uma almofada. "Mas repare na cadeira verde com o xaile. Parece estar ali por acaso mas é a mãe. A cadeira é a mãe a dominá-la, coitada." No final de um percurso entrecortado com os estudos, de recorte perfeitamente clássico, desenhos de pormenor e de conjunto sobre esquadrias tradicionais, está a figura da parteira. "Esta é uma mulher boa, é uma figura de bem, faz o que pode para ajudar as mulheres. Esta não é má".

Sugerir correcção