O funeral de um livro de horas

O "Livro de Horas de D. Manuel", uma das obras paradigmáticas da iluminura em Portugal, afinal não foi encomendado pelo rei D. Manuel. A tese, de Vasco Graça Moura, mostra também que o livro esconde um complexo programa iconográfico, enterrando lado a lado dois monarcas rivais e poderosos. Foi apresentada num colóquio que serviu de introdução a uma riquíssima exposição que traça o retrato desta técnica do século X ao XVI.

O "Livro de Horas de D. Manuel" não consta da exposição sobre iluminura que está na Biblioteca Nacional de Lisboa, porque se encontra neste momento em Bona, na Galeria Central da República Federal Alemã, numa exposição dedicada ao espólio do Museu Nacional de Arte Antiga. Mas no congresso "Iluminura em Portugal: Identidade e Influências", que decorreu na semana passada, esta magnífica obra tornou-se o centro de uma das sessões, depois de uma comunicação de última hora, fora do programa, feita por Vasco Graça Moura. O "Livro de Horas" - um livro de orações - foi atribuído por Ramalho Ortigão ao rei Venturoso, devido à iluminura inicial incluir a data de 1517, altura em que D. Manuel (1495-1521) ainda reinava. Segundo a tese deste ensaísta não está no entanto correcto atribuir a encomenda desta obra ao monarca D. Manuel I. O ponto central da tese de Graça Moura diz respeito às ilustrações dos fólios 129 (verso) e 130, que até aqui têm sido interpretadas como representando as cerimónias fúnebres de D. Manuel I, que tiveram lugar em 1521. Para Graça Moura, os dois fólios não representam as mesma exéquias, como explicou ao PÚBLICO e escreveu no último número da revista "Arte Ibérica": "Como penso ser demonstrável, tanto a imagem principal do fólio 129 (verso), como a inicial miniada [uma inicial que contém uma miniatura] do fólio 130, reportam-se não ao enterro de D. Manuel mas à cerimónia de trasladação de D. João II para o Mosteiro da Batalha, ordenada por D. Manuel em Outubro de 1499". Ou seja, os dois monarcas vêem simbólica e misteriosamente a sua morte misturada num complexo programa iconográfico: na tarja do verso do fólio 129 aparece o enterro de D. Manuel, com elementos que pertencem à trasladação de D. João II; na tarja do fólio 130 estão as exéquias de D. Manuel celebradas quatro dias após a sua morte; na miniatura da inicial do fólio 130 surge o início da trasladação de D. João II; na imagem principal do verso do fólio 129 vêem-se já as exéquias de D. João II no Mosteiro da Batalha.O ensaísta, que anteriormente estudou a "Genealogia do Conde da Feira", decidiu investigar o "Livro de Horas de D. Manuel" porque sentiu que "havia qualquer coisa que não batia certo". Agora, Graça Moura, depois de ter comparado as cenas representadas nas iluminuras com os textos da época dedicados às descrições do enterro de D. Manuel, publicada nas "Provas da História Geneológica", e da trasladação do corpo de João II, feita por Garcia de Resende, não têm dúvidas que o iluminador aí se inspirou, seguindo instruções exactas do encomendador.Para Dagoberto Markl, do Museu Nacional de Arte Antiga, que escreveu a obra "Livro de Horas de D. Manuel, Estudo Introdutório" (ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda), a tese de Graça Moura é coerente: "Acho muito interessante a sobreposição da trasladação de D. João II com as exéquias de D. Manuel. Aliás, eu chamei-lhe sempre 'Livro de Horas dito de D. Manuel I, porque não faz sentido ser ele o encomendador e aparecer representada a sua própria morte."Mas como explica Graça Moura, no texto já publicado, o encomendador desta invulgar representação deveria ser alguém que nutria profunda admiração pelos dois soberanos. Uma coisa rara, afirma Dagoberto Markl, uma vez que a rivalidade entre os dois era conhecida e ser partidário de ambos era "politicamente muito perigoso". As fortes desavenças têm origem no facto de D. João II ter querido passar o trono ao seu filho bastardo e não ao seu primo e irmão da rainha, D. Manuel I. "Pode haver alguém que esteja nesta linha, mas os dois partidos não se misturavam normalmente", acrescentando que, politicamente, talvez só D. João III, o filho de D. Manuel I, estivesse numa posição de poder tentar reconciliar as duas memórias. Mas para Graça Moura a encomenda pode ter sido feita pelo humanista Damião de Góis. Como D. João II era "memoria non grata", "é de supor na personalidade de quem encomendou e planificou as imagens referidas a audácia e a independência mental bastantes para se afastar do padrão comum dos livros de horas, fazendo representar duas cerimónias fúnebres diferentes em vez de uma só", escreve. Há várias outras razões, mas Graça Moura disse ao PÚBLICO que se as provas são "irrefutáveis" no programa iconográfico que liga os dois reis já não acontece o mesmo em relação à hipótese de Damião de Góis. "É uma expeculação". Com esta tese, Graça Moura atira para também para a frente a data em que esta obra terá sido iluminada por António de Holanda, pai de Francisco de Holanda. Se a sua datação tem oscilado entre 1525 e 1527, Graça Moura diz que a sua feitura tem de ser posterior a 1545, altura da primeira edição do texto de Garcia Resende dedicado à trasladação de D. João II. "É muito natural que a data esteja correcta. É um livro que vai sendo gradualmente feito", afirma Dagoberto Markl, acrescentando que só tem pena de não ter sido ele a fazer a descoberta. A exposição "A Iluminura em Portugal: Identidade e Influências", que estará até 30 de Junho na Biblioteca Nacional, e a edição de um catálogo a cores e com 400 páginas (falta o segundo volume) quiseram chamar a atenção para a riqueza de um património que ocupa um lugar de destaque na história da arte em Portugal. Como explica Maria Adelaide Miranda, comissária científica da iniciativa, a proposta visa ainda "estabelecer uma perspectiva correcta sobre o estudo desses manuscritos na actualidade", bem como constituir "um estímulo" para o alargamento da investigação "a áreas ainda pouco aprofundadas". Outra das novidades do colóquio foi a tese apresentada por Inês Villela-Petit, especialista dos arquivos nacionais de Paris: o seu objecto de estudo foi um livro de origem judaico-portuguesa intitulado "Livro de Como se Fazem as Cores". Uma obra que fala de 45 receitas para a obtenção das cores a usar nas iluminuras, bem como os elementos (vegetais e minerais) que dão origem às tintas. Se a obra, mantida na Biblioteca Palatina de Parma, em Itália, foi considerada até hoje como originária da cidade de Loulé, no Algarve, e datada do século XIII, para Villela-Petit esses dados são controversos. Uma análise aos elementos formais, como o tipo dos caracteres hebraicos e a filigrana do papel, deverá apontar antes para o século XV e para uma origem galega. Um salto de dois séculos que não será indiferente para a compreensão da evolução da iluminura na península, "uma vez que é colocando as receitas e técnicas no seu contexto cultural e técnico que se chegará a uma aproximação com os manuscritos iluminados", explica Villela-Petit.

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