Um inquérito que mudou a arquitectura

A realização do inquérito à arquitectura popular portuguesa entre 1955 e 1960 é já quase uma lenda. As histórias que lhe estão associadas transformaram os seus participantes em heróis. E foram alguns desses homens que se reuniram no Museu da Cidade de Lisboa numa homenagem a Francisco Keil do Amaral, unanimemente considerado o "pai da ideia". Recordaram como o inquérito mudou a arquitectura portuguesa.

Conta-se que durante o inquérito à arquitectura popular portuguesa, Salazar terá perguntado a Fernando Távora, um dos arquitectos envolvidos, se finalmente considerava o granito um material mais nobre que o betão. "Isso é que não", respondeu Távora, perante a estupefacção dos ministros que assistiam à conversa. Ao que o ditador retorquiu: "Coitado, tão novo e já tão pervertido." Histórias como esta, narrada pelo arquitecto Carlos Carvalho Dias, foram recordadas na conferência "O Inquérito e a Salvaguarda do Património" realizada na quinta-feira no Museu da Cidade de Lisboa, moderada pela historiadora Ana Isabel Ribeiro e integrada num ciclo de homenagem a Keil do Amaral. Para relatarem as experiências vividas durante os cinco anos em que durou o levantamento à arquitectura popular, estavam com Carvalho Dias, os arquitectos Nuno Teotónio Pereira, Francisco Silva Dias, António Menéres e Artur Pires Martins. Na assistência, Celestino Castro, Fernando Torres e Alfredo Mata Antunes reviviam as mesmas memórias. Falaram das longas travessias a pé ou de lambreta, dos locais inacessíveis, dos percevejos com que partilhavam as camas, dos lavradores que os acolheram calorosamente, mesmo sem perceberem ao que vinham. Foi um tempo feliz.A história recente definiu-os ainda como resistentes ao regime por desafiarem, com as suas conclusões, algumas das directrizes que o Estado Novo ditava para a arquitectura. Porque, no final dos anos 40, quando Keil do Amaral lançou este desafio, a arquitectura construída em Portugal era um problema de Estado. A década fora marcada pela tentativa de estabelecer padrões para a linguagem arquitectónica onde sobressaíssem elementos decorativos portugueses. Os arquitectos, principalmente as gerações mais jovens, sentiam-se reféns do passado e o apelo do Movimento Moderno era demasiado forte para ser ignorado. A questão estava em escolher um caminho entre o moderno e a verdadeira tradição portuguesa. Mas que tradição? Este parecia ser o grande dilema. Keil apontou a estratégia: conhecer a arquitectura popular.Depois de uma recusa em 1948, só em 1955 o então Ministro das Obras Públicas disponibilizou as verbas para o fazer. Arquitectos já desaparecidos como Octávio Lixa Filgueiras, Arnaldo Araújo ou Frederico George, entre outros, foram alguns dos que responderam ao chamamento de Keil. E seis equipas de três arquitectos cada iniciaram os trabalhos.Talvez houvesse certa ingenuidade no consentimento dado pelos responsáveis políticos à realização do inquérito, demonstrada no modo como Salazar reage à resposta de Távora. Silva Dias lembra um outro episódio passado na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa. O Ministro da Obras Públicas dirigindo-se aos arquitectos terá dito: "Agora os senhores já sabem como projectar as escolas e os correios deste país." Referia-se à existência hipotética de uma arquitectura regional que conduzisse futuras obras. Mas o que os arquitectos tinham visto eram casas modestas, pocilgas, estábulos... E escolas? Poucas.Se o poder alimentava a expectativa de criar um "estilo português" baseado no inquérito, não o conseguiu. Afinal, provou-se que o que existia era uma arquitectura verdadeira e simples, como explica António Menéres: "Fiquei com o vício de saber ver e apreciar o trabalho anónimo de gerações e gerações que faziam uma arquitectura, diria eu, do necessário." Carvalho Dias vai mais longe quando evoca as repercussões do inquérito: "Sem este conhecimento, talvez Fernando Távora não tivesse construído a Casa de Ofir [1956-1958] ou Siza a casa de Chá da Boa Hora [1956-1963]". É a prova de que o confronto com a arquitectura espontânea marcou o percurso das gerações seguintes. "As lições do inquérito ainda perduram", remata Silva Dias.Os resultados foram publicados em 1961 e reeditados por duas vezes (1980 e 1988). Ana Isabel Ribeiro recorda que "É urgente acautelar esse grande espólio que hoje pertence à Ordem dos Arquitectos". Para já espera-se uma nova edição.

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