Sobre a gestão flexível dos currículos do ensino básico

Num artigo de opinião (PÚBLICO, 12-4-99), o prof. Mattoso faz uma série de acusações ao Ministério da Educação que revelam um grande desconhecimento da natureza e objectivos do projecto da gestão flexível dos currículos do ensino básico.O sistema educativo tem a responsabilidade de assegurar a todas as crianças e jovens um ensino de qualidade, assim como as melhores condições de sucesso escolar. A verdade é que não temos sido capazes de o fazer de um modo efectivo. Ao fim de nove anos, muitos alunos não completam a escolaridade obrigatória e muitos outros, quando o fazem, não têm os conhecimentos e as competências que a educação básica lhes devia proporcionar.A escola, como está organizada, não tem sido capaz de lidar com a complexidade dos problemas e com a diversidade de situações que a educação para todos coloca, na sociedade actual. Por exemplo, aos 10 anos de idade, as nossas crianças passam a ter oito ou nove disciplinas, leccionadas por outros tantos professores, que mal têm tempo de se encontrar, quanto mais de discutir entre si, com os seus colegas dos outros ciclos ou com os encarregados de educação, estratégias adequadas para resolver os problemas educativos que enfrentam. Os alunos passam seis ou sete horas diárias na escola, saltando de aula para aula, de 50 em 50 minutos, e levam para casa umas quantas tarefas, esperando que alguém os ajude a estudar, a fazer trabalhos individuais ou de grupo, a preparar-se para os testes.A escola tem que fazer muito mais e melhor. Não se aprende simplesmente por frequentar muitas aulas. É preciso estudar, consultar diversas fontes de informação, produzir, discutir com os colegas e com os professores, trabalhar em conjunto com outros. Estas são tarefas escolares. A escola não serve apenas para "transmitir conhecimentos". Em muitos casos, à saída do ensino básico, o mais grave não é a falta de informação, mas sim a incapacidade para consultar um livro ou compreender um enunciado, a ausência de autonomia intelectual e de sentido crítico, a desmotivação perante a aprendizagem. Estes problemas não se resolvem com mais horas de aulas, mais trabalhos de casa, mais testes. Também não se resolvem mudando constantemente os programas.Um currículo do ensino básico com 30 horas semanais (às quais se juntam, na escola, as actividades extracurriculares) parece razoável. Como parece razoável que, nessas 30 horas, estejam incluídos tempos destinados ao estudo acompanhado, à realização de projectos interdisciplinares ou à discussão de problemas que afectam os jovens, numa perspectiva de educação para a cidadania.Estas áreas curriculares não são novas disciplinas a ser leccionadas por "pedagogos" - como afirma o prof. Mattoso, sem qualquer fundamento -, mas sim componentes do currículo asseguradas pelos próprios professores de cada turma e articuladas com as várias disciplinas. As aprendizagens relativas a cada disciplina não se fazem apenas dentro das aulas específicas, mas também em contextos de interacção e integração com outras. Por outro lado, é fundamental aprender a estudar, a cooperar ou a realizar projectos, mas isso não se faz, evidentemente, sem qualquer conteúdo.Não está em causa a importância da aprendizagem da História, da Matemática, do Português ou de qualquer outra disciplina. Pelo contrário, um dos desafios que temos pela frente consiste precisamente em conseguir que os alunos aprendam mais e de um modo mais significativo, desenvolvendo as competências essenciais em cada uma das disciplinas.A "novidade" do projecto de gestão flexível não é uma questão de horas ou de disciplinas, novas ou velhas. Aquilo que está em causa é a capacidade da escola se organizar para assegurar realmente uma formação básica adequada a todos os alunos. Num contexto de complexidade dos problemas e de diversidade das situações, isto implica uma flexibilidade curricular que o nosso sistema educativo nunca teve. Os professores não são "correias de transmissão" de prescrições e normas, iguais para todos. São profissionais que lidam com situações únicas e difíceis e que identificam e procuram resolver problemas educativos, no quadro de um currículo nacional, mas, desejavelmente, com uma grande margem de autonomia e poder de decisão.Evidentemente, uma nova prática de gestão do currículo não se cria por decreto. A gestão flexível é algo que levaremos, todos, muitos anos a aprender e que requer apoio, acompanhamento e avaliação do que se vai fazendo nas escolas. Mas podem-se tomar medidas que dêem às escolas melhores condições para que cada grupo de professores assuma a responsabilidade da gestão curricular da sua turma comum, incluindo as áreas disciplinares e não disciplinares, trabalhando realmente em equipa e de um modo mais coordenado e eficaz.Certamente, as orientações para o ensino da História, como de todas as outras disciplinas, são e serão discutidas com os especialistas e os professores da área respectiva. A Associação de Professores de História, como outras, está representada no Conselho de Acompanhamento do projecto da gestão flexível do currículo, a convite do Ministério. O Departamento da Educação Básica não prescindirá do debate com todos aqueles que estão legitimamente envolvidos no processo, por mais divergências que manifestem.Mas não abdicará de prosseguir uma orientação global coerente para melhorar realmente a educação básica no nosso país. É essa a nossa principal obrigação.*director do Departamento da Educação Básica do Ministério da Educação

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