PIDE queria expulsar 150 missionários de Moçambique

Um relatório da PIDE elaborado 10 meses antes antes do 25 de Abril propunha que se prescindisse do trabalho missionário de vários institutos religiosos. Feitas as contas, a decisão levaria à expulsão de 155 padres. As autoridades não seguiram a sugestão mas, em Fevereiro de 1974, o regime acabou por mandar embora de Moçambique mais 11 missionários e um bispo. Por causa de um "imperativo de consciência".

A situação político-religiosa de Moçambique em Junho de 1973, dez meses antes do 25 de Abril de 1974, era considerada pela PIDE/DGS como "causando graves apreensões" nas áreas das dioceses da Beira e de Tete. Num relatório pormenorizado sobre a presença da Igreja Católica naquele Estado "e suas implicações com a segurança", a PIDE concluía que a situação ficaria melhor "se fosse possível prescindir dos Institutos de Burgos, Capuchinhos de Trento, Combonianos, Sagrado Coração de Jesus e Padres dos Sagrados Corações". Ao propor esta medida, o relatório da polícia política do Estado Novo estava a sugerir a expulsão de 155 missionários que trabalhavam em todo o território moçambicano. Nessa altura, o número total de padres a trabalhar em Moçambique (entre autóctones e estrangeiros) era de uns 550. O que, a concretizar-se a ideia expressa no relatório dirigido ao governador de Moçambique, significava expulsar mais de um quarto dos membros do clero católico. Isto, já depois de terem sido expulsos do território, entre 1971 e 1972, vários membros dos Padres Brancos, dos Padres de Burgos e dos Missionários Combonianos (ver caixa). Na alínea c) do relatório, já citada, o director da delegação da PIDE em Moçambique acrescenta que, se se prescindisse dos missionários referidos, "beneficiariam as dioceses afectadas e as que se prevê virem a sê-lo". E, se isso não se concretizasse, "a subversão violenta" iria estender-se "a novas áreas ainda não afectadas", tudo levando a crer que surgiriam "implicações mais graves com a segurança".A informação nº 86/73/DI/2/SC-G.G., com 31 páginas dactilografadas, traça um panorama completíssimo do que era a posição dos missionários em relação ao estatuto da então colónia portuguesa, dos casos considerados mais perigosos para a segurança do Estado, das opiniões dos respectivos bispos e das missões que ofereciam preocupações às autoridades do Estado Novo. O relatório começava por se referir ao "estado da questão", com um "vasto campo de análise em que factores de ordem religiosa, social e política se entrechocam, tornando o tema melindroso e difícil". E entrava depois por conceitos teológicos: "Tendo em conta que o conceito de Igreja envolve não só a hierarquia mas também todos os católicos (binómio Igreja/Corpo Místico), a principal limitação que nos surge é a impossibilidade de seguirmos atentamente o comportamento político-religioso dos leigos. Alguns destes tentavam "a escalada de pastorais ultra-modernas à luz da actual doutrina social". Mas, como não eram muitos, "os seus voos são perfeitamente controlados ou controláveis" pelos bispos. Vivia-se, entretanto, um contexto teológico desfavorável. "Já antes" do Concílio Vaticano II (que se realizara entre 1962 e 65) havia teólogos de várias zonas do mundo a enveredar "por uma hermenêutica, tipo racionalista, tentando descobrir e desenvolver uma temática evangélica" que até aí tinha sido "inaceitável". Os temas que vinham "sendo abordados nas altas esferas teológicas" eram, cada vez mais, analisados "por prismas revolucionários", sendo fácil ouvir falar em "teologia e/da revolução", "evangelho e libertação", "profecias e política", "política do Antigo Testamento" e "função política do culto". Havia mesmo, supremo insulto, quem distinguisse no julgamento de Jesus Cristo um julgamento religioso e "outro político (por subversão relativamente ao poder constituído - domínio romano)". E havia exegetas que viam Jesus como "um revolucionário", cuja conduta tinha sido "estritamente política e o evangelho um anúncio de libertação do domínio de poderes temporais". A análise teológica do relatório da PIDE terminava afirmando que todas essas tendências difundidas no Terceiro Mundo serviam "cabalmente os interesses dos países comunistas". O relatório entrava depois a analisar minuciosamente cada um dos institutos religiosos masculinos presentes em Moçambique. Listava um conjunto de 16 congregações masculinas: Padres Monfortinos, Missionários da Consolata, Padres Franciscanos, Missionários Combonianos, Instituto de São Francisco Xavier de Burgos, Padres do Coração de Jesus (Dehonianos), Jesuítas, Capuchinhos, Capuchinhos de Bari, Padres dos Sagrados Corações, Sacramentinos, Sociedade Missionária Portuguesa, Congregação da Missão, Ordem Hospitaleira de São João de Deus, Salesianos e Dominicanos (que acabavam de chegar ao território). Os mais perigosos eram aqueles que o relatório mencionava como sendo necessário prescindir dos seus serviços. Mas havia outros que, sem estarem na lista mínima, também eram causa de problemas: os monfortinos seriam partidários da autodeterminação de Moçambique; alguns da Consolata já se tinham revelado "contestários exacerbados", mas os seus superiores aconselhavam os padres a não se intormeterm "na orientação sócio-política"; os Capuchinhos de Bari desenvolviam trabalho social com o objectivo de "realçar a indiferença" das autoridades oficiais em relação aos seus problemas. Já os jesuítas, na sua maior parte, não seguiam a "eventual atitude refractária e hostil atribuída" ao seu superior-geral, padre Pedro Arrupe. Dos 33 institutos femininos a trabalhar em Moçambique, com um total de 1224 religiosas (das quais 270 estrangeiras) não havia muito a recear. À excepção de duas freiras - a italiana Maria de Carli e a espanhola Divina Vasquez Rodriguez -, não se conheciam "atitudes ou actividades" de religiosas que implicassem com a segurança, mas o relatório salientava o facto de algumas delas já estarem a aprender com os padres e irem para Moçambique "com graus académicos". Entre os padres diocesanos, não vinculados a nenhum instituto religioso, havia apenas alguns casos isolados que eram objecto de preocupação, entre os quais Joaquim Teles de Sampaio, um dos primeiros a denunciar massacres cometidos pelas tropas portuguesas, e João Baptista da Mata, que fazia, na Sé de Lourenço Marques (actual Maputo), "homilias impregnadas de maoísmo e utopia". Os restantes, de um modo geral, não criavam complicações. "Estão de certo modo 'aburguesados', não tendo problemas de ordem financeira e não se mostrando interessados em entrar em atrito com a política governamental". O mesmo epípeto era dado ao então bispo de Quelimane. D. Francisco Nunes Teixeira (recentemente falecido): "É de tipo moderado, conservador, talvez mesmo 'aburguesado'", um bispo que aconselhava os seus padres a manifestarem "espírito cristão, moderação e prudência" nos contactos com as autoridades, "a fim de se evitarem atritos prejudiciais". Esta tese tem uma relativa confirmação do próprio. No seu livro "A Igreja em Moçambique na Hora da Independência (1955-1975)", publicado há perto de cinco anos, Francisco Nunes Teixeira admitia que o método preferido pela maior parte dos bispos moçambicanos era o diálogo directo com as autoridades. Os membros do episcopado também eram objecto da lupa e da vigilância da PIDE. O arcebispo de Lourenço Marques, Custódio Alvim Pereira, era "da linha conservadora"; o bispo de João Belo (actual Xai-Xai), Félix Niza Ribeiro, mantinha boas relações com as autoridades civis, mas tinha ido depor a favor dos padres de Macuti, que tinham denunciado massacres; Ernesto Gonçalves da Costa, de Inhambane (que seria depois bispo da Beira, entre 1974 e 1977, e bispo do Algarve entre 1977 e 1988), era "tradicionalista e muito equilibrado", mas também tinha deposto no julgamento dos padres de Macuti; Augusto César da Silva, de Tete (actual bispo de Portalegre e apontado como futuro arcebispo de Braga), "pode considerar-se muito bom" e um dos que mantinha o "equilíbrio, exigido nas relações com os poderes temporais"; José dos Santos Garcia, de Porto Amélia (actual Pemba), seguia a "linha conservadora" da Igreja e não escondia "o seu acérrimo e irredutível portuguesismo"; e Luís Gonzaga da Silva (que vinha dos jesuítas e era bispo de Vila Cabral, actual Lichinga) era "o que melhor" se identificava "com o sistema político vigente".Aquele que merecia mais acusações no relatório da PIDE era Manuel Vieira Pinto (que continua a ser o bispo de Nampula, para onde foi nomeado há mais de 30 anos). A sua "personalidade e mentalidade" fugiam "à vulgaridade dos seus colegas do episcopado" e a sua actuação "em desfavor da sã ortodoxia católica por apadrinhamento de contestatários e seus grupos tem ultrapassado todas as barreiras do decoro episcopal". Mais grave ainda, Vieira Pinto fazia "tábua rasa do respeito hierárquico devido, pelo menos," ao arcebispo de Lourenço Marques. E do "acinte" que mostrava "contra a política ultramarina portuguesa nem é bom falar". Poucos meses depois deste relatório, em Fevereiro de 1974, foi publicado o documento "Imperativo de Consciência". O texto era assinado por D. Manuel Vieira Pinto e todos os combonianos presentes em Moçambique (34 padres, 19 irmãos leigos e 41 irmãs - afinal, o relatório enganara-se, sobre as freiras). E, no documento, os signatários insurgiam-se contra a política colonial, contra a continuação da guerra e contra o silêncio da Igreja Católica em Moçambique. A polémica voltou a estalar, e o Governo deu ordem de expulsão a 11 missionários combonianos (nove italianos e dois portugueses) e ao bispo de Nampula, que chegou a Lisboa nas vésperas do 25 de Abril. Entre 1974 e 1977, vários bispos moçambicanos pediram para sair das suas dioceses. Vieira Pinto voltou para Nampula.

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