O estrebuchar mortífero do regime

O que é que levou aquelas centenas de pessoas a abeirarem-se, na tarde daquele 25 de Abril inicial, da sede da polícia política do regime moribundo? A motivação política, o entusiasmo juvenil, a euforia de uma mudança já garantida? Provavelmente um pouco de tudo isso. Vinte e cinco anos depois, o PÚBLICO reconstitui os passos do estrebuchar mortífero do regime e faz o retrato das vítimas mortais da revolução. Um dado fica claro: foi o assédio popular à sede da PIDE que ditou o seu fim, acabando com as hesitações no seio do movimento.

Quando a cabeça do grupo chegou perto da PIDE, ouviu-se o barulho de balas a entrarem nas câmaras. Ninguém fugiu. O ambiente era de clara euforia e fúria contra a polícia política. Lá de dentro foi disparada uma rajada, de uma das janelas do primeiro andar. E a seguir outras. Foram poucos segundos, demasiados para fazerem as vítimas mortais de uma "revolução sem sangue": quatro populares e um funcionário da polícia política mortos. Apanhados, todos eles, na curva da História.A PIDE, que poucos anos antes mudara o nome para DGS, não era sequer, como está documentado, um objectivo estratégico do Movimento das Forças Armadas. Foram os populares que desrespeitaram as ordens para ficar em casa que a elegeram como alvo. Terão sido eles a tornear as contradições dos militares, ditando o fim da corporação. Os exemplos mais flagrantes da indecisão dos homens do movimento foi a intenção, não concretizada, de tomada da sede por um grupo de fuzileiros, na manhã do dia 25. E também a nomeação, já a 27 de Abril, de um novo director, que não chegou a sê-lo, pelo presidente da Junta de Salvação Nacional, general António de Spínola.Desde cedo que, nesse 25 de Abril inicial, a PIDE atraiu a atenção dos populares. Ao princípio da tarde, ouviram-se os primeiros disparos, que fizeram os primeiros feridos - três, segundo o "Século Ilustrado" de dia 27. Era o prenúncio do que estava para vir. Não houve qualquer esboço de reacção de tropas. Todas as atenções estavam, a essa hora, viradas para o Largo do Carmo, poucas centenas de metros acima. Aí, sim, jogava-se o futuro.Foi com a rendição de Marcelo Caetano e a saída da chaimite que o levou do Carmo que começou a ganhar forma a mole humana que se concentraria na António Maria Cardoso. Uns seguiram o conselho de Francisco Sousa Tavares e dirigiram-se ao Terreiro do Paço, para aí ser feita uma grandiosa manifestação. Outros terão descido ao Chiado, a dois passos da PIDE. Os diferentes relatos não coincidem em pormenores como trajectos seguidos. Havia gente na rua, grupos e percursos diferentes.O jornalista Adriano de Carvalho, um dos 45 feridos pela PIDE, quase todos muito jovens, foi dos que seguiram a chaimite até à Rua 1º de Dezembro. Aí, quando acelerou Rua do Ouro fora, perderam-na. Continuaram para o Terreiro do Paço, onde se concentrara muita gente junto aos ministérios do Interior e do Exército, gritando vivas aos militares. Havia quem pensasse que se faria ali a proclamação do novo regime.Segundo "O Século" de dia 26, gritava-se já aí "Guerra do povo à guerra colonial" e "Morte à PIDE, assassinos". Umas 600 pessoas subiram depois, como relata o jornal, pela Calçada de São Francisco, em direcção à António Maria Cardoso. Os disparos mortais, diz quem os testemunhou, só foram feitos quando mais manifestantes, idos do lado do Chiado, se aproximaram da sede da PIDE.Adriano de Carvalho diz que o grupo em que seguia avançou do Terreiro do Paço pela Avenida da Ribeira das Naus, aplaudiu os marinheiros do Arsenal do Alfeite e, sempre com gente a engrossar o desfile, se dirigiu ao Cais do Sodré. Nesse momento, afirma, saíam da boca dos manifestantes palavras de ordem mais tímidas pela "democracia" e pela "liberdade". Rapidamente se evoluiu para um grito a favor do "Fim à guerra colonial", da "Independência das colónias", da "Democracia popular".Estava-se a meio da Rua do Alecrim quando se ouviram vozes a traçar um objectivo. "Vamos à PIDE." O grupo ia engrossando, sem desmobilizar sequer pela chuva que começara a cair. Activistas de grupos de extrema-esquerda, mas também espontâneos e gente sem anterior motivação política, exigiam o assalto à PIDE.Felizes, eufóricos, deslumbrados, os manifestantes, muitos com cabelos e colarinhos compridos e calças "boca de sino", empunharam barras de sinalização de obras que por ali decorriam e o que apanharam à mão. Outros apedrejaram portas. Forçada a entrada, as armas pouco poderiam contra a multidão. Acossada, a PIDE disparou contra o grupo, para o lado do Teatro de São Luiz. Foi o esgar mortífero da polícia política. "Quando chegou a cabeça da coluna, eles começaram a meter balas na câmara. Não vi ninguém fugir, ouvi foi um coro de brados: 'Vamos a eles!'" "As janelas do primeiro andar estavam coalhadas de agentes, as cabeças de alguns não chegavam ao parapeito, excepto a primeira do lado esquerdo." Foi dessa janela que "partiu a primeira rajada, disparada por um tipo sozinho com uma pistola metralhadora Uzi, exactamente às 8h10, olhei para o relógio", garante o jornalista. "Depois vieram mais rajadas. Eles dispararam à figura, sem advertência", conta Adriano de Carvalho, atingido num pé. Dispararam também do telhado? "Talvez! Eu só vi os do primeiro andar."Houve quem não se apercebesse logo de que os tiros não estavam a ir para o ar. E antigos elementos da PIDE fizeram depoimentos a dizer que os tiros tinham partido, afinal, do edifício do outro lado da rua. Pormenores. Quando aconteceram os disparos, cada um fugiu, aí sim, para onde pôde. Se pôde. Dois dos manifestantes estavam já mortos ao chegar ao Hospital de São José, outros dois viriam a falecer, vítimas, como escreveu o "Diário de Lisboa", da "tenebrosa DGS". Mais de quatro dezenas de pessoas tinham sido atingidas. O socorro aos feridos não foi fácil. Novos tiros terão dificultado a aproximação das brigadas de socorro da Cruz Vermelha e dos bombeiros. Houve feridos postos em táxis por outros manifestantes.No Largo do Carmo, o então capitão Andrade Moura, de Estremoz, ouviu as metralhadoras. E dirigiu-se para onde vinha o barulho. "Nem sabia que a PIDE era ali. Marchei para lá sem ordem de ninguém. Soube, posteriormente, que tinha havido mortos", recordou ao PÚBLICO.A alguns quilómetros de distância, na Pontinha, a cúpula do movimento estava alheia ao que se passava. Otelo Saraiva de Carvalho conta, no seu livro "Alvorada em Abril", que o então capitão de artilharia Rosado da Luz interrompeu as nomeações para o comando de unidades com a notícia de que reinava "o tumulto na zona do Chiado".Às 21 horas, um comunicado lido ao microfone do Rádio Clube Português informava, no tom e numa linguagem que, a essa hora, era já familiar aos ouvintes, que, afinal, houvera sangue: "Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas. Segundo comunicação telefónica aqui recebida, cerca das 20h30, ter-se-iam verificado incidentes na Rua António Maria Cardoso, onde se situa a sede da DGS. No decorrer desses incidentes, foram feridas algumas pessoas, encontrando-se já no local assistência médica. Aguarda-se, a todo o momento, a intervenção das Forças Armadas..."No local, o esquadrão de Andrade Moura vê-se em dificuldades para conter a multidão, que se voltara a agrupar, clamando vingança. "Vinguemos os camaradas mortos", exigia-se. "Até tomei posições aborrecidas, porque a população queria pegar em armas dos meus soldados", lembra o capitão, hoje tenente-coronel na reserva. Suspeitos de pertencer à PIDE eram interpelados, a tropa temeu linchamentos.Pelas 21h15, saiu da sede da PIDE um homem com os braços levantados, dirigindo-se à tropa. Segundo o relato de "O Século" do dia seguinte, "imediatamente encostado à parede, começou a ser revistado, enquanto a multidão em altos gritos pedia que o matassem". "Perdendo a calma, completamente apavorado, procurou fugir, correndo desesperadamente, e foi logo abatido pelos soldados que o haviam revistado. A multidão não permitiu que os bombeiros fossem retirar o cadáver, gritando: "Os pides morrem na rua." Havia sede de vingança.Chegou a ser noticiada a morte de um outro elemento da PIDE que teria tentado alvejar os militares a partir de uma janela do edifício-sede. Mas esse relato é desmentido por Andrade Moura, para quem a única morte de elementos da corporação foi um "incidente lamentável". A situação estava, de qualquer forma, difícil de controlar. O capitão pediu reforços, a cúpula do movimento tratava de os enviar. O povo só dispersaria madrugada fora.A autoria dos disparos do dia 25 nunca foi apurada. Nos dias seguintes houve ainda uma ou outra morte. Um levantamento rigoroso nunca foi feito, mas foi noticiada a morte de um agente da PSP em Lisboa no dia 26, por um tiro ido "não se sabe de onde". E no dia 28, no Porto, de um antigo carcereiro da PIDE. Em Gaia suicidou-se, em data não apurada, outro elemento da polícia política. Nada que mudasse a imagem de uma "revolução sem sangue".O único tributo que a democracia rendeu às vítimas mortais foi a colocação, em 1980, por um grupo de cidadãos, de uma placa na parede do edifício da António Maria Cardoso que o tempo vai comendo. "Aqui na tarde de 25 de Abril de 1974 a Pide abriu fogo sobre o povo de Lisboa e matou: Fernando C. Gesteira/ José J. Barneto/ Fernando Barreiros dos Reis/ José Guilherme R. Arruda", lê-se, em letras capitulares. José Guilherme era, porém, João. E António Lage estava do lado errado da História.

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