Celebração dos lagartos

Foi a celebração da grande música e de um grande grupo, parafraseando o poema de Jim Morrison, "Celebration of the lizard". John Lurie e os seus Lounge Lizards, como o vocalista-xamã dos Doors, foram possuídos pelos espíritos. Num dos concertos do ano.

Há muito que não se assistia em Portugal a música do quilate da que John Lurie e os Lounge Lizards apresentaram na noite de terça-feira no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB). John Lurie tinha razão na entrevista que deu ao PÚBLICO (no suplemento Artes & Ócios da passada sexta-feira). Ele e o seu grupo podem, de facto, fazer tudo. E fizeram. De forma superlativa. Os nove elementos que estiveram em palco não são grandes executantes, no sentido técnico do termo. São, antes, grandes músicos que se deixaram possuir pelo espírito da música. Ao longo de duas horas e meia, passou pelo CCB a própria dinâmica da vida, os seus paradoxos e incertezas. É isso que John Lurie imprime às suas composições e faz respirar nos músicos que o rodeiam: uma girândola desconcertante de referenciais estéticos que, a cada instante, colidem com os lugares-comuns de géneros como o jazz, o rock, a "world music" e a música de câmara. Curiosamente, a noite começou mal, fazendo prever o pior. Com um som empastelado e os músicos tensos a esconderem o que estava para vir. Desagradado, Lurie passeou em frente deles, levantando os braços, a pedir que abrissem os espíritos e o som. E, de súbito, fez-se luz: tudo começou a bater certo. A celebração subiu sem parar, até atingir o céu. Cada músico entregou-se ao som do colectivo, numa cascata de emoções. Foi jazz mas também foi rock. E rituais africanos. E cadências latinas transfiguradas pelo "free". É possível, claro, atribuir uma memória a esta música que aflorou o eixo europeu de orquestras como a de Mike Westbrook e Mike Gibbs ou grupos como os Nucleus ou Achim Reichel. Mas os Lounge Lizards não ficam muito tempo parados na mesma estação, retendo apenas o essencial. Uníssonos poderosos chegaram perto da histeria de uma liberdade assumida até às últimas consequências. Uma máquina de prazer que carborou em explosões sucessivas do trompetista Steven Bernstein e do saxofonista-tenor Michael Blake. Evan Lurie, irmão mais novo do líder da banda, rubricou ao piano um solo prodigioso onde couberam o romantismo, o minimalismo, traços de Keith Tippett e segredos que apenas ele conhece. Tony Scherr solou como se respirasse no seu baixo eléctrico, transformado num corpo de mulher. Mauro Refosco, o percussionista brasileiro, coloriu com sonoridades afro uma música que soltou amarras e queimou calorias. Num dos temas, Doug Wiselman fez a sua guitarra soar como uma "sitar" criando um raga de jazz psicadélico. Lurie foi o maestro. O sábio. O louco. As frases melódicas que fez nascer dos seus saxes alto e soprano escaparam a todas as previsões e apostas. Clássico de uma forma satírica ou humilde como um tocador de rua, Lurie demonstrou a sua veia de "entertainer", com um sentido de humor que fez explodir de riso a assistência. Ironizou sobre os hotéis em que os lençóis da cama estão tão apertados que tornam impossível a quem se deita mexer os pés ou sobre o pânico das hospedeiras de voo quando os passageiros se recusam a comer os pacotes de amendoins. E insistiu com as pessoas instaladas nos camarotes mais altos do auditório para se atirarem lá de cima: "É um espectáculo tão belo, como as folhas das árvores a caírem no Outono, só que em vez de folhas, são pessoas!...". O público não teve outro remédio: rendeu-se. Dois "encores" em que os níveis de adrenalina aumentaram ainda mais culminando num dos momentos inesquecíveis da noite: um "blues" ensanguentado por solos arrancados do fundo da alma pelos três sopradores - Bernstein, Blake e John Lurie. Ficou um silêncio comovido e a sensação de ter acontecido algo de único nos palcos portugueses. John Lurie aproximou-se do microfone para murmurar simplesmente: "that's it!".

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