Nascidos em cativeiro de mães "NN"

Centenas de argentinos nasceram em cativeiro nos anos da ditadura, de mães "NN", e desapareceram. Carolina descobriu há poucos meses o seu verdadeiro nome - Paula - e agora quer saber tudo. Mas tem pela frente militares que não falam, como Galtieri, e juízes que tentam passar despercebidos, como Brusa - um nome que Baltasar Garzón conhece bem.

O que aconteceu naquele dia 11 de Fevereiro de 1977, Maria Carolina Guallane não sabe - era pequena. Agora que Galtieri não saiba, como disse há dias ao juiz Brusa, não é estranho? Não era ele o comandante do II Corpo do Exército, em Rosário, nesse ano?O que então se passou foi que uns homens entraram numa casa da pequena cidade nortenha e prenderam Blanca Zapata, quase a dar à luz, e Enrique Cortasse, o marido. Ela ainda viu levarem-lhe a filha.Duas semanas depois a mulher foi sepultada no cemitério local com a sigla NN, ou "subversivo", desconhecendo-se o destino do bebé. Nasceu vivo? Onde está? Maria Carolina quer saber, porque a pequena que levaram naquele dia em Rosário era ela - Paula Cortasse.Paula Cortasse, a quem os pais adoptivos contaram a história quando já tinha idade para a ouvir, quer o resto da história - da sua história. O pai terá morrido, calcula-se. Não decretaram os militares em 1983 que "todos os desaparecidos devem ser considerados mortos"? Mas, e o irmão, caso exista?O caso é semelhante a outros, oficialmente 240 mas talvez 400, segundo as "Avós da Praça de Maio", que deslindaram até hoje 63, incluindo os de 14 crianças adoptadas por famílias de "boa-fé" - porque uma boa parte dos miúdos foram para famílias de má-fé, algumas militares, como a de Bianco, cuja história, quando veio a público, pôs a Argentina com os cabelos em pé.Norberto Atilio Bianco era médico no Hospital Militar de Campo de Mayo, nome emblemático de uma época, de um regime. Parteiras, enfermeiros e pessoal docente que o conheceram, e sobreviventes, juram que foi dos maiores responsáveis pelo que lá se passou. (ver texto seguinte)Duas das crianças raptadas, levou-as ele e a mulher, Susana Werhli, para casa, e mais tarde para o Paraguai, para onde fugiu quando as investigações apertaram. E de onde só voltou com um pedido de extradição (que o Governo de Assunção levou aliás demasiado tempo a dar seguimento).Dizem as "Avós da Praça de Maio" que Werhli nunca esteve grávida e que os seus "filhos" Susana Carolina Bianco e Pablo Hernán Bianco, nascidos em Outubro de 1976 e Setembro do ano seguinte, em casa, são dois dos miúdos raptados.Outra história foi a denunciada há pouco mais de uma semana pelo poeta e escritor argentino Juan Gelman, que mandou uma carta ao comandante do Exército, general Martín Balza, acusando outro general, Eduardo Cabanillas, actual chefe do II Corpo do Exército, do rapto do seu neto - ou neta - durante a ditadura.Cabanillas trabalhava nesse tempo na Secretaria de Inteligência do Estado, a SIDE, de que dependia o centro clandestino "Automotores Orletti", onde a nora de Gelman esteve detida e terá tido um bebé.O filho do escritor, Marcelo, e a mulher, Maria Claudia Iruretagoyena, foram sequestrados em 24 de Agosto de 1976. O cadáver dele foi encontrado 13 anos depois. Dela e do bebé nunca se soube. Cabanillas era o subchefe da "OT18", o nome de código do campo durante a Junta Militar, o nome de código do terror argentino.Pelos raptos de Paula Cortasse, dos "filhos" de Bianco, do neto de Juan Gelman e de muitos outros foram presos até hoje vários oficiais do antigo regime, incluindo o general Jorge Rafael Videla, a principal figura da ditadura, os almirantes Emilio Massera, Jorge Supicich, Antonio Vanek e Ruben Franco, todos em residência vigiada devido à sua idade, ou os oficiais da Marinha Hector Febrés e Jorge Acosta, o "Tigre" - chamado assim pela ferocidade que usou quando foi chefe de Operações Especiais na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA). Foi nessa "escola" que "desapareceram" pelo menos 5 mil das 30 mil vítimas do regime militar, algumas levadas em segredo, nuas, drogadas, atadas, para bordo de aviões Hércules, de onde eram atiradas de madrugada para o Atlântico.Há dias, interrogado por Brusa, um dos juízes encarregados do mistério dos bebés desaparecidos, Leopold Galtieri, o último dos militares do regime, disse que não soube de nada enquanto comandou o Exército em Rosário. Foi interrogado pela pessoa certa? O redactor do "Clarín", que deu a notícia, não resistiu em recordar que Brusa é acusado pelo juiz espanhol Baltasar Garzón de presumível participação no delito de genocídio.A acusação do magistrado que persegue os responsáveis ainda vivos das antigas ditaduras chilena e argentina repousa no testemunho de Patricia Isasa, presa e interrogada pelos militares em Santa Fé, que disse que Brusa esteve presente em alguns dos seus interrogatórios. Despertando com isso o receio de que também na Argentina, como no Chile, a justiça não esteja à altura.

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