Torne-se perito

Os três meses que abalaram o regime de Caetano

17 de Abril de 1969. Decorria uma cerimónia oficial na Universidade de Coimbra quando um estudante se ergueu e pediu educadamente a palavra ao Presidente da República, Américo Tomás. Que não lha concedeu. Com este episódio aparentemente banal começava uma crise académica que rapidamente iria adquirir proporções nacionais. O governo de Caetano ripostou violentamente. Reprimiu manifestações, fez dezenas de prisões, instaurou processos disciplinares, mandou estudantes para a tropa, ocupou a cidade com aparato militar. E travou um longo braço de ferro com a grande maioria dos alunos de Coimbra, que responderam com uma inédita greve aos exames, demonstrando que a solidariedade tem muita força. E fazendo desses meses de 69 uma festa permanente que iria marcar toda uma geração.

Quando, em 17 de Abril de1969, rebentou a crise académica na Universidade de Coimbra, o país vivia um momento peculiar. Salazar caíra da cadeira em Julho do ano anterior e o marcelismo já aparecia fragilizado pelas suas contradições internas, pressionado entre a facção ultra salazarista e a ala liberal. Havia eleições legislativas marcadas para Outubro desse ano, e a oposição organizava-se, promovendo algum debate político. Com tudo isto e uma guerra colonial em três frentes que se tornava crescentemente impopular, o regime tinha razões para estar alerta.Coimbra, pacata cidade da província com uma população de 8.700 estudantes universitários, oriundos na sua maioria da pequena burguesia do Centro e Norte do país, vivia uma aparente normalidade. Acontecimentos como a invasão da Checoslováquia ou o Maio de 68 em França, em que os estudantes apareciam pela primeira vez como os protagonistas da história, não pareciam afectar o universitário médio. Mas eram tema de discussão acesa entre a vanguarda estudantil mais politizada, alvo, esta sim, de uma vigilância e repressão discretas mas eficazes. Em 1964/65, a Associação Académica de Coimbra (AAC) passara a ser dirigida por comissões administrativas - formadas por estudantes nomeados pelo Governo. O reitor, Andrade Gouveia, cumpria à risca as ordens do ministro da Educação, José Hermano Saraiva, cuja nomeação fora ainda da responsabilidade de Salazar. O ano lectivo de 1968/69 foi marcado, logo em Novembro, por uma comemoração mais participada e mais politizada que o habitual da Tomada da Bastilha [data da tradição académica coimbrã, comemorativa do assalto pelos estudantes ao clube dos 'lentes', na antiga Rua Larga, e sua transformação em associação académica, nos primeiros anos do século], a que se associaram pela primeira vez estudantes de Lisboa e do Porto. Nesse ano, o Ministério da Educação Nacional (MEN) autorizara finalmente eleições para os corpos dirigentes da AAC, que os estudantes exigiam há três anos. A campanha eleitoral foi marcada por dois meses de intensos debates e nas eleições, a 12 de Fevereiro, venceu por grande maioria uma lista de esquerda, promovida pelo Conselho das Repúblicas (CR), cujas reivindicações se centravam principalmente no terreno do sindicalismo estudantil. Nos sete lugares da direcção da AAC, a direita académica só logrou colocar um nome: o de Manuel Cavaleiro Brandão, actualmente advogado e dirigente do PP, que não chegou a tomar posse. O seu lugar foi ocupado por José António Salvador, que viria a ser jornalista e é hoje um autorizado especialista em vinhos. A direcção associativa era presidida por Alberto Martins, actualmente deputado do PS, e integrava ainda Osvaldo Castro (hoje secretário de Estado do Comércio), Fernanda da Bernarda (jurista), José Matos Pereira (que é agora provedor do cliente da Telecom), José Gil Ferreira (médico) e Celso Cruzeiro (advogado em Aveiro).A seguir à Páscoa, este núcleo dirigente da AAC começou a fazer diligências junto do reitor para que um representante dos estudantes pudesse discursar na inauguração (marcada para 17 de Abril) do novo edifício das Matemáticas, onde iriam estar presentes o Presidente da República, Américo Tomás, e os ministros da Educação, das Obras Públicas e da Justiça. A pretensão foi recusada pelo reitor, mas, às 11h00, na Praça D. Dinis, fronteira ao novo edifício, um milhar de estudantes aguardava as autoridades empunhando cartazes com "slogans" como "A Universidade é velha", "Em Portugal, há 40 por cento de analfabetos" ou "Ensino para todos". A cerimónia decorreu num anfiteatro - hoje chamado Sala 17 de Abril - apinhado de gente. Lá dentro, Alberto Martins preparava-se para insistir no seu direito a usar da palavra na cerimónia, enquanto no exterior as operações eram orientadas por Celso Cruzeiro.Alberto Martins recorda o episódio: "Eu estava muito nervoso, sobretudo porque não sabia em que momento havia de pedir a palavra. Para mim, era a honra que estava em causa, não a política; não me esquecia de que representava nesse momento toda a academia. Dirijo-me a Américo Tomás, digo 'Ex. mo Sr. Presidente da República, peço para usar da palavra em nome dos estudantes'. Ele balbuciou qualquer coisa e eu repeti o que dissera. Ele levantou-se, muito vermelho. Foi um momento mágico, que nunca mais me sai da memória. Quando acabei de falar tinha vontade de voar".O que Tomás, balbuciou foi registado: "Bem... mas agora vai falar o sr. ministro das Obras Públicas". Só que, terminado o discurso deste, levantaram-se apressadamente todos os dignitários do regime, e agentes da PIDE começaram a abrir-lhes caminho à cotovelada entre uma multidão de estudantes indignados com o incidente. Há quem diga que, na confusão, Tomás e outros foram "apalpados", e roubadas as condecorações dos oficiais. "A proximidade física foi muito grande, podia ter acontecido qualquer coisa, mas de apalpões nunca ouvi falar", diz Fernanda da Bernarda, na altura quartanista de Direito. A verdade é que a saída, tudo menos digna, foi uma autêntica fuga, com os estudantes a gritar "Vergonha, vergonha" e "Queremos falar, queremos falar". E acabou mesmo por falar Alberto Martins, mas sem que o ouvissem o chefe de Estado e ministros em retirada.À noite, a direcção da AAC estava reunida quando, pelas 02h00, foi avisada de que a PIDE estava à porta da associação. "O Celso [Cruzeiro] disse que ia ver o que eles queriam e marchou para o café Mandarim a comprar cigarros. Os pides não se mexeram. Ele voltou e, quando todos saímos, pelas 03h00, seguiram o Alberto Martins e prenderam-no", conta José Matos Pereira. Umas dezenas largas de estudantes dirigiram-se imediatamente para as instalações da PIDE e a polícia de choque carregou com violência contra eles. Graça Nunes, que na altura estudava na Faculdade de Letras e hoje é documentalista num ministério, recorda: "Foi assustador, a polícia soltou os cães. Fugimos para os jardins da AAC. Houve vários feridos, um deles em estado grave".De manhã, o prersidente da AAC foi solto e, à tarde, numa assembleia magna, iniciava-se o processo de reivindicação da autonomia universitária, sendo aprovadas propostas como a participação dos estudantes no senado da Universidade e o reconhecimento das juntas de delegados como estruturas representativas dos estudantes.A 22 de Abril, os membros da direcção da AAC são suspensos e proibidos de "quaisquer actividades relacionadas com a Universidade, incluindo a frequência das aulas". A medida abrange também o delegado da Junta de Ciências, Carlos Baptista, e o representante da Comissão Nacional dos Estudantes Portugueses (CNEP), José Barros Moura. Nova assembleia magna, no dia 23, decreta o luto académico sob várias formas, uma delas a greve às aulas. Professores como Orlando de Carvalho, Paulo Quintela e Victor Matos e Sá comparecem a manifestar solidariedade aos estudantes.O ministro José Hermano Saraiva vai à televisão contar, a 30 de Abril, a sua versão dos factos. Diz que os estudantes não deixaram falar os oradores oficiais na cerimónia do dia 17, e justifica assim a sua suspensão. A 6 de Maio, o tumulto é tal em Coimbra que o ministro publica uma nota oficiosa a encerrar a Universidade. A greve aos exames é decretada a 28 de Maio numa assembleia magna efectuada nos jardins da AAC. Compareceram mais de 7.000 estudantes, dando ao movimento estudantil um carácter massivo até aí desconhecido. "Foi uma decisão muito bem preparada, que teve o apoio do sector estudantil católico [reunido em torno do Centro Académico da Democracia Cristã - CADC]. Nós, direcção da AAC, sabíamos que íamos ser impedidos de fazer exames e a greve surgiu como resultado de um profundo sentimento de solidariedade para connosco", explica Fernanda da Bernarda.Na noite que precedeu o início das provas académicas, marcado para 2 de Junho, Coimbra foi ocupada pela polícia. Jipes com arame farpado, GNR a cavalo, cães-polícias e canhões de tinta contribuem para o aparato repressivo. A greve aos exames - a segunda e última do género neste século, depois da que ocorreu em 1907, também em Coimbra - teve uma adesão elevadíssima [ver texto neste destaque]. Em Junho e Julho, na sequência do boicote, são presos 80 estudantes e instaurados 40 processos disciplinares. Em Agosto, aproveitando as férias, a Judiciária prende os sete elementos da direcção, acusando-os de "crime de sedição". A detenção, nos calabouços da PJ na Rua Gomes Freire, em Lisboa, durou nove dias. Em Setembro, quando os estudantes regressam a Coimbra, a AAC é fechada e cercada pela polícia. A sua direcção e mais algumas dezenas de estudantes, ao todo 49, foram mobilizados à força para a tropa, ao abrigo de um decreto militar de excepção, aprovado em 24 de Junho pelo Conselho de Ministros, que fazia depender a incorporação nas Forças Armadas do "comportamento escolar".Depois de acesa discussão nas estruturas dirigentes do movimento estudantil, decide-se levantar a proibição da ida a exames. "Com a dispersão das férias, as prisões, os processos disciplinares e as ameaças de incorporação na tropa, o movimento perdeu o impulso e decidimos deixar as coisas seguir o seu curso. Foi um recuo táctico. O movimento estava decapitado. Continuar a greve seria um suicídio político", afirma Alberto Martins. Em Outubro, os 49 estudantes mobilizados entram na recruta, em Mafra. Levam, para os quartéis, a experiência e a vontade de enfrentar o regime ditatorial.

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