Uma canta, a outra não

Aos 22 anos Elodie Bouchez é um dos mais requisitados talentos do cinema francês. Quer fazer aquilo de que gosta - trabalhar em material contemporâneo e arriscado com outros jovens actores e realizadores - e está farta dos estereótipos do cinema francês. Integra uma novíssima vaga de actores, produtores e realizadores que sonham com o cinema aos 20 anos. Em "A Vida Sonhada dos Anjos", um dos mais premiados filmes franceses dos últimos anos, tem uma colega à altura: Natacha Régnier.

Isa, que consegue enfiar toda a sua bagagem existencial num saco proletário, imita Madonna em "Like a virgin" numa entrevista para empregada de restaurante. Enquanto ela canta e prolonga nesses trejeitos e na sensualidade de trazer por casa uma confiança indestrutível na errância - e na sua inaptidão laboral, aliás, porque nem faz questão de conseguir o emprego -, a outra, Marie, é obrigada a imaginar-se como se fosse Lauren Bacall a fumar, mas parece estar sujeita à dor de uma tortura sadomasoquista.Pode ser mais fácil gostar logo de Isa (até porque Elodie Bouchez, mesmo que contra a sua vontade, está marcada pela "generosidade" desde que irrompeu em "Juncos Silvestres", de André Téchiné), mas, se entramos com ela em "A Vida Sonhada dos Anjos" e se é também com ela que saímos do filme, mais demoradamente ficará em nós a ferida aberta de Marie (Natacha Régnier, com uma hiper-sensibilidade que a torna implacavelmente opaca e áspera). São duas intérpretes espantosas (Cannes e os Césars 98 fizeram questão de não ignorar nenhuma delas) e não entregam as personagens em bloco ao espectador porque parece que as estão a descobrir ao mesmo tempo que ele - o filme é menos a cristalização ou a descrição de dois retratos, de duas figuras, e mais a circulação de fluxos de energia. Natacha Régnier, então, guarda só para si aquilo que descobriu, e quando damos por isso já é tarde para nos protegermos dos lancinantes segredos da sua personagem. Mesmo se os prémios trataram de não deixar nenhuma das duas intérpretes de fora, "A Vida Sonhada dos Anjos" mostra um pequeno "delito": Marie/Régnier a roubar o filme a Isa/Bouchez.Isa e Marie encontraram-se por acaso em Lille e partilham um apartamento que não é de nenhuma delas, que está vago porque a sua proprietária morreu num acidente e a filha está em coma. Norte de França, céu carregado de pessimismo. Realismo social? Rugosidade descarnada, como no cinema agónico de Maurice Pialat?Isa e Marie não estão desempregadas, mas antes alheadas, e desligadas, da possibilidade de fixação. Isa - talvez se possa simplificar - por escolha; Natacha por qualquer coisa de mais insondável e assustador. Não chega, para justificar a forma como se fere violentamente contra a mundo - por exemplo, como é atraída para masoquistas impossibilidades de relações -, o corporizar de uma raiva social. Em "A Vida Sonhada dos Anjos" a realidade - repare-se nos planos em que o realizador Erick Zonca faz a câmara olhar para os exteriores através de vidros de janelas - é um cenário fluido, aquoso; e é esta vibração impressionista, como pontos num quadro em permanente movimento de recomposição, que tem marcado de forma significativa o cinema francês recente (recorda-se uma outra primeira obra, vista no último Festival de Berlim, intitulada "Karnaval", de Thomas Vincent).No caso de "A Vida Sonhada dos Anjos" também é assim porque o próprio cenário de Isa e Marie - o apartamento - é como se não existisse fisicamente, é um limbo, já que pertence a uma morta e a uma filha em coma. É nesta antecâmara que as cores saturadas e cruas da fotografia de Agnès Godard estão à solta convulsivamente, à espera de um ponto onde se fixarem. Isa e Marie também estão assim. Isa, na sua instintiva disponibilidade, deixa-se obcecar pela rapariga em coma - por aí o filme parece querer instalar, sem que isso alguma vez se materialize, o fantástico e o mórbido e às tantas podemos perguntar, pensando no título, se as duas personagens não são, afinal, o sonho daquela que está adormecida. Já Marie é a ferida exposta do filme (ferida íntima, literalmente, se não conseguirmos fugir à ideia daquela casa, e daquelas cores, como espaço uterino) e deixa-se escorregar, também literalmente, por uma janela."A minha abordagem da escrita é antes de mais visual. O ponto de partida dos meus argumentos é sempre a imaginação. Toda a diligência didáctica me é estranha. Nunca parto de um tema nem de um ponto de vista teórico, apenas me deixo levar pelo meu imaginário." É uma declaração-programa de Erick Zonca para o seu trabalho. Ou ainda: "Formular verdades sobre o mundo ou a sociedade não me interessa nada. Não tenho de todo uma visão documental. O que eu gosto são os encontros com os seres humanos." É a esta luz que podemos ler a sequência final de "A Vida Sonhada dos Anjos", aquela que mostra o mais explícito movimento de câmara de todo o filme. Vemos Isa ser integrada numa cadeia de produção, a câmara afastar-se dela e num "travelling" denunciado fazer desfilar outros rostos de mulheres. Mais velhas, acabrunhadas, cansadas. Como se fossem o futuro derrotado de Isa? Conclusão, em jeito de "mensagem" final, de um olhar "sociológico" que foi somando dados e chegou a uma espécie de elo de vitimização feminina? Vemos essas mulheres e "vemos" Isa, sim, mas também, como se se materializassem fantasmas, "vemos" Marie, e depois Isa, e Marie de novo, numa comunicação tão secreta como toda a indefinível "realidade" de "A Vida Sonhada dos Anjos".

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