O retrocesso civilizacional das touradas

O ajuste (literal) de contas para com as vítimas do holocausto e seus descendentes ainda não terminou, mais de meio século após a queda da Alemanha nazi. A Suíça prossegue o seu penoso, e forçado, caminho de compensações financeiras, preocupada com uma imagem que ficou muito abalada nos últimos anos. Mas, entre os próprios judeus, há quem se interrogue sobre se esta questão de "deve e haver" não será "uma espécie de perversão nesta tragédia", se "o som dilacerante do Holocausto neste final de século" não passar de discussão "acerca de judeus e dos seus Monet e Stradivarius".

Apesar de fazer lembrar os espectáculos circenses da antiguidade, a lide de reses tem origem em civilizações muito mais remotas, encontrando-se associada a mitos religiosos e sacrifícios. Na Península Ibérica, onde o clima e os pastos favoreceram a criação de gado bovino em estado semi-selvagem, a lide dos touros foi uma necessidade para tornar possível o maneio do mesmo. Os tempos transformaram esta necessidade numa forma de arte, repleta de símbolos da antiga mitologia.Existem duas formas básicas de lidar reses: as corridas, de cariz popular e originárias de Espanha, que são uma forma de toureio a pé e culminam com a morte dos touros, e as touradas, de cariz e tradição fidalgas, em que o toureio é equestre e o touro, depois de lidado, é recolhido da arena com vida. Em Portugal, a tradição está ligada ao toureio equestre. A "tourada à antiga portuguesa" é um espectáculo repleto de pompa, onde apenas intervêm cavaleiros (com os respectivos bandarilheiros e cavalos de combate) e moços-de-forcado. Os termos "corridas" e "touradas", entretanto, passaram a ser usados de forma indiferenciada.Em 1836, durante o reinado de D. Maria II, foram proibidas por real decreto os espectáculos com toiros, por serem considerados "um divertimento bárbaro, e impróprio de Nações civilizadas; e bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime, e à ferocidade" e que "podem impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa". Este decreto foi revogado um ano mais tarde. Desde então, a maioria dos espectáculos tauromáquicos passaram a ser um misto de corridas à espanhola e touradas à portuguesa. A morte dos touros na arena só acontecia à revelia das autoridades e, em 1921, os touros de morte ficaram terminantemente proibidos. Mais tarde, em 1928 oficializaram-se as coimas a aplicar aos infractores.Em 1995, por Despacho do então Secretário da Cultura, Santana Lopes, foram efectuadas algumas "corridas picadas", que são um aspecto das corridas à espanhola intimamente associado às corridas de touros de morte. Nestas decorre a chamada "sorte de varas", em que o touro é atraído para o picador, montado a cavalo e armado de uma longa e grossa vara, terminada em baixo por uma ponta aguçada de ferro. O picador espera que o touro invista contra o cavalo e, no momento em que se prepara para atacar, espeta-lhe a vara no pescoço, imprimindo-lhe a força correspondente ao peso do corpo, numa tentativa de lhe travar o avanço. O lançamento é repetido outras vezes no mesmo local não sendo, apesar de tudo, suficiente para evitar o frequente derrube do cavalo (e, por vezes, o seu grave ferimento). Este procedimento tem, como resultado, o enfraquecimento geral do touro, bem como a sua incapacidade para levantar e mover a cabeça normalmente. À "sorte de varas" segue-se habitualmente a "sorte de estocada", em que é infligida a morte ao animal. Como esta última é proibida em Portugal, o touro foi retirado da arena, severamente ferido, para ser morto mais tarde.A realização de corridas picadas em Portugal foi, na opinião dos aficionados (entre os quais se destaca o actual Presidente da República), não só uma evolução positiva ("um progresso"), mas sobretudo uma forma de pressão indirecta para a sequente e subtil introdução dos touros de morte. Este tipo de touradas, no entanto, não voltou a ser autorizado pelo actual Governo.Entretanto, na vila de Barrancos, continuaram a ser mortos touros em espectáculos durante a sua festa anual. Este acontecimento sempre se revestiu da maior discrição até ao ano de 1998, em que uma providência cautelar, interposta pela Sociedade Protectora dos Animais, arrastou Barrancos para a ribalta nacional. Nesse Verão toda a população ouviu falar do assunto e opinou acerca dele. O Governo foi criticado por não actuar, os barranquenhos defenderam-se sob o argumento da tradição. Mas o que se passa de facto em relação à festa barranquenha? Não se trata de uma tourada à portuguesa, nem de uma corrida à espanhola e não inclui a sorte de varas. Trata-se de tauromaquia de categoria duvidosa, até para aficionados como José Júlio, ex-matador de toiros vila-franquense (PÚBLICO de 22/02/99), em que o touro, depois de lidado, é morto no seio de uma explosão de gente ao rubro na arena.Temos, portanto, assistido em Portugal à manifestação de vários tipos de espectáculos tauromáquicos que podem ou não implicar a morte do touro na arena. Alguns aficcionados chocam-se com a impossibilidade de matar touros na arena. Ao argumentar em defesa desta causa, lá acabam por assumir que os animais sofrem (devido às bandarilhas cravadas no dorso) e assim permanecem até à hora da morte. Para eles, só a concretização da morte do touro completa o ritual e oferece ao espectáculo toda a sua dignidade e esplendor. Chegam ao cúmulo de afirmar que "para o touro é uma honra morrer na praça" (David Ribeiro Telles, "Jornal de Notícias" de 28/03/99).Para outras pessoas, no entanto, a morte de touros na arena é um acontecimento inaceitável, por ser altamente reprovável a ideia de haver quem se divirta e sinta seja o que for de agradável no acto público de se perder uma vida. Consideram hipócrita toda a alusão à simbologia, à arte e à cultura invocada para revestir de dignidade este acto cruel. É certo que o sofrimento do animal se prolonga quando não é morto de imediato. Mas esse problema deve resolver-se com a obrigatoriedade de uma morte seguida à tourada e não com a legalização da mesma em público e para gráudio de uma plateia alienada por semelhante acto. Além do mais, a estocada mortal nem sempre representa para o touro o ponto final no seu sofrimento. Sabem muito bem os aficionados e profissionais da matéria que ela nem sempre acaba de imediato com a vida do animal, fazendo com que para ele se sigam momentos de extrema agonia.Entre opiniões diferentes sobre o tema, assiste-se actualmente em Portugal à tentativa de legalização dos touros de morte, indiciada pelas iniciativas que tiveram lugar no passado recente. Mas o que se pretende de facto legalizar? As mortes amadoras dos touros de Barrancos? Ou as mortes similares que, um pouco por outras vilas deste país, se vão propagar como cogumelos? Ou será que se legalizam simplesmente as corridas à espanhola, assim dando que fazer ao, por alguns tão amado, Pedrito de Portugal e a outros matadores nacionais?De D. Maria II até aos nossos dias já muito se evoluiu no sentido da humanização das nossas relações com os animais. Contudo, e apesar de as touradas serem espectáculos com um número de aficionados cada vez menor, existem fortes e influentes tentativas de retroceder seriamente na forma como se processam estes espectáculos. O curso futuro dos acontecimentos é uma nebulosa difícil de destrinçar. Mas uma coisa é certa: Portugal penalizou esta prática a 14 de Abril de 1928. Pode ser que o mesmo dia 14 de Abril de 1999 represente um histórico retrocesso civilizacional, a pretexto de manter a paz da remota vila de Barrancos. Mas esse mesmo retrocesso não é bem aceite por grande parte da população portuguesa, como aliás ficou provado em sondagens de opinião efectuadas em 1998 por alguns meios de comunicação social. Se as touradas à Portuguesa já não são espectáculos de que muitos se orgulhem particularmente, incluir neles touros de morte passa a ser, para muitos, uma vergonha nacional que urge combater. Pode ser que, com as decisões que se tomarem, os governantes deste país vejam resolvido o seu problema "técnico" com Barrancos. Mas mais tarde terão certamente que se confrontar com outros problemas de ordem social, política e até económica, gerados por esta inconcebível e difícil de explicar retrocesso civilizacional da nossa relação com os espectáculos tauromáquicos.

Sugerir correcção