Ele diz: "I'm back!"

ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS - Sinto alguma ansiedade e expectativa, não sei como é que o público vai reagir e para mim essa relação é essencial. Um filme é como a Bela Adormecida, enquanto não houver o beijo do príncipe - o público -, fica uma coisa inerte. Quando estou a ver o filme sozinho, só vejo as imperfeições, não consigo vê-lo com virgindade. Há uma carga brutal que tenho com o trabalho, uma espécie de placenta, e é preciso cortar o cordão umbilical. Isso acontece quando o filme é entregue ao público. A reacção do público é sempre uma lição, ajuda-me a perceber se a comunicação funciona ou não, e muitas vezes há surpresas. Como é que me sinto? Como Paul Newman em "A Cor do Dinheiro" [de Martin Scorsese], naquele plano extraordinário em que depois de ter estado muito tempo afastado do bilhar, porque lhe cortaram a carreira, volta para formar um tipo novo, interpretado pelo Tom Cruise, e a certa altura percebe que pode voltar a jogar e dá um grito: "I'm back."A carga de placenta de que falava é a que faz com que o filme não tenha para mim uma individualidade própria antes de ser entregue ao público. Antes disso um filme traz sobretudo uma sobrecarga das condições de filmagens, que são sempre difíceis. "Jaime" foi o filme mais difícil de todos os que fiz, precisava de nove semanas e tive sete e choveu, quando não queria que chovesse. Demorei imenso tempo a libertar-me da carga material dos planos para criar uma empatia com os momentos de graça - no sentido da leveza, como os anjos.Para voltar à esquizofrenia: a coisa mais terrível num filme é a ideia de irremediável. De vez em quando coloco a questão de saber se o cinema é verdadeiramente uma arte. E se o é, onde e como, qual é o momento criativo. Quando vejo velhos filmes, "Johnny Guitar" [de Nicholas Ray], "A Desaparecida" [John Ford] ou "Aurora" [Murnau], não tenho dúvidas. Mas, quando tenho a experiência de filmar, sinto que o realizador tem o horário do funcionário público, entra às oito e sai às seis e durante essas horas tem que estar inspirado, e ainda por cima depende de elementos que lhe escapam. Essa é a grande angústia: a filmagem, o momento da verdade, a única coisa que não se pode modificar. Por isso me tornei fanático do argumento: quanto mais se investe no argumento e na preparação, mais à vontade se está na filmagem. A escrita e a preparação são os dois momentos em que a improvisação é barata. E, com um argumento sólido, no "plateau" pode inventar-se com maior facilidade.Um filme que corre bem, torna mais difícil que os meus projectos sejam chumbados e faz bem ao meu ego. Mas o que me interessa é que as personagens e as histórias comuniquem com a sociedade - sobretudo no caso dos filmes portugueses ou europeus, que têm a ver com a minha cultura e que não têm nada a ver com a cultura americana de hoje, que não a do tempo em que havia europeus na América, em que havia uma miscigenação que dava ao cinema americano uma virgindade, uma inocência.Uma das coisas que falha no cinema português é a criação de personagens. Isso já vem da literatura. Não há grandes personagens, e as que há, as do Eça, são caricaturais, "et pour cause". São as personagens que transportam consigo formas de identificação colectiva. O que conta para mim é a ficção, que continua a ter para mim uma função aristotélica, criar a catarse e suscitar a compaixão.O bairro onde as personagens vivem, no Porto, é fétido, cheira mal. No entanto, há uma vitalidade que faz do Porto uma cidade mais do Sul da Europa do que Lisboa; é uma cidade matriarcal, como Nápoles. O lado musical agrada-me, é um bocado como a Catherine Deneuve nos "Chapéus de Chuva de Cherburgo", de Jacques Demy - tirando Jean Renoir, uma espécie de D'Artagnan, os três grandes realizadores franceses são "os três Jacques", Jacques Demy, Jacques Becker e Jacques Tati, não por acaso os mais subestimados.Visto a mãe com uma combinação vermelha, que pode ser chocante, mas tive a preocupação que ela fosse sempre bonita, uma flor carnal no meio do desejo de três homens. Isso é uma constante dos meus filmes, e vem do Renoir. O Truffaut descobriu que nos filmes do Renoir havia sempre uma história de uma mulher e três homens. Os fatos que usa a Fernanda Serrano fui eu que os comprei num centro comercial no Porto, custaram 30 contos, foi barato, mas eu queria que eles se distinguissem. Porque ela tem em comum com o Jaime o facto de não aceitar a fatalidade. É por isso que ganha aversão ao marido [Joaquim Leitão], um vencido. Mãe e filho - o "couple" do filme - querem escapar ao preto e branco do mundo.Quanto a Visconti, é óbvio em "Aqui d'El Rey" porque filmo uma época que o Visconti filmou em "O Leopardo" e em "Sentimento". De resto, tenho pouco a ver com ele. O ponto comum é o Stendhal, uma das minhas almas gémeas. "O Lugar do Morto" foi o ponto em que abandonei um cinema confessional e cortei com a herança da "nouvelle vague". Foi a vontade de evitar o excesso de improvisação no "plateau", que é o grande problema do cinema moderno. A partir do momento em que se destruiu o modelo, caiu-se na arbitrariedade. O que me interessava na "nouvelle vague" era o quebrar de formas antiquadas mas também a possibilidade de se criar uma nova forma de ficção. Esperava que os novos autores tomassem o poder, mas Godard traiu essa ambição. Por isso em "O Lugar do Morto" retomei o cinema americano e o que havia de premingeriano nele era um filão germânico, expressionista, qualquer coisa entre o pesadelo e a realidade.